Literatura no limiar

Romance de Joca Reiners Terron é um território de estranheza e questionamento dos contornos humanos
Joca Reiners Terron por Robson Vilalba
01/07/2013

Luizita chegou assustada, olhou-me com os olhos bem abertos por trás daqueles óculos de fundo de garrafa, fez sinal de silêncio pondo o dedo sobre a boca e, efeito de chispa, trancou-se no quarto. Bati na porta com a ponta da bengala herdada de meu pai, que uso desde um tombo feio na lama dos porcos procurando os leitões novinhos desaparecidos que, na verdade, haviam sido comidos pelos adultos.

Do tombo, ainda me doem as pernas e um hematoma amarela-me o peito. Caído entre os porcos que focinhavam o meu corpo todo, pensei que chegara a minha vez. Até respirar era difícil. Ergui-me quando, longe, o telefone tocou e era o Pereira perguntando se eu ainda escreveria para o Rascunho ou se já tinha morrido. Falei-lhe praticamente do Além que se ele me enviasse algum livro ruim, eu viria puxar seus pés. Ele, que não é bobo, mandou-me coisa que presta.

Luizita abriu uma fresta da porta e me entregou A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, de um tal Joca Reiners Terron. Esperta, sabia que eu esqueceria dela até o fim das 176 páginas que li de cabo a rabo, esperando encontrar um defeitinho qualquer. Afinal, não pode existir livro perfeito, isso seria o fim da crítica ressentida da qual sou o principal representante, ainda que não tenha recebido o reconhecimento devido em vida. Já me sinto no limbo, no limiar, e é dele que escrevo. Sei que neste mundo injusto só a morte nos faz justiça. Depois dela serei ovacionado, meu túmulo receberá peregrinos de todo o mundo como o de Baudelaire, render-me-ão homenagens póstumas até na lua, Luizita editará meus escritos, cujos direitos autorais serão seu ganha-pão, e ainda uma fundação com meu nome, um museu, uma cátedra na Universidad de Buenos Aires, ou pelo menos na USP, um estádio de futebol, um viaduto, um Rascunho inteiro dedicado à minha memória, a glória, a glória…

A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves capturou-me a começar pelo título fabuloso. Comecei a ler depois do almoço e segui até a madrugada perseguindo o sentido do título enquanto afundava em sua angústia. Sou crítico, mas não de ferro: os livros me comovem em sentidos diversos. Este me ajudou, de modo kierkeggardiano, a conviver com a angústia — como tenho que conviver com a bengala, com Noe e Eneida e, de certo modo, com o que, ao antever o futuro, me destrói: o fim da pocilga e sua metafísica que tanto me encanta e me dá sentido.

Aprendi com o velho professor Teodoro — que em Hormiguero, cerca de 1950, ensinou-me as primeiras letras — que ao ler é preciso buscar um segredo que está para além do segredo do livro. Por isso, escritores que vêem leitores como pássaros constroem livros como gaiolas, tentando administrar o segredo. Mas o segredo de um livro nunca está escrito. Joca Terron deve saber disso, pois construiu um livro como uma jaula tal qual aquela do leopardo-das-neves no instigante Nocturama de sua narrativa. Eu, como um porco selvagem que não mede as conseqüências de suas investidas, entrei e fui devidamente devorado no limiar onde seres humanos devêm outra coisa que humanos, ainda que pensem que, naquele momento, estão sendo apenas demasiado humanos.

Trata-se, em primeiro lugar, de uma história com ares de lenda urbana e se resume mais ou menos no fato de que um escrivão de polícia, filho de um velho judeu empobrecido, passa as noites sem dormir enquanto trabalha e, durante o dia, ocupa-se do seu velho pai. Num momento tão encantador quanto triste, o velho tenta se matar com o barbeador, mas isso é pura poesia no meio da prosa cuja narrativa estende-se enquanto o escrivão atende um caso muito estranho e, aos poucos, descobre um segredo familiar. Um segredo familiar e, no entanto, muito estranho, há que se repetir. A história, só por isso, já garante o livro. Mas em literatura uma história não quer dizer nada se o escritor é um otário que pensa que escrever é simplesmente relatar como um jornalista cego para a experiência profunda, a experiência de limiar que é a literatura.

