O temperamento de Raul Pompeia causou forte impressão em muitos daqueles que o conheceram. Capistrano de Abreu, após um jantar no Clube Rabelais (uma daquelas associações finisseculares de homens de letras e artistas) em que foi violentamente atacado pelo escritor, seu amigo de longa data, chegou a cogitar que Pompeia fosse louco — episódio registrado por Rodrigo Octavio em Minhas memórias dos outros. Eugênio Gomes, em Visões e revisões, descreve-o como alguém em que alguns dos nossos contemporâneos não hesitariam em diagnosticar a bipolaridade: segundo seus coevos, “Pompeia tinha gênio instável, com tendência à melancolia ou à cólera, passando, às vezes, inopinadamente, da mais doce e jovial afabilidade a um descontrole insuportável de nervos”.
Esses relatos, registrados por Cláudio Murilo Leal no prefácio ao volume dedicado a Raul Pompeia na série Melhores crônicas, fornecem interessantes elementos para a leitura da obra. Como ressalta o prefaciador, estamos diante de escritos nos quais transparece um “tom enfático” oposto à “matizada e aquarelada linguagem do escritor artista” que nos habituamos a ler. É claro que há um reducionismo em ver aí uma manifestação de bipolaridade; trata-se antes da expressão literária de uma personalidade que não recusava os extremos. O confronto entre as faturas revela, mais que a versatilidade técnica do homem de letras, a sensibilidade necessária para empregar, em cada registro, os recursos retóricos necessários. Pompeia não fugia às polêmicas, visitando todo o temário político da agenda epocal, das discussões abolicionistas às crises políticas e econômicas, assuntos que exigiam uma dicção compatível com o propósito de convencer e mobilizar. Mas isso não significa que, ao voltar-se à produção cronística, Pompeia abandonasse seu virtuosismo, deixando de lado o cuidado formal. Um olhar que analise a composição estilística desses textos, seus processos de construção e adjetivação, revelará o minucioso trato a eles dispensado.
Revalorização
Imbuído das demandas civilizatórias que ajudaram a modelar as festas carnavalescas, Pompeia redige Vem de cima, publicado na Gazeta da Tarde em março de 1886. “Vem de cima a corrupção dos povos”, diz o texto na sentença única que constitui o seu primeiro parágrafo, antecipando o tom acusatório predominante na crônica, que recorre à dimensão exemplar da corte para conclamar à necessária reforma dos costumes. “Enquanto a plebe fluminense sensatamente se abstinha das orgíacas e anti-higiênicas molhadelas, os altos senhores da grande linhagem fidalga entregavam-se, em Petrópolis, com aplauso do Imperador aos excessos do mais desabrido abuso dos limões de cheiro”, escreve o cronista, construindo uma oposição entre a civilizada conduta da “plebe” e a aviltante conduta da nobreza, reveladora de uma inaceitável inversão de valores. Enfatizando o quanto importava a reforma dos costumes para a construção de uma “nação saudável”, escreve Pompeia: “El-Rei, por alto capricho recreativo, deseja nos ver a todos constipados. Para exemplo e estímulo do povo, aplaude o entrudo da sua corte. Quer que espirrem Condes e Barões, quer que espirre o povo depois dos fidalgos e só fique El-Rei enxuto para o dominus tecum do epílogo”. Que nobreza era esta, que agia contra os interesses do povo, desejando manter-nos distantes daquilo então advogado pelos manuais civilizatórios, que determinavam os momentos e modos adequados para rir e conversar, comer e calar — e, é claro, espirrar? “Sua Majestade quer rir, precisa de espirros… Espirrem todos”, escreve Pompeia, que assim conclui o texto: “Ah! Sr. Barão de Ibituruna, vem de cima a constipação dos povos!”. O Barão, médico da corte que chegou a ocupar o posto de Inspetor Geral de Higiene, publicara estudos que visavam a melhorar o saneamento da cidade do Rio de Janeiro. O esforço civilizatório devia principiar por aqueles que deveriam servir de modelo e zelar por seus súditos, e que em vez disso se dedicavam ao que mais parecia “um protesto contra a tendência do público fluminense à abolição desse brinquedo”. Como podem civilizar-se os povos, quando o mau exemplo “vem de cima”?
Um povo extinto, publicado na Gazeta de Notícias em julho de 1888, é outro texto que interessa tanto pelo tema — a questão indígena — quanto pelo valor estético. “Em meio das florestas longes, sobre as águas de grandes rios profundos, que nascem do horizonte misterioso e correm misteriosos para o horizonte, viviam os Bacairis, mansos da brandura selvagem da índole”, escreve Pompeia, num exercício literário notável pela minúcia descritiva, pelo cuidadoso uso da repetição e da oposição contrastiva. “Viviam felizes” os Bacairis, esses índios que “veneravam a onça sagrada de manchas negras” e “temiam os Caraíbas assassinos”, até que “chegaram os espantosos brancos, da estranha tribo dos homens vestidos”. Avulta paulatinamente o tom de denúncia: “Os brancos mostraram as lâminas afiadas e o pano; mostraram o espelho, emblema da verdade, e que mente como um reflexo de miragem; mostraram o cão desconhecido e o burro, animais escravos como os Bacairis vencidos; mostravam o relógio e a bússola, mesquinho aviso das horas e dos lugares, como os astros contra o esquecimento consolador, mas tem a grandeza ao menos dos cenários do firmamento”. Eis o lado obscuro da civilização, corruptora da “pureza” dos primitivos, destruidora da harmonia em que viviam aqueles que habitavam tão perto da ordem natural. A lapidar sentença final registra o que disso resultou: “eram livres; e estão agora marcados como um documento inerte para a etnografia, como vítimas para a catequese e para a conquista”.
Como ressalta Cláudio Murilo Leal no prefácio à obra, faz-se necessária uma revalorização das crônicas e artigos de Raul Pompeia. Parte desse trabalho, ao menos, já começou a ser feita, precisamente através da publicação deste volume de Melhores crônicas — que, esperemos, contribuirá para que a valiosa produção jornalística do autor de O ateneu seja redescoberta.