Narrado num tempo de assassinos (anunciado pelo poeta Arthur Rimbaud), num mundo onde até mesmo a violência se desumanizou, A chuva imóvel é o romance mais herético, niilista e distópico de Campos de Carvalho. Livro ficcional-ensaístico, trata-se este de um particularíssimo romance surrealista produzido no Brasil em meados do século 20. Publicado primeiramente em 1963, o livro é agora reeditado pela Autêntica, tendo em vista o recém-completado centenário de Campos de Carvalho — ficcionista cuja produção representou uma voz paradoxalmente dissonante diante da seara romanesca brasileira do século passado.
Ambientada em Carfanaum (cidade imaginária de alusões apocalípticas), a trama mental de A chuva imóvel só ganha corpo por meio dos jogos narrativos de espelhamentos outros. Fronteiras reais e surreais se embaralham na Carfanaum de Campos de Carvalho — cidade que é contemporânea de toda ação descrita e sofrida por um narrador. Dependendo de um narrador para existir, na cidade mental de A chuva imóvel um cordão umbilical de nascimento pode tão logo se transformar numa corda de enforcamento. Com trilhos por todos os lados, tal cidade é formada pelas paisagens-pensamentos de um narrador multifacetado pela presença de seu duplo — doppelgänger. Como se as cartas de um jogo fossem embaralhadas a todo instante, em cidade tal é como se faltasse sempre uma peça iminente por se completar: “Carfanaum: zero hora do dia zero do Ano Zero”.
Dividida em três partes (O centauro a cavalo, Girassol, Giralua e Zona de treva), a narrativa se desenvolve por fragmentos de sonhos narrados numa poética própria de urgências incomunicáveis. Narrada em primeira pessoa pelas alucinações de memórias de um narrador plurifacetado, a trama anarco-existencial de A chuva imóvel vai se apresentando ao leitor com a cadência alucinatória de um palimpsesto de ideias sonâmbulas. À beira de um limite sempre novo de linguagem, do leitor é solicitado acompanhar os devaneios de uma escrita a ser percorrida com a velocidade dos pensamentos sobre a chuva imóvel tematizada. À guisa de um romance em permanente estado de impasse, o leitor é convidado a atravessar as vias duplas da mente do homo multiplex André Medeiros. Com a diluição de um eu-lírico que raramente se reconhece humano, o anti-herói de Campos de Carvalho carrega em si uma onírica lucidez incapaz de respirar o mundo com o pulsar de um só coração.
Metade homem, metade cavalo, André Medeiros aparece na primeira parte do livro (O centauro a cavalo) sob a forma de um narrador-personagem orquestrado por imprevistos de origens. Mais um agonista do que um protagonista da trama narrada, André Medeiros é o personagem-intérprete que dispõe em diálogo as paisagens de uma prosaística tão onírica quanto a imagem de um navio naufragado no meio de uma praça abandonada ou, então, a alegoria de uma locomotiva transformada com a chuva num navio extraviado numa imensidão de mar. Não sendo senhor de um só nome próprio, André Medeiros logo é confrontado com a sua duplicidade gêmea: André-Andréa. Estrangeiro perpétuo e estranho entre estranhos, André-Andréa prefigura na narrativa de A chuva imóvel a reiterada crise de um narrador.
Devir identitário
Sendo um narrador que têm a consciência trágica do próprio insulamento existencial, o personagem-intérprete de A chuva imóvel pode ser aludido como um protagonista-agonista que age sobre os pensamentos daquilo que narra. Montado a cavalo sobre si e revolvendo-se sobre a própria sombra, o narrador-agonista da trama mental de A chuva imóvel vai sendo modulado por fábulas além-túmulo de associações de ideias a serem conduzidas pelos pontos de vista de um narrador fragmentado entre o duplo e o delírio do duplo. Em sátira à obra machadiana Memórias póstumas de Brás-Cubas (1881), o narrador de A chuva imóvel por vezes julga-se simultaneamente morto e com a consciência da morte, afogado e com a consciência do naufrágio. Eternamente extraviado do útero de sua mãe, André-Andréa atormenta-se por existir. Sombra de outra sombra, ele-ela traz a consciência da duplicidade de tudo. As regras lhe são obscenas e as palavras falsamente estáticas. Povoado de fantasmas alheios, anda, pensa e respira com os poros múltiplos de quem sabe estar encenando uma vasta farsa trágica.