Na contramão do óbvio que caracteriza o livro, este tal Joca Terron sabe muito bem o que faz. Nos dá varias chaves meta-narrativas: uma delas é a tematização da lenda urbana na figura de um personagem secundário — num livro em que o secundário é primeiro —, o jovem coreano entregador da venda, que observa a vida dos personagens centrais. É uma chave para a estranheza que já estava dada na estranheza do próprio escrivão, um estranho judeu sarará e insone.

A extraordinária estranheza inquietante do livro do leopardo-das-neves
O elemento hermenêutico desta narrativa pode ser o que outro velho judeu, que sempre pode ser invocado como Deus na terra, denominou “Unheimlich”. O velho Freud bem poderia ser personagem do livro e ficar no lugar do simpático Dr. Glass. Mas isso não importa agora, fato é que Das Unheimliche, escrito por Freud em 1919, é o melhor texto de estética da história da literatura. Pelo termo “Unheimlich” ele designa justamente lo siniestro, lo ominoso, a estranheza de algo que é familiar e que ficou, segundo Freud, como “um âmbito marginal” da estética. Ora, o que o escritor Joca Terron pôs em cena foi algo da margem, mas enquanto a margem está sempre excluída, ainda está incluída, ou seja, aquilo que é da ordem de um limiar, que pode estar mais próximo de nós do que aceitamos que esteja. O familiar que inquieta, que causa pavor e que, por isso, precisa ser afastado.

Freud cita o filósofo Schelling para resumir a idéia: “Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu”. Aquele mesmo que sustentou certos textos famosos, como O homem de areia dos Contos noturnos de E. T. A. Hoffmann, citados e analisados por Freud, para quem a boneca Olímpia que parece viva é bem menos interessante do que o homem de areia que arranca dos olhos das crianças.

Assim, inspirando-me no velho Sigmund, penso que há uma questão importante no livro que pode ser resolvida se nos dispusermos a eleger seu personagem principal. Ela diz respeito ao que, no romance, provoca o efeito de “estranheza inquietante”. Não é o lugar central do escrivão (judeu e negro-branco ou banco-negro, ao mesmo tempo), embora a narrativa em primeira pessoa surja no âmbito de sua experiência e ele seja fundamental na hora de “temporalizar” uma história altamente metafísica — fabulosa e fantástica —, ambientando-a no tempo presente do bairro paulistano do Bexiga, tomado pela caça da polícia e do governo aos usurários de crack. Ora, o escrivão é o sujeito do entendimento, é a figura que nos guia como um ego entre id e superego.

Por outro lado, o personagem principal não é simplesmente a “criatura” que, ao fim e ao cabo, será alguém muito íntimo do escrivão e surge no contexto como portadora de um segredo que aos poucos se desmancha, pondo em cena os contratempos e acasos da genética. A “criatura”, que está na outra ponta do entendimento propiciado pela narrativa do escrivão — sendo sua contraparte —, não é outra que uma criança que envelheceu com os piores sintomas da porfiria, uma doença complexa mas que tem como sintoma fundamental o prejuízo da pele.

