Literatura: modo de usar

Romance fractal de Georges Perec inovou a literatura francesa do século 20
Georges Perec por Osvalter
01/12/2009

A vida modo de usar: romances, obra máxima do escritor francês Georges Perec que a Companhia das Letras reeditou neste ano pelo selo Companhia de Bolso, é um dos mais importantes experimentos literários do século 20. De estrutura complexa, lógica, combinando técnicas narrativas e intercalando textos dentro de textos (o subtítulo não é gratuito), o romance fractal de Perece já prenunciava o hipertexto.

O texto claro, minucioso e comovente de Perec não oferece ao leitor dificuldades condizentes com o puzzle proposto pela ficção. Isso porque, diferente de outros célebres transgressores das fronteiras da palavra escrita, como James Joyce ou Guimarães Rosa, Perec não revira as entranhas do código. Ele brinca com a estrutura. Neste sentido, reivindica um lugar na mesma