Igualmente inexoráveis, em A chuva imóvel, André e Andréa se exteriorizam por palavras bivocais de estranhamentos mútuos. Para ambos, toda inventiva ficcional do livro aparece como uma fonte inesgotável de angústias inter-humanas. Rindo-se de tudo e de nada, André-Andréa apalpa o mundo em pensamento. Como um desertor no deserto, com ou sem juízo final, ele-ela sobrevive como uma chuva imóvel a escorrer por sobre a placenta azul de um mesmo casulo terrestre. Potencialmente avivado por uma vontade de recomeço radical, ele-ela mantém-se à procura dos próprios pensamentos em distâncias de sombras. Por perspectivas a mais, a cada instante surgem-lhe pensamentos novos em cada um de seus poros; afinal, no universo do livro, “tudo é possível ou pode tornar-se possível por um instante”.
Seres inapreensíveis se tomados isoladamente, André e Andréa a todo momento se estranham e se questionam, formando uma espécie particularíssima de narrador duplamente orientado. Primeiro protagonista andrógino do romance brasileiro, André-Andréa pode também ser aproximado de um andrógino primordial de luto filial entoado em versos por Charles Baudelaire.
Perpetuamente estrangeiro e estranho, o narrador-personagem de A chuva imóvel tem as pegadas de um empirista anárquico. Com o sangue escorrendo-lhe pelos vasos comunicantes de um duplo, André-Andréa deambula por margens de estranhezas novas, a um passo do terror da indefinição. Em seus descompassos identitários, a presença de André-Andréa na trama acaba por satirizar certo multifacetamento dos personagens romanescos modernos (presente sobretudo a partir do russo Fiódor Dostoiévski) e, também, até mesmo o próprio nome do inventor do surrealismo, André Breton.
Partícipe de um universo insólito que a tudo abarca, André-Andréa representa para a narrativa de A chuva imóvel a imagem de um narrador em pleno devir de identidades. Circundado por paisagens de montanhas móveis, o protagonista-agonista acumula em sua gênese as raízes de um outro. Disposto a demonstrar o absurdo e a falta de sentido de tudo, ele-ela narra os atos narrativos de uma escrita cujo centro de fabulação gira em torno das diatribes e viagens mentais de um ator-narrador atormentado pelos fantasmas de uma escrita cuja necessidade de existência depende do pleno ato narrativo.
Com todos os átomos em laboração — ATOMS AT WORK —, André-Andréa é filho de tempos pós-atômicos e pós-utópicos. Com uma chuva ácida ininterrupta a lhe escorrer por entre os dedos, ele-ela jamais usa os relógios ou se deixa usar por eles. Com as palavras brotando-lhe indecorosamente, entre um passo e outro, ele-ela vai se deparando com uma realidade que à espreita o estranha mais do que nenhuma outra. Ele mesmo um eu e um outro, de todos e de nenhum, o anti-herói de A chuva imóvel pode ser aludido como a principal testemunha agonizante de toda ambiguidade ficcional do livro.
Como um sobrevivente das próprias farsas trágicas, André-Andréa reafirma no livro a reincidência do sonho sobre o real, do onírico sobre toda a lógica automatizada em instâncias herméticas e monocórdicas. De sonho a sonho, ele-ela se constitui para a trama mental de A chuva imóvel como uma instância autoral agônica, no sentido de estar a todo momento à beira de ser questionada e invalidada num novo desconcerto laboratorial de mundo. Como numa espécie de licantropia própria, André-Andréa traz a capacidade de distanciar-se de sua condição humana originária para adquirir um ponto de vista sempre novo, a ser perspectivado em pleno ato de escrituração: “antes de mim já houve o dilúvio e aqui estou, a licantropia não me assusta mais do que o meu estado de gêmeo, tanto sou eu assim como dentro de Andréa”.
Mas, afinal, o que simboliza a chuva imóvel que intermitente paira sobre o livro homônimo? Capaz de estar em todos os lugares da narrativa, corroendo a “boa” lógica de uma ordem a ser regida por concretudes e coerências racionais, a chuva imóvel de que fala Campos de Carvalho pode ser aproximada de uma escrita tão veloz quanto os pensamentos de um corpo-limite potencialmente desconhecido e alheio à totalidade identitária de um mundo que não cessa de se acabar.