Se pensamos que os preconceitos devido à ignorância são questão do passado, querendo ou não, o livro vem nos fazer perceber que há uma verdadeira persistência da ignorância a produzir a história humana. A “criatura” é portadora de porfiria, passa os dias no escuro, pois o sol lhe é prejudicial, e raramente sai de casa, até que numa noite ela e sua enfermeira, a Senhora X, saem para um curioso passeio no zoológico com a intenção de ver o leopardo-das-neves que havia muito encantava o imaginário pessoal da “criatura” que o conhecia de uma velha enciclopédia. Um dos personagens principais do enredo é justamente esta Senhora X, sem a qual a ação seria impossível. É ela que serve de mediação entre a estranheza da criatura (por ignorância e preconceito estético, acrescente-se) e o mundo lá fora. O passeio noturno tem o poder de mostrar a idiotice humana na figura de seus participantes que agem como imbecis — ou seja, como simples seres humanos que são — quando as coisas vão mal.

O passeio permite entender outra figura fundamental da trama. Trata-se do taxista dono dos cachorros rottweilers que costumam brincar de caçar durante a madrugada. O acontecimento catastrófico no zoológico — muito bem preservado em seu horror, pelo mistério contra a ausência de verismo na perfeita forma de contar de Terron — opõe o taxista e seus cães (sem os quais ele não existe, como ficará provado ao fim do texto) e sua perversão lúdica, e no entanto demasiado humana, aos visitantes que estão na outra ponta do medo, como vítimas possíveis. Ao mesmo tempo, percebemos que o medo é um laço que não apenas une, mas confunde vítima e algoz na forma de um nó intransponível.

O chiaroscuro que de é feita a humanidade
Para além desta relação que rebaixa seres humanos a otários de si mesmos — e os coloca no lugar devido —, temos, neste romance de Terron, os seres transcendentais, quase metafísicos como são a criatura, preservada em seu agon monstruoso e sempre espelhada no leopardo-das-neves, com o qual estabelece uma relação que é mais do que de identidade, uma relação pelo que há entre eles de “comum”.

Os personagens são, de um modo ou de outro, habitantes da esfera noturna da existência e, portanto, ligados à imaginação, à fantasia e aos desejos mais reprimidos (quem sabe, o mundo o Id freudiano). Se opõem à esfera diurna, mais burocrática e muito bem representada por um dia-a-dia policial, o mundo do Super-Eu freudiano, o dever de explicação que o constitui, o dever de controlar e enquadrar o mundo naquilo que pode ser admitido.

Assim, pode parecer que de um lado temos a natureza e de outro temos a cultura. Mas elas não estão simplesmente distantes. A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves é, de algum modo, uma alegoria da continuidade entre os reinos aparentemente separados pela racionalidade vulgar. Separação que é união. Limiar a cuja tensão damos o nome de vida humana e que, melhor dito, diz respeito apenas ao que em nós é humano e, por outro lado, não é.

De um lado a fantasia, de outro a carnalidade humana em sua dor e mutismo. O livro de Terron é surpreendente porque foi escrito em chiaroscuro, sem contornos óbvios que nos permitam separar as coisas. Na voz do escrivão sabemos que “o passado está por acontecer”, que o arcaico é o futuro, que a cultura é a barbárie, que a humanidade é a animalidade. Que a literatura é, ela mesma, a escrita do limiar.

A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves
Joca Reiners Terron
Companhia das Letras
176 págs.
Joca Reiners Terron
Nasceu em Cuiabá, em 1968, e vive em São Paulo. Poeta, prosador e designer gráfico, foi editor da Ciência do Acidente, pela qual publicou o romance Não há nada lá e o livro de poemas Animal anônimo. É autor também dos volumes de contos Hotel Hell, Curva de rio sujo e Sonho interrompido por guilhotina, e do romance Do fundo do poço se vê a lua, vencedor do prêmio Machado de Assis.
Julián Ana

É crítico literário. Nasceu em Hormiguero, Argentina, em 1941. Foi professor visitante em várias universidades dos países de língua portuguesa, inclusive na Universidade de Coimbra onde doutorou-se em Literatura Comparada com uma tese sobre “O Devir Histórico da Terminologia”. Colaborou com diversas revistas e jornais. Aposentado, passou a residir em Las Heras e a dedicar-se especialmente à literatura brasileira contemporânea e à suinocultura.

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