Melancólica realidade

Nos contos de “A ponta”, Charles D’Ambrosio não economiza verdade para mostrar do que é feito nossas vidas
Charles D’Ambrosio, autor de “A ponta”
01/03/2009

Em minha opinião, grandes autores são aqueles que conseguem captar pequenas oscilações na vida cotidiana, extraí-las de seu contexto, recriá-las e devolvê-las ao leitor de uma maneira que o faça perceber que se trata de uma vida imaginária mas que parece absurdamente semelhante a milhares de situações vividas ou ouvidas por esse leitor. Também gosto de literatura fantástica, de contos de fadas, de Senhor dos anéis, de Farenheit 451, mas gosto muito mais quando escritores como Machado de Assis, Dostoiévski, Daniel Pennac e tantos outros que escolhem pessoas normais como nós, em situações passíveis de acontecer conosco, e contam suas histórias.

Partindo desse princípio, o escritor americano Charles D’Ambrosio, se mantiver o estilo mostrado em sua coletânea de contos de estréia, A ponta, tem grandes chances de ter sucesso duradouro. Isso porque D’Ambrosio não procura, nos seis contos que compõem a coletânea, inventar situações que possam parecer absurdas demais para não poderem acontecer comigo, contigo ou com quem for. De certa forma, tudo o que ele escreveu pode ter acontecido em algum lugar, ou alguns lugares, com alguma pessoa, ou muitas pessoas. Na essência, é a vida como ela é e pode ser, mesmo que seja (talvez) ficção.

Parece que D’Ambrosio tem como principal talento captar os fragmentos mais melancólicos e desesperançados de nossas vidas e recriá-los de uma maneira que nos faz reconhecê-los imediatamente como algo muito próximo de acontecer. Claro, a vida é cheia de momentos bacanas e felizes, mas como Tolstói escreveu, todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira. Por isso, quando lemos os contos melancólicos de D’Ambrosio, sabemos, de alguma modo, que eles podem acontecer conosco. É essa assustadora proximidade com a nossa vida que torna tão bons os contos de D’Ambrosio. Sem contar com o fascínio provocado pelas menções a uma infância perdida, não pelos erros das crianças, mas pelos de seus pais.

Vida avaliada
No primeiro conto, A ponta, D’Ambrosio relata uma noite na vida de um garoto pré-adolescente, filho de um pai suicida e de uma mãe que nunca se perdoou por isso, especializado em levar os amigos bêbados de sua mãe de volta para casa, carregando-os de alguma maneira. Em poucas páginas, o autor consegue falar da falta de esperança que um ex-combatente do Vietnã trazia, da falta de esperança de ver as coisas mudarem, da falta de perspectiva de vida dos amigos da mãe, e da completa solidão que o menino sente por não ter o pai por perto. Se fosse um filme, seria um longo plano seqüência com alguns flashbacks, com toda a ação se desenrolando em tempo real, não mais que duas horas. Esse é o assustador, sentir que a vida pode ser totalmente avaliada em não mais que duas horas…

Em O verdadeiro nome dela, D’Ambrosio visita uma tradição norte-americana, a do road romance, e coloca o personagem Jones na estrada com uma mulher misteriosa. A mulher, descobre Jones mais tarde, traz dentro dela o que muitos chamam de maldição, na falta de explicações melhores para aquelas doenças crônicas que levam as pessoas à morte. Assim, dois seres perdidos na imensidão do país continente vagam, à deriva, sem saber para aonde ir nem por que continuar. E se o leitor de vez em quando se encontra assim, perdido, mesmo que sentado em frente ao computador no seu local de trabalho, a empatia é imediata.

Provavelmente esse é o melhor aspecto da prosa de D’Ambrosio, o de conseguir se conectar com nossos aspectos mais desesperançados. A grande rã-touro americana, Jacinta, Todos a bordo, Lirismo e Em exposição, os outros contos que compõem a coletânea, seguem o mesmo princípio de não poupar o leitor da realidade triste que nos circunda. São bebês que morrem por acidente, casais que se desfazem porque um deles é alcoólatra, casais que se desentendem por um segredo escondido desde sempre. Enfim, uma série de situações que parecem limite, mas rondam a esquina de nossas vidas. Sem medo de expor as nossas feridas e sem nenhuma preocupação em minorar ou relativizar os nossos sofrimentos, D’Ambrosio consegue, com uma prosa direta, realista sem ser exagerada, nos colocar frente a frente com o que mais tememos, mas que precisamos encarar.

Que pena que tanto talento mereceria um olhar mais acurado da revisão do livro por parte da editora Grua. Já na contracapa do livro temos um impressinonante (sic) impresso. Em outro momento, o protagonista do conto Em exposição está descrevendo um diálogo com seu pai, e ela apareceu assim no livro: Fique aqui embaixo”, meu pau disse. “Eu te dou os passarinhos.” Há outros espalhados pelo livro, falhas perdoáveis, mas que, diante de um autor de grande talento, parecem desmerecer o seu trabalho. Felizmente, a editora conseguiu conter em níveis aceitáveis seus erros para não estragar o prazer de descobrir um grande escritor.

A ponta
Charles D’Ambrosio
Trad.: Dóris Fleury
Grua
248 págs.
Charles D’Ambrosio
Cresceu em Seattle, Washington, e atualmente vive em Portland, Oregon. Ele graduou-se pela Iowa Writers Workshop, onde hoje é professor visitante, e também é instrutor da Tin House Summer Writers Workshop. A ponta é sua primeira coletânea de contos, publicada originalmente nos Estados Unidos em 1995. A coletânea foi finalista do prêmio Hemingway Foundation/PEN Award e foi considerada pelo jornal The New York Times como um dos melhores livros do ano. Em 2005, publicou uma coleção de ensaios chamada Orphans. A segunda coletânea de contos, The dead fish museum, foi publicada em 2005. Em outubro de 2006, D’Ambrosio ganhou o Whiting Writers’ Award, prêmio dado pela Fundação Sra. Giles Whiting a cada ano para 10 novos escritores de talento nas áreas de ficção, não-ficção, poesia e teatro.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho