Madame Bovary sou eu

"Thérèse Desqueyroux", de François Mauriac, expõe as disfunções da sociedade francesa por meio de uma personagem similar à famosa criação de Flaubert
François Mauriac, autor de “Thérèse Desqueyroux”
01/02/2021

No corredor de um juizado criminal qualquer na França do século passado um advogado ecoa a decisão do juízo — a impronúncia da ré. Seu tom não é, contudo, de celebração, e mesmo o pai da ré não o manifesta, caminhando ao lado do defensor com quem conversa concentradamente, deixando inclusive a beneficiada à parte. No tom das palavras desse pai com carreira política há alívio, antes por sua imagem do que pelo bem da filha.

A atitude dos dois homens até certo ponto se justifica, já que acabam de cometer perjúrio contra a lei: a mulher cometeu o crime, e apenas se safou pelo testemunho a seu favor da própria vítima (porém, na cabeça dela, os papéis entre eles estão trocados).

Essas e outras reflexões, como também as memórias capitais do que vivera até ali, a “condenada” terá tempo para desenvolver e repassar no labirinto de sua mente, enquanto refaz o longo caminho de volta ao seu lar, e o leitor a acompanhará na jornada nesta que é a obra mais famosa do escritor francês François Mauriac, Thérèse Desqueyroux, lançado originalmente em 1927.

Lembranças
Os sucessos no romance fluem no ritmo do pensamento de Thérèse, num mergulho retrospectivo de sua vida, mais especificamente nas vésperas de seu casamento com Bernard. O plano de enunciação da narrativa está ancorado num presente pós-julgamento, e a viagem que Thérèse faz de volta ao lar abastado do casal Desqueyroux desperta lembranças várias, reinterpretadas à luz de sua lucidez.

Assim, a narrativa descava a amizade ambígua com Anne, irmã de seu marido; a influência que o fato teve na união nupcial; as cenas de um casamento entre dois seres tão diferentes; o íntimo rico e instruído dela e egoísta e simplório dele; a gravidez decorrente dessa união sem amor; o papel de Thérèse na dissolução da relação de sua amiga/cunhada com o jovem hedonista João Azevedo; a influência que a filosofia dele teve no interior tumultuado de Thérèse e o elo obscuro dos dois; a agonia da relação entre ela e Bernard, etc.

Nessa sucessão de fatos, o que emerge, sobretudo, é o íntimo da personagem-título, uma força que, de repente e sem saber muito bem como, se vê presa a uma estrutura familiar conservadora que preza essencialmente pelas aparências. Mas esse íntimo não consegue nem quer ficar contido; indomável, surpreende a própria dona: “Nunca soube para onde tendia, em mim e fora de mim, esse poder enfurecido: diante do que ele destruía pelo caminho, eu ficava horrorizada…”.

A incomunicabilidade entre o casal, sua distância existencial intransponível, apenas intensifica o drama:

O mais exato dos homens, aquele Bernard: classifica todos os sentimentos, isola-os, ignora que há entre eles uma rede de meandros (…) Como introduzi-lo nas regiões indeterminadas em que Thérèse viveu e sofreu?

É por certo aqui que se torna patente a universalidade da obra, isto é, no “drama da cama” de que nos fala Tolstói. Mauriac, a esse respeito, chega muitas vezes a ser bastante literal:

Na última noite antes do regresso à casa, deitaram-se às 21h. Thérèse (…) esperava demais para que o sono viesse. Um instante, seu espírito soçobrou, até que Bernard se virou num resmungo incompreensível; então ela sentiu contra si aquele grande corpo ardente; repeliu-o (…) mas depois de alguns minutos ele rolou de novo para ela (…) Com mão brutal e que (…) não o acordava, novamente ela o afastou… Ah! Afastá-lo de uma vez por todas, para sempre! Precipitá-lo para fora da cama, nas trevas.

Bela e terrível a força estética com que o autor expressa esse dédalo de sentimentos e sensações. O interior de Thérèse se ergue ante o leitor sem pedir aceitação, mas angariando sua simpatia pela autenticidade com que se expressa e radiografa a superficialidade das convenções sociais ao redor; porém, também despertando nossa repulsa pelo egocentrismo com que se abisma em si, alienando a própria filha inocente e, por fim, movendo a mão em direção ao gesto monstruoso, desproporcional. É aqui, sobretudo, que se encontra o cordão umbilical entre Thérèse e Emma Bovary, a imortal criação de Flaubert. Em comum o apreço à leitura e o componente masculino externo como catalizador da mudança (no caso de Thérèse, João Azevedo). Há também o veneno, mas não será Thérèse quem o haverá de ingerir.

Aliás, é um ponto fulcral a contraposição que a protagonista faz de seu casamento malsucedido com a relação intensa de sua cunhada e o citado João:

Thérèse ergueu os olhos e ficou espantada com seu rosto no espelho (…) Friccionou as têmporas e a fronte com água-de-colônia. “Ela conhece essa alegria… e eu? Eu não, por quê?” (…) “Dois anos atrás, naquele quarto de hotel, peguei no alfinete, espetei-o no retrato do rapaz, no lugar do coração — não furiosamente, mas com calma, como se se tratasse de um ato ordinário —, joguei na privada e dei a descarga.

Notória, como se vê, é a vida dentro da personagem. Não à toa o autor antecede a narrativa com um curioso trecho em que se dirige a sua cria: “Sei que existes”. É como se a cria, como em Pirandello, se impusesse ao autor.

A despeito da impronúncia quanto ao crime praticado,Thérèse haverá de sofrer as consequências de seus atos. De todos os juízos presentes na história da humanidade, o que permanece infalível sempre será o da sociedade. Mas certamente seu destino será bem distinto ao de sua famosa e desventurada ancestral literária. O caminho do acaso sempre será liberdade, comparado a uma gaiola.

Estilo e tradução
Coube ao nosso Carlos Drummond de Andrade verter a prosa de Mauriac, e é com grande prazer que se empreende a leitura, seja pela qualidade da tradução (Drummond é habitué da literatura francesa, tendo vertido obras de Balzac, Proust, etc.), seja pelo estilo do autor. A narrativa alterna o discurso direto e o indireto, e sua prosa é composta de imagens metafóricas, vibrantes:

Thérèse deixava o reino da luz e do fogo e penetrava de novo, como uma vespa sombria, no escritório onde os pais esperavam que o calor baixasse e a filha fosse domada.

Como a narração é extremamente volátil quanto ao espaço e tempo, pois se concentra na consciência da protagonista, o que implica nas idas e vindas entre presente e passado, seu estilo exige concentração do leitor, promovendo sua imersão na leitura simultaneamente.

Além de traduzir, Drummond assina o prefácio, enfocando essencialmente o dilema entre o catolicismo fervoroso do autor e a natureza pecaminosa do tema:

Se quisermos a ironia ou o humor, não os procuremos em suas páginas (…) No máximo, um sarcasmo azedo (…) Ao lado desse cautério, os bálsamos de que Mauriac se serve são a piedade e a caridade.

Por fim, Thérèse Desqueyroux é dessas obras essenciais que nos impõem um espelho onde observamos os tênues fundamentos de nossos valores e convenções sociais. Repensá-los nunca será demais, ainda mais em tempos nos quais os homens os repetem maquinalmente e impõem a outros que os sigam, sem que se possa viver com autenticidade.

Thérèse Desqueyroux
François Mauriac
Trad.: Carlos Drummond de Andrade
José Olympio
154 págs.
François Mauriac
Nasceu em 1885, na cidade de Bordéus, França. Romancista, ensaísta, poeta, dramaturgo e jornalista, estudou literatura em sua cidade e em Paris. Les mains jointes, coletânea de poemas de 1909, despertou algum interesse do público, mas foi a publicação de Le baiser aux lepreux (1922) que deu fama ao autor. Em 1933, foi eleito para a Académie Française e, em 1952, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu em 1970.
Clayton de Souza

É escritor, autor do livro Contos Juvenistas.

Rascunho