Livre dos cacoetes

"O sol se põe em São Paulo", de Bernardo Carvalho, tem trama sedutora, personagens palpáveis e a linguagem atraente
Bernardo Carvalho: diversas subtramas recheando e complementando o enredo.
01/04/2007

Há alguns anos, Bernardo Carvalho encontrava-se em um impasse. Depois de seis livros (bem) mais lidos pelos críticos que pelo público, entregou à Companhia das Letras uma coletânea de contos, que seria a sua segunda (a primeira foi a estréia Aberração, em 1993). O volume foi recusado com a justificativa, dizem, de que eram meras repetições pálidas do resto de sua obra. A crise criativa acabou sendo positiva: o autor carioca radicado em São Paulo deu à luz, em 2002, Nove noites, sucesso instantâneo de crítica e até de público — ao menos em termos relativos —, e ganhou o prestigioso Prêmio Portugal Telecom. O bom Mongólia veio no ano seguinte, também bem recebido e premiado, mas que já sinalizava com certa falta de criatividade e com certos aspectos mais bem explorados no livro anterior.

Este seria, portanto, um momento em que Carvalho precisava, mais uma vez, se renovar e provar que, sim, existe vida criativa após Nove noites. O seu novo romance, O sol se põe em São Paulo, não só é muito bom como ainda bate de frente com Nove noites e, em vários momentos, até o supera. Acerta por não tentar regurgitar todas as suas características, mas também por não ser uma guinada completa, apenas uma progressão natural em relação à sua carreira, agora livre de alguns cacoetes.

O principal deles é o texto. Mesmo com as suas muitas qualidades, Nove noites e Mongólia incomodavam um pouco pelas frases excessivamente curtas, de fazer Hemingway e Carver corarem. O estilo meio telegráfico podia até não obscurecer as qualidades dos livros, porém eliminavam as chances de empatia com o leitor. Em O sol se põe em São Paulo, Bernardo Carvalho misturou os períodos longos de seus primeiros trabalhos com os curtos dos dois últimos. O resultado é melhor ritmo. Esse novo estilo, mais envolvente, lembra o de Paul Auster (a trama policialesca, os capítulos que terminam com mistérios a serem resolvidos no próximo, à la folhetim), com quem o brasileiro costumava ser comparado. Estranhamente, já que não havia tantas semelhanças, fora os flertes com o gênero policial (Bernardo sempre preferiu se filiar a Thomas Bernhard, o que também não procede tanto assim…).

Outro problema resolvido em O sol se põe em São Paulo é o artificialismo que emanava dos outros livros. Bernardo Carvalho costuma ser tido como o mais pós-moderno dos autores brasileiros. Pululam em suas páginas dobraduras temporais, narradores pouco confiáveis, identidades que se misturam, se confundem, se negam e se transformam, tramas que dão várias reviravoltas e, por fim, mostram que não eram nada daquilo que pareciam ser. Tantos aparatos técnicos acabavam por dar a Bernardo uma aparência mecanizada, robótica, sem vida. Seus personagens mais pareciam espectros — a profundidade das figuras dissolvida em favor do enredo. E no romance novo não há nada disso: a trama é sedutora, os personagens palpáveis, a linguagem atraente. E tudo isso sem que os artifícios narrativos tenham se perdido.

Ode às velhas narrativas
O narrador sem nome, desempregado e divorciado, costuma freqüentar um restaurante japonês no bairro da Liberdade, em São Paulo. Certa noite, é abordado pela idosa proprietária do lugar, uma japonesa que logo de cara pergunta: “o senhor é escritor?”. Não, ele não é, tenta lhe dizer. Ela não acredita: “o melhor escritor é sempre o que nunca escreveu nada”. A velha revela que gostaria de contar a ele uma história. Quer que seja registrada em português. Começa a lhe contar.

Setsuko, seu nome, fala de seu passado no Japão recém-saído da Segunda Guerra Mundial. Impedida de se casar porque uma irmã mais velha ainda não conseguiu um pretendente, sai de casa para estudar e é deserdada pela família. Em uma oficina de confecção de bonecas, conhece Michiyo, filha de família tradicional, noiva de um herdeiro promissor, Jokichi, e amante de um irresponsável ator de kyogen (o teatro cômico japonês), Masukichi. Setsuko torna-se espectadora privilegiada da doentia relação entre os três, que envolve ciúmes, adultério, homossexualismo, culpa, luta por controle e erotismo.

Como sempre ocorre nos livros de Bernardo Carvalho, há diversas subtramas recheando e complementando o enredo. Como o pai de Jokichi, um industrial milionário que manda para a guerra um funcionário, para morrer em nome de seu filho. E ainda a participação efêmera de Junichiro Tanizaki, um dos escritores mais importantes da história do Japão, que escreve um romance seriado inspirado no triângulo amoroso da história e que resulta interrompido. E ainda para nos lembrar que se trata de um romance de Carvalho, no final, as certezas que tínhamos mostram-se frágeis: fatos supostamente ocorridos na verdade não passam de ficção; as identidades de alguns personagens são trocadas. Diferente, contudo, de seus primeiros livros, não fica a sensação de inverossimilhança. Como os personagens são bem mais desenvolvidos, as transformações possuem sustentação psicológica convincente. Nem tudo é perfeito. O texto, ainda que, como foi destacado, possui ritmo e fluência, às vezes se repete e peca pelo exagero de frases indiretas. E o final carece de um cadinho de ambigüidade.

A função do personagem-narrador, que acaba indo até o Japão investigar o desfecho da estranha história em que foi enredado, é a de colocar em discussão a própria arte de contar histórias. Tudo bem, é verdade que esses exercícios metalingüísticos — protagonista-escritor, literatura sobre literatura e que a questiona e debate, etc. — já andam enchendo o saco. O sol se põe em São Paulo, entretanto, levanta algumas questões diferentes. O que a senhora japonesa propõe ao narrador é quase um retorno ao “amadorismo” que envolvia a literatura no passado, livre do status pernicioso e cada vez mais comum de emprego que a cerca nas últimas décadas.

O narrador, afinal, não conhece o Japão, país sobre o qual está escrevendo. Diz Setsuko: “preciso de alguém que nunca foi ao Japão. Preciso que você imagine. E o que você imagina nunca vai ser o que foi”. O desprezo que ela parece nutrir pela literatura é, na verdade, profundo respeito pela velha arte de contar histórias, de imaginar, criar, de livrar-se da infinidade de técnicas, truques, conceitos e pré-conceitos existentes e que contaminam algumas narrativas contemporâneas. Uma ode à literatura despida de vícios e maneirismos. Não deixa de ser curioso encontrar questões assim justamente na obra em que Bernardo Carvalho coloca um pouco de lado o seu estilo cerebral e coloca em evidência o intuitivo. Bela prova de maturidade.

O sol se põe em São Paulo
Bernardo Carvalho
Companhia das Letras
164 págs.
Bernardo Carvalho
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1960. É escritor e jornalista. Assina uma coluna quinzenal no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, Publicou o livro de contos Aberração e os romances Onze, Os bêbados e os sonâmbulos, Teatro, As iniciais, Medo de Sade, Nove noites e Mongólia, todos pela Companhia das Letras. Escreveu para o Teatro da Vertigem a peça BR-3, encenada às margens do rio Tietê, em 2006. Seus livros foram traduzidos para mais de dez idiomas.
Jonas Lopes
Rascunho