Memórias negras

Na voz de uma menina, em "Um outro Brooklyn", Jacqueline Woodson reconstrói a memória esquecida de uma região importante dos EUA
Jacqueline Woodson, autora de “Um outro Brooklyn”
01/02/2021

A antropóloga Augusta volta ao Brooklyn depois de alguns anos por conta da morte de seu pai. Logo depois do enterro, vê sua amiga Sylvie no metrô. O retorno à região e o encontro (desajeitado) com a (ex-) amiga jogam a protagonista em um mar de memórias de seus anos de formação. Um outro Brooklyn é o relato do crescimento emocional de uma menina negra nos anos 70 nos EUA.

Augusta chegou ao Brooklyn pela primeira vez quando era criança, acompanhada do pai e do irmão mais novo — a mãe ficara no Tennessee, sofrendo com a morte de seu irmão na Guerra do Vietnã. As crianças inicialmente eram obrigadas a ficar no pequeno apartamento, mas aos poucos ganham espaço e passam a frequentar o bairro inteiro — momento que coincide com a aparição das descrições e percepções sobre a região e seus habitantes. Se antes o Brooklyn é narrado do ponto de vista de uma pequena voyeur que vê a vida acontecendo pela janela de sua casa, ele logo se torna palco de sua própria vida.

As dificuldades são inúmeras — o pai, trabalhando como vendedor de uma loja de roupas, recebe apenas o suficiente para manter a casa. As crianças têm a expectativa constante da volta da mãe. E a vida no bairro não é simples: basta uma volta na quadra para esbarrar com viciados em heroína, prostituição, assédio e outros episódios de violência.

É nesse contexto que as personagens precisam encontrar algum tipo de apoio emocional. O pai e o irmão se voltam para a crescente comunidade islâmica, enquanto Augusta encontra abrigo na companhia de três amigas: Gigi, Angela e Sylvia. Juntas, as meninas se tornam adolescentes e sobrevivem ao ambiente em volta delas.

E sobreviver ao Brooklyn sendo uma adolescente negra nos anos 70 não é nem um pouco simples. Cada uma das personagens, assim como suas famílias, mostram as diferentes respostas às mesmas questões: desigualdade social e racial, violência, falta de perspectivas. Com isso, Jacqueline Woodson consegue dar um panorama das vidas e dores sofridas pela comunidade como um todo.

A própria mãe de Augusta é uma personagem interessante para se pensar nisso, apesar de não estar no Brooklyn. A mulher começa a ouvir a voz do irmão, morto no Vietnã, e enlouquece. Isso é significativo porque a maioria dos soldados americanos levados para o país asiático era negra, e o grande número de mortes no conflito marcou uma geração dos EUA. Ainda assim, a comunidade negra continuava sendo marginalizada em casa, e o sacrifício militar não se igualava ao das outras comunidades, o que obviamente é frustrante. São figuras que nem dando a própria vida são respeitadas.

Essa é uma marca profunda na família de Augusta (impossível dizer o quanto sem estragar parte considerável do livro, então paro por aqui). Mas tão profunda que o pai e o irmão se entregam a uma explicação espiritual, que nunca convence Augusta completamente. Ela encontra essa resposta pelos estudos dos rituais de morte — enquanto antropóloga, tem como objeto de pesquisa a maneira com que diversos povos lidam com a perda de um integrante da família, informações que permeiam todo o livro e não deixam o leitor esquecer que esta é uma obra sobre a perda.

As outras personagens mostram reações bem diferentes às mesmas questões. A família de Sylvie se torna exigente, tendo expectativas altas para as quatro filhas, que devem se tornar médicas ou advogadas. Frequentam uma escola diferente e têm menos liberdades. Para essa família, é essencial que provem que são melhores do que aparentam ser enquanto imigrantes negras.

Gigi e Angela apresentam provavelmente as histórias mais trágicas: Gigi, a menina de beleza excepcional que quer ser estrela de cinema, e Angela, a menina que dança para fugir de seus problemas e tem uma história familiar opaca até mesmo para as outras meninas. Sem dar mais informações que o necessário, basta dizer que o mundo acaba decepcionando as duas.

Se a união entre as quatro foi essencial para a adolescência delas, sendo uma presença feminina compreensiva e apoiadora enquanto tentavam entender os problemas do mundo e navegar por uma sociedade tóxica, ela começa a se desfazer quando as quatro chegam mais perto da vida adulta. Por circunstâncias da vida ou por escolhas conscientes, vão para caminhos diferentes e param de fazer parte da vida uma da outra.

Construção narrativa
Quando perguntada sobre sua palavra favorita em uma entrevista disponível no canal YouTube Originals, Woodson responde: “Se eu tivesse só uma, será que eu seria escritora?”. Com isso, parece dizer que ama todas.

Isso é visível em sua obra. O livro é composto por parágrafos e trechos pequenos, quase como aforismos (até porque eles de vez em quando têm um tom moral ou prático). Essas quebras são muito bem feitas na construção das memórias — são fragmentárias e fora da ordem cronológica, acompanhando as lembranças da personagem enquanto uma cena puxa a outra. E essas cadeias são muitas vezes geradas em torno de palavras, pontos de memória que trazem outras situações (sendo que a perda e a morte são provavelmente os grandes condutores do livro).

Ainda em termos da voz e do ponto de vista narrativo, a construção da primeira pessoa de Augusta é intrigante. No começo conhecemos uma personagem já adulta, profissional e séria lidando com a morte do pai e a volta para casa, mas, conforme suas memórias voltam para a infância e adolescência, as incertezas que tinha tomam conta de sua voz, tornando-a uma narradora pouco confiável em termos factuais (apesar de muito confiável em termos psicológicos e emocionais). A segurança com que lembra de algumas partes e as lacunas revelam muito sobre ela. A antropóloga, tão capaz de observar e descrever o luto dos outros, se perde ao tentar descrever o seu próprio sentimento de perda — sem o distanciamento científico, se vê perdida em suas próprias emoções.

Ainda no que tange às palavras, gostaria de chamar atenção para o título, Um outro Brooklyn. Outro em relação à qual? Várias respostas são possíveis, começando com a união e amizade das quatro amigas em relação à decadência e aos outros problemas que as circulam. Mas é difícil não pensar na imagem do Brooklyn hoje, o recanto dos “artistas” descolados de Nova York. Com a gentrificação e romantização da região pela indústria do entretenimento, é fácil esquecer da região que antes abrigou tantos imigrantes, tantos conflitos internos e externos e tantas vozes diferentes entre si. Nesse sentido, Woodson constrói uma memória que ultrapassa a vida da personagem que a narra — é a memória quase esquecida (ou apagada) da vida de toda uma uma região.

“Agora sei que trágico não é o momento. É a memória”, afirma Augusta logo no começo do livro. A frase é quase um resumo da obra — uma adolescência sendo vivida, sem ideia do quão trágica ela pareceria em retrospecto.

Um outro Brooklyn
Jacqueline Woodson
Trad.: Stephanie Borges
Todavia
120 págs.
Jacqueline Woodson
Nasceu em 1963, em Ohio, nos Estados Unidos, e se mudou para o Brooklyn aos 7 anos de idade. É uma autora versátil: tem mais de 30 livros publicados, entre romances e infantojuvenis — o primeiro foi lançado em 1990. Atualmente, mora no Brooklyn com sua companheira e dois filhos. Um outro Brooklyn é seu primeiro livro traduzido no Brasil.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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