Madeleine com ratatouille

Resenha de “Histórias de Paris”, de Mario Benedetti
Mario Benedetti, autor de “Histórias de Paris”
01/07/2013

Com o passar do tempo, é de se esperar que surja alguma intimidade. Neste texto, por exemplo, você deixará de me acompanhar em um passeio pela livraria ou pela biblioteca pública da cidade, locais onde costumo buscar a introdução de minhas resenhas.

Hoje, não. Hoje ficaremos pelo meu quarto, tentando entender aquele estranho papel de parede colorido, cujo padrão parece não se repetir em momento algum: ok, talvez o nome mais adequado para aquilo seja “minha biblioteca”. Em cima da mesa, linhas de livros com lombadas na vertical servem de apoio para duas colunas de volumes deitados, entre as quais há mais duas linhas — uma em cima da outra — de livros em pé. Isso tudo até chegar à altura das estantes de madeira, presas à parede, onde há mais deles. Os livros não têm fim; a parede, sim.

Se eu fosse Italo Calvino no excelente Se um viajante numa noite de inverno, provavelmente listaria todos os tipos de livros que fazem parte da minha biblioteca, ainda modesta. Como não sou, falo de apenas um deles: o dos “livros curtos que se lêem meio que por acaso, porque estavam à disposição e muito próximos da cama”. O livro específico sobre o qual me debruçarei é tão fininho — e sua lombada, tão discreta — que acreditei tê-lo perdido. Aliás, ainda acredito — muito provavelmente, ele está apenas camuflado entre as cores desse “papel de parede”.

Recebi um exemplar de Histórias de Paris, de Mario Benedetti, junto com outros títulos legais da Biblioteca Azul — este é o selo de literatura, digamos, menos comercial da Globo Livros. Conversas com escritores — uma coletânea de entrevistas radiofônicas feitas com autores de língua inglesa, em sua maioria — me interessou bastante; Fico besta quando me entendem, uma compilação de entrevistas da Hilda Hilst que abrange praticamente toda sua trajetória literária, também. No entanto, o livro de Benedetti ganhou prioridade pelo número de páginas. Além disso: (1) o nome do autor não me era estranho — ainda que não consiga, até hoje, identificar onde teria ouvido falar dele; e (2) eu tinha visitado Paris um ano antes. As chances eram maiores de eu me relacionar com as narrativas, em suma.

Memórias involuntárias
Meses atrás, inventei de começar a comparar livros a comidas — algumas pessoas têm disso, não é? Comparei o primeiro clássico que resenhei para o Rascunho — a saber: Névoa, de Miguel de Unamuno — a “um waffle recheado com brigadeiro, morangos partidos, sorvete e m&m’s por cima de tudo”, apenas porque queria torná-lo mais visível e porque essa foi a primeira imagem que me veio à mente — o fato de eu ter devorado um desses poucas horas antes talvez tenha tido alguma influência.

Tendo interesse em fazer disto uma tradição, meu dever é o de comparar Histórias de Paris a… ratatouille. Outra opção possível seria citar madeleines, mas me sentiria pouco honesto: nunca as comi nem li o livro mais famoso em que elas aparecem — ainda que saiba o poder exercido por elas sobre o narrador de Em busca do tempo perdido. Memórias involuntárias, no entanto, não são um artifício exclusivo de Proust: em uma cena famosa de Ratatouille, longa metragem de animação da Pixar, um crítico gastronômico com cara de poucos amigos prova um pedaço do ratatouille de um restaurante e a experiência o rememora da infância, época em que sua mãe preparava o mesmo prato.

Reserve essa informação. Voltaremos a ela.

Leve tristeza
Quatro contos, em modestas sessenta e quatro páginas, servem de introdução à obra literária de um escritor que promete ser muitíssimo interessante — algo semelhante me ocorreu recentemente com Menina a caminho, de Raduan Nassar, outro livro com quatro contos que gritavam “por que você ainda não tinha lido esse autor?”.

