Mascarados virtuais

"Apego", romance de Isabel Fonseca, fala de adultério, mas evita os preconceitos de fundo moralizante
Isabel Fonseca, autora de “Apego”
01/07/2011

Um dos sinais mais evidentes da desintegração do eu que atualmente esfacela a noção de identidade e multiplica, à máxima potência, a infindável proliferação das máscaras em que o sujeito se esconde e se disfarça em nome da exaltação da instabilidade e da fluidez dos relacionamentos de todo o gênero é, sem dúvida, o aumento vertiginoso dos assim chamados “contatos virtuais”.

Com efeito, a questão que se coloca já não é mais a do fake, a da farsa, que permeia as inter-relações que invadem as telas dos computadores, quando desconhecidos se predispõem, conscientemente, a criar, nesse universo virtual, algum tipo de contato, configurando máscaras diferentes para cada bate-papo, criando, assim, tantas personas quantas forem necessárias. O que se coloca, de maneira incisiva, é a questão da necessidade premente desse baile de máscaras, do jogo de dissimulações e fantasias na câmera escura que utiliza a tela e os ciberespaços como óculos tridimensionais, capazes de gerar realidades paralelas e transportar a ilusão de que se está materializando alguma forma de desejo.

De todos os temas tratados, no romance Apego, de Isabel Fonseca, o mais instigante é, a propósito, o que pretende flagrar como se criam esses personagens nos espaços virtuais e quais as conseqüências desse baile na vida real dos indivíduos. Analogamente, algo semelhante, por exemplo, ao que problematizou Schnitzler em seu famoso Breve romance de sonho, adaptado para o cinema por Stanley Kubrick em De olhos bem fechados.

Em síntese, temos a crise de Jean, uma mulher madura, de quase 46 anos, importante jornalista, responsável por colunas sobre saúde, em famosos periódicos americanos e londrinos, ao descobrir que seu marido Mark (com quem se casara havia mais de 20 anos) a estaria traindo virtualmente (e talvez não só no espaço da internet) com a vulgar jovem australiana Giovana, cujo apelido era Coisinha nº2. O nome da “outra” fatal, que aparece escrito de modo errado — já que o correto seria Giovanna com dois “enes” — sinaliza, segundo a percepção de Jean, o nível de persona com quem Mark estaria se envolvendo. O primeiro e-mail que ela lê, inusitado, já que jamais imaginaria algo assim com seu próprio marido (a quem ela supunha conhecer muito bem), faz com que fique totalmente atônita:

Querido Coisinha nº1,

SAUDAÇÕES AUSTRALIANAS! Já estou com saudade, seu animal sexy. Você parecia mais velho. O rosto mais bronzeado! Mas eu também estou mais velha. Faço 26 esta semana! Mesmo assim, recebo mais propostas do que nunca, se é que isso é possível. Você me achou mais velha e mais inteligente? Perfeitamente madura, pronta para ser comida? Ou só mais velha e MAIS SUJA?

Vou mandar uma lembrancinha para você ficar babando, seu velho incrivelmente imundo, se é que você não está senil demais para abrir o anexo. Mas essa coxas deliciosas são só porque EU 20 VER e então criei uma continha nova para você. (Acho que a do escritório não é uma boa idéia). Seu endereço do prazer agora é: [email protected]. Safadinho já existia, claro… mas eu juro que não fui eu que criei! O assunto é 69. Como eu poderia resistir? Seu pantagruélico lindo, lembre-se de lavar as mãos antes de voltar ao trabalho. Ciao bello!

Coisinha nº2

OS: A senha é B_____. Um teste: para ver se você adivinha. É uma planta suculenta cujas sêmen-tes são usadas para comer, lembra?

MM-mmmm.

Pornolândia
O que seria previsível, correndo o risco de fazer com que a tensão narrativa se diluísse em mais um caso de traição virtual — tão corriqueiramente explorado pela mídia e pela ficção contemporânea — porém se reverte, de modo curioso.

Mesmo diante do absurdo de sentir-se humilhada e traída, Jean resolve entrar no jogo. Embora muito desapontada e ressentida, decide não contar nada ao marido e cria, também ela, uma persona, mais uma máscara, para se inserir no que denomina “reino da pornolândia”. Começa, então a acessar a senha de Mark e a se corresponder com Giovana, a Coisinha nº 2, como se fosse o próprio marido, vulgo Coisinha nº1. E assim, de modo muito perspicaz, vai adentrando aquele universo que se não lhe era totalmente desconhecido, era, ao menos estranho, aprendendo a dançar no baile virtual das máscaras.

O que temos, como resultado, é o da criação, no leitor (tanto quanto se criaria num dos mascarados virtuais) de uma crescente e excitante curiosidade. De repente, a página passa a fazer as vezes da tela do computador e a vida de Jean, com seus embates cotidianos ficam muito mais insípidos e menos picantes do que as mensagens com que ela passa a se conectar com Giovana, por meio de sua persona masculina, com um discurso inteiramente ficcionalizado.

Para além das questões explícitas de metaficção, o eixo central da narrativa investe nessa necessidade de fantasiar, de se transformar em outros, tão característico destes tempos esquizofrênicos em que somos um, nenhum, cem mil, em personalidades que, de modo constante, se desintegram para se regenerarem e se reconfigurarem em outras tantas, completamente distintas.

O que, de fato, pode ser apontado como o grande achado de Isabel Fonseca é, exatamente, o da reversão do que poderia ser meramente dramático, se enquadrado apenas em preconceitos de fundo moralizante, como as questões relativas ao adultério em si ou a certas afirmações peremptórias sobre a banalização dos relacionamentos arriscados e perigosos do espaço virtual.

Do desejo
Apego transcende o senso comum, ao invocar, num bem resolvido recorte irônico, o da sobreposição de vozes virtuais, que buscam, por meio das fantasias de toda a ordem, uma possível canalização para a angústia de um tempo opressor, em que as referências foram banidas e tudo se consome na fugacidade do agora, pelo medo das incertezas de um porvir. Mais do que se prender à trivialidade de perguntas sobre o que vem a ser “traição”, que levam em conta problemáticas muito superficiais a respeito da fidelidade, quando os relacionamentos paralelos vêm à tona, explicitando novas formas de adultério (como as chamadas “traições virtuais”), Apego busca investigar outro tipo de angústia, qual seja a da própria ambigüidade do desejo.

Com efeito, ao lembrarmos da acepção etimológica de desiderare que implica em “cessar de olhar para os astros” e desiderium como a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos, teremos uma possível definição de desejo como vontade consciente, nascida da deliberação. Mas, “deixando de ver os astros”, como ensinam os gregos e conforme afirma, no brilhante ensaio Laços do desejo, Marilena Chauí, desiderium também “significa uma perda, privação do saber sobre o destino, queda na roda da fortuna incerta”.

Assim, se é verdade que desejar é decidir e, conforme uma das assertivas recorrentes do romance de Isabel Fonseca, “os seres humanos são responsáveis pelas escolhas que fazem”, também é verdade, que na base de todo desejo há carência, busca por alguma completude.

Apego traz à baila essa ambigüidade do desejo para o ambiente virtual, verificando de que modo o que se digita nas teclas do computador pode acabar interferindo e, até mesmo, determinando situações decisivas nas vidas dos indivíduos. Estes, transformados nas personas que criam, vêem-se, muitas vezes, recriados por suas próprias máscaras, tendo que assumir os papéis que as mesmas passam a ditar.

Falta agônica
As vozes que encarnam os discursos dissimulados das salas de bate-papo na internet ou dos ambientes virtuais de todo o gênero denunciam essa falta agônica, a da busca desesperada por algum tipo de comunicação, ainda que, para tanto, seja necessário fantasiar-se para tocar o coração do desejo, que só se alimenta, no fundo, de imaginação — e muita!

Jean se libera do peso da traição, revertendo o jogo a seu favor, no momento em que decide enfrentar o ciberespaço desconhecido, navegando em “mares nunca d’antes navegados”, porque, afinal de contas, sabe imaginar e, melhor ainda, como jornalista sabe usar a palavra escrita, criando outro registro discursivo para fazer jus à sua nova persona pornográfica:

Trocando em miúdos, era uma espécie de fraude. Ela via claramente que não dava para levar aquilo a sério. Mas casos eram sempre cafonas, sempre imitações de outros casos. Qual o sentido de um caso extremamente original? (…) Quando ela deu por si, estava digitando a resposta.

Coisinha nº2: É você mesmo? (Tinha esquecido como você é maravilhosa: aquela — ou melhor —, aquelas fotos — era mesmo você? Quero mais! Um ½ de te levar para ¼, POR FAVOR.)

Responda. Conte detalhes, por favor, para eu ter certeza que é você.

Cnº1

Querida Beldroega, bella stella giovanella, sua putinha! Te adoro!

Ela nem parou para pensar. E, quando terminou, leu sua resposta: nada mau, pensou. Mark podia ter seus caprichos, hesitar na pontuação; sua palavra favorita era “maravilha” e a segunda favorita, “adoro”. Jean não resistiu a usar números do mesmo modo que Giovana — 20 ver — um peixe podre jogado para uma foca treinada.

Farsas consentidas
Há outros episódios importantes, no romance, que tentam tornar mais densa a crise enfrentada por Jean. Assim, quase concomitantemente à descoberta de Giovana, ela também descobre um tumor no seio, que a obriga a se submeter a uma biópsia, além do agravamento da saúde de seu pai, que acaba falecendo. Mesmo que colaborem, em boa medida, para aumentar a condição crítica da protagonista, o enredo se apóia nas bases de uma estrutura voltada às indagações sobre as farsas consentidas do mundo virtual.

Ainda que, a contrário senso, na época dos relacionamentos efêmeros e de todos os desencantos, desilusões e desapegos, este Apego procura, por meio da exaltação à fantasia, viabilizada nesse outrar-se, alguma contraditória referência. Mesmo que seja necessário apegar-se à ilusão de que se é outro, no palco cênico da câmera escura do auto-engano, em que todos se travestem, em que tudo pode ser e em que, no fundo, se está sempre a esperar por quem quer que seja capaz de nos arrebatar de nossa imperiosa solidão.

Apego
Isabel Fonseca
Trad.: Alexandre Barbosa de Souza
Companhia das Letras
344 págs.
Isabel Fonseca
Nasceu em 1963. É americana de origem uruguaia. Estudou nas universidades de Columbia, nos Estados Unidos, e Oxford, na Inglaterra. Jornalista, foi diretora assistente do Times Literary Supplement e escreveu para Vogue, The Nation e The Wall Street Journal. De sua autoria, a Companhia das Letras publicou Enterrem-me em pé, um estudo sobre a vida dos ciganos nos países da Europa Ocidental.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho