Me convençam

Alberto Mussa defende a supressão ou a reescrita de todas as passagens racistas nos textos infantis de Monteiro Lobato
Ilustração: Marco Jacobsen
01/12/2010

Não faz muito tempo escrevi um artigo a propósito da reedição dos livros de Monteiro Lobato e disse mais ou menos que a obra infantil desse escritor, embora genial como concepção, era imprestável, como leitura de crianças. Recebi, é claro, veementes mensagens de repúdio.

E não escapei de nova polêmica, durante um festival literário, por conta do mesmo Lobato e de um parecer do Conselho Nacional de Educação, que desaconselhava a inclusão de Caçadas de Pedrinho nos programas governamentais de distribuição de livros, por seu conteúdo racista.

Isso provocou imensa grita de uma parcela significativa da sociedade; e o Ministério da Educação decidiu não acatar o parecer do seu Conselho.

De tudo que venho ouvindo contra mim, e em defesa tanto da obra quanto da memória de Lobato, consigo identificar três níveis de argumentação, que muitas vezes se apresentam num mesmo discurso e que, portanto, convém esmiuçar.

O primeiro deles corresponde às reações personalistas. Partem de indivíduos que leram as histórias do Picapau Amarelo e se encantaram com aquele universo mágico, fascinante, profundamente brasileiro e original. Entre estes estão também os que passaram a admirar o homem Monteiro Lobato, pensador nacionalista, pioneiro do livro e da leitura, e grande herói do petróleo — curiosamente, o “ouro negro” do Brasil.

Diversas vezes ouvi frases do tipo: “Li Lobato quando criança e não me tornei racista”; ou “o brasileiro não tem auto-estima, não dá valor às grandes personagens da sua história”.

Sobre isso tenho a dizer duas coisas muito elementares: o caráter ou a intenção do autor não importam para o julgamento ideológico da obra; e experiências individuais de leitura são, obviamente, individuais: não podem se presumir de representantes do conjunto social. É mesmo muita pretensão pensar que “se algo não foi nocivo para mim, não será para outros”.

Na verdade, argumentos dessa natureza não merecem muito debate, por fugirem completamente ao ponto. E não custa lembrar que, entre os mais ferrenhos defensores de Lobato, a grande maioria admite haver naqueles textos passagens com evidentes expressões racistas (como “pobre negra”, “negra burra” ou “negra beiçuda”). Esse grupo pondera, todavia, que tais expressões podem ser minimizadas ou neutralizadas — mas esse é um assunto para daqui a pouco.

O gênio acima de tudo
O segundo nível de argumentação a favor da obra infantil lobatiana é um pouco mais sofisticado e corresponde às reações estéticas. Está presente nas pessoas que geralmente bradam: “Se formos proibir o racismo vamos acabar com a cultura brasileira”.

E é verdade: o racismo não é privilégio do criador da Emília. E Monteiro Lobato, mais que muitos outros, produziu uma obra fundadora, praticamente criou a nossa literatura infanto-juvenil. Dizer isso é até muito pouco: a grandeza imaginativa do Picapau Amarelo é insofismável. Principalmente porque (opino eu) faz as personagens infantis manifestarem pensamentos muito críticos contra o mundo óbvio e acanhado dos adultos.

Nota-se muito nesse segundo grupo a noção de que a literatura é alguma coisa meio sagrada, e que tanto o escritor quanto a obra estão naturalmente acima das pessoas. Não interessa se há num livro genial algo que possa ofender, agredir, humilhar alguém. Gênios dizem o que querem. Cabe ao leitor compreendê-los. A cultura do país deve mais a eles que eles à cultura, à carreira, à fama, por vezes à riqueza que o país lhes dá.

Para esses não é o livro que deve servir à sociedade: é a sociedade que deve contextualizar, sempre, em qualquer medida, a falibilidade natural de todo artista em sua circunstância histórica, particularmente quando esse artista é um gênio.

Creio que essas concessões até cabem, quando se trata de leitores adultos. Mas em relação a livros infantis — principalmente a livros que o governo distribui gratuitamente nas escolas — é uma inversão imperdoável de valores: principalmente porque aqueles pequenos leitores, e os pais dos pequenos leitores, não estão livres para escolher.

Os que põem a literatura acima das pessoas também não admitem cortes ou correções no texto original. Não se contentam, esses, com as felizes veiculações dos livros de Lobato em edições adaptadas ou em meios como a televisão e o cinema, não sei se também os quadrinhos.

O que eu defendo é precisamente essa profanação, que concilia os interesses e as necessidades. Deixo claro, para que me critiquem melhor: defendo que sejam suprimidas ou reescritas todas as passagens racistas dos textos infantis de Monteiro Lobato. Ou no mínimo — a exemplo do que se faz com o fumo — que se advirta: “Este livro contém pensamentos e expressões que configuram discriminação racial”.

“Abaixo a censura”
O terceiro nível de argumentação corresponde às reações democráticas. São cidadãos preocupadíssimos com as instituições, com a liberdade de pensamento e de sua manifestação; e com a própria segurança da sociedade civil — se forem acirradas ou mesmo simplesmente mencionadas certas desigualdades entre as categorias sociológicas de raça. São os que exclamam “abaixo todo tipo de censura”.

Tentar impedir que uma criança negra leia um texto com trechos ofensivos, agressivos, humilhantes é — para tais idealistas — execrável violação dos direitos individuais, garantidos constitucionalmente.

Aqui, me permito certa digressão. Suponhamos uma obra, um livro nazista, escrito por um ariano careca, muito pálido, de olhos azuis, com um metro e noventa e cerca de 40 quilos de massa muscular.

Não acredito que a justiça brasileira permitisse que tal livro circulasse, menos por medo do autor que de sua ideologia. E ficaria eu decepcionado se soubesse ter havido alguém que reagisse contra a censura, em defesa do careca.

E se fosse um pedófilo, um violador de garotinhas, que publicasse um álbum ilustrado com fotografias e legendas elucidativas, contando o terrível drama daquela inclinação perversa, aberrante, que ele, autor, não consegue conter, apesar de sempre arrependido? Nem mesmo a Igreja iria perdoá-lo, creio eu, na minha modesta ingenuidade.

Mas falemos de coisas menos repulsivas: pensemos numa biografia vulgar, cujo protagonista tenha fama ou pertença à família rica e poderosa. Imaginemos que tal livro refira indiscrições picantes, mencione mexericos, fale de coisas proibidas, ou vexatórias, a respeito do biografado.

Sei que muita gente, nesse caso, condenaria a proibição de uma obra assim. Mas nosso poder judiciário tem acolhido a maioria das ações que pretendem sejam recolhidas, das livrarias, biografias não autorizadas — independentemente da veracidade incontestável de seus conteúdos.

É triste perceber que, na opinião da maioria da sociedade, o racismo não é tão perigoso como o nazismo, tão abominável como a pedofilia, tão ofensivo como a simples invasão de privacidade.

E a razão é clara: o Brasil é ainda um país profundamente racista. E o traço distintivo do racismo brasileiro, que difere muito do americano, é a sincera crença no mito da democracia racial: muita gente apresenta, como prova desse mito, que o samba simboliza a alma brasileira e que Pelé é o rei do futebol. Argumentam que qualquer negro, no Brasil, tem direito de sentar ao lado de um branco, num ônibus ou num cinema. Nessa linha de raciocínio, só haveria racismo se os negros fossem proibidos, por exemplo, de ir à escola.

Por isso, as atitudes concretas e positivas contra as formas sub-reptícias desse mal são muito raras, não passam muito de leis que morrem no papel. Quando se fala em qualquer procedimento que vise a anular, ou mesmo atenuar o indiscutível racismo de certas passagens da obra infantil de Monteiro Lobato, há um clamor, uma rebelião. É bom enfatizar esse ponto: não falo de leitores adultos, mas de crianças de 8, 9, 10 anos.

Inocência
Mesmo para aqueles que reconhecem a óbvia presença de trechos ofensivos na obra de Lobato, a solução consensual passa muito longe de mexer nos textos: acham eles (sinceramente, suponho) que a mediação de professores, de educadores, possa neutralizar o efeito de uma expressão racista.

São, creio eu, pessoas muito inocentes, ou que não tiveram infância, ou que esqueceram completamente de como agem essas mesmas crianças quando podem tripudiar de seus coleguinhas. Será que uma menininha branca, ao ler num livro de Lobato uma frase da Emília, a personagem mais inteligente, que diz algo como “negra beiçuda” deixará de impor essa pecha à amiguinha negra, numa situação de conflito? Respondam vocês, com suas consciências. Respondam a si mesmos que nunca ouviram dizer de um caso assim.

Enquanto a maioria da sociedade continuar acreditando que uma criança de 8, 9, 10 anos é capaz de abstrair da letra impressa e contextualizar histórica e sociologicamente o pensamento do autor — peço licença para continuar procurando meus discos voadores, minha fonte da juventude, minhas minas do rei Salomão.

O que se discute é uma questão legal, trata-se dos direitos fundamentais da criança. Vejamos alguns excertos da lei 8069, de 13 de julho de 1990, o célebre estatuto da criança e do adolescente:

art. 4º: É dever… da sociedade em geral… assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes… à dignidade, ao respeito…

art. 17: O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança…

art. 18: É dever de todos velar pela dignidade da criança…, pondo-a a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

No nosso caso específico, o direito que deve ser protegido é o da criança negra, do leitor negro e infantil — que não estava no horizonte de Lobato, que escreveu seus livros acreditando, como muitos da sua geração, que a população brasileira se tornaria branca, até o ano 2000, por conta da política de financiamento à imigração européia.

O que eu quero perguntar é se vocês acreditam que esses professores (que hoje dão aulas para as crianças do Brasil) estão realmente preparados para impedir a disseminação do racismo, se conhecem mesmo a história da África, se conseguem assimilar e reproduzir, sinceramente, a idéia de que as civilizações africanas têm valor intelectual equivalente às da Europa e às da Ásia.

A imensa maioria dos professores brasileiros, a imensa maioria da sociedade brasileira não tem a menor condição, não tem a mínima qualificação ou competência para falar da história e da cultura africanas, na intenção de promover, como a lei nacional determina, a auto-estima das populações negras (e não digo “afrodescendentes” porque isso incluiria a maioria dos que se julgam brancos por ainda não terem feito seu exame de DNA).

Faz tempo que chegou a hora de acabar com essa condescendência, com esse jeitinho, com essa moleza, com essa coisa morna de achar que discutir racismo no Brasil é bobagem, que vamos acabar virando americanos (como se nos outros aspectos não fosse precisamente esse o desejo da maioria das pessoas), que os negrinhos e negrinhas não vão ficar chateados, não vão se ofender, que eles sabem que todo mundo gosta deles, que essa história de burrice, de feiúra, de inferioridade é mais por força do costume, é só um modo antigo de falar, meio casual, meio acidental, não por querer.

Me convençam que uma criança negra lendo uma passagem racista de um dos livros do genial Lobato não vá se sentir vexada, discriminada, constrangida. Me convençam que livros como esses não violam a integridade psíquica e moral da criança — que somos, por lei, obrigados a proteger.

E uma criança — índia, negra ou branca — está acima de qualquer escritor. Está acima de qualquer literatura.

Alberto Mussa

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor do romance O senhor do lado esquerdo, vencedor do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e eleito pela Academia Brasileira de Letras o melhor livro de ficção publicado em 2011.

Rascunho