Sempre é agradável encontrar um livro de contos em que todos realmente parecem fazer parte do mesmo volume — ainda que originalmente publicados em volumes de 1968, 1977 e 1984. Em cada uma das quatro narrativas, Benedetti nos apresenta um diferente narrador, um estrangeiro exilado (voluntariamente ou não) em Paris, cuja relação com a pátria se situa entre a saudade e o desencanto — logo no primeiro conto, descreve-se um jogo, mais uma daquelas “Bobagens que você inventa no exílio para tentar se convencer que não está ficando sem paisagem, sem gente, sem céu, sem país”. Nas três primeiras histórias, há mulheres em situações parecidas com os protagonistas que, num diálogo com estes, produzem a dinâmica dos enredos.

Se as datas batessem, eu diria que Mario Benedetti lera com atenção as Seis propostas para o próximo milênio, do mesmo Calvino que mencionei — em especial, no que elas dizem a respeito da leveza. As narrativas têm uma leveza e humor que podem enganar o leitor mais desatento. Relendo-as todas, a sensação que fica não é a de Paris é uma festa. Tudo é, ao contrário, de uma tristeza profunda e inexorável. As geografias da pátria — e das pessoas amadas — mudam. O tempo passa depressa, contra nós. A traição é uma das etapas obrigatórias do amor. Há muitos riscos para quem adota a postura de flâneur como modo de vida. E assim por diante.

Perdido em Paris
Fosse apenas isso, o livro já teria local garantido entre minhas melhores leituras do ano. Mas há, ainda, toda a questão das memórias involuntárias, da informação reservada num canto do balcão de mármore, só esperando ser adicionada ao ratatouille epifânico. Pedaços de cada um dos contos provocaram momentos em que, com uma clareza espantosa, eu revivia cenas inteiras de uma viagem feita um ano antes. Pudera: até mesmo as ilustrações de Antonio Seguí — meio toscas, aparentemente feitas com giz de cera, que permitem ver o alto relevo da marca de papel utilizado — me lembraram de quando visitei uma exposição de pares e séries de pinturas de Matisse e, finalmente, me dei conta da estupidez absurda que era subestimar as obras desse artista.

Mas não me resta dúvidas que o segundo conto do livro, intitulado Cinco anos de vida, foi o que provocou a maior parte dessas reações. Mesmo após relê-lo, não nego: considerei-o esteticamente perfeito. O mote: o narrador, um pobretão, se despede de seus amigos para pegar o último metrô, um tema interessante para ele — que não tem carro ou dinheiro para um táxi nem mora perto. “Quando estava na altura da Falguière, pôs-se a pensar nas dificuldades que um escritor como ele, não francês (que lhe pareceu, para o caso, uma categoria mais importante que a de uruguaio), tinha que enfrentar se queria escrever sobre aquele ambiente, aquela cidade, aquela gente, aquele metrô.”

Se não conto mais sobre a mistura de metaliteratura, humor, romance, viagem temporal e — como disse antes — “tristeza profunda e inexorável”, é porque creio que você preferirá lê-lo sem a minha mediação. Só não deixo de dizer que não esperava ser surpreendido como fui. Um conto publicado originalmente em 1968 relatou muito do que se passava pela cabeça do rapaz que, ao chegar a Paris, decidiu que não seguiria os passos da geração perdida, tentando descobrir como eles se sentiram quando estiveram por ali; pela mente do moço que resolveu se perder sozinho, sem seguir os passos dos antigos, decidido a sentir a cidade do seu jeito — só para descobrir, um ano depois de viver Paris, que não estava sozinho coisíssima nenhuma.

Se isso não é literatura da boa, o que é?

Histórias de Paris
Mario Benedetti
Trad.: Ari Roitman e Paulina Watch
Globo
64 págs
Mario Benedetti
Traduzido em todo o mundo, Mario Benedetti nasceu em Paso de los Toros, no Uruguai, em 14 de setembro de 1920. Foi vendedor, taquígrafo, contador, funcionário público e jornalista. Em 1945 publicou o primeiro livro de poesia, La víspera indeleble. Em 1949, escreveu A trégua, livro que lhe rendeu fama internacional. Morreu em 17 de maio de 2009.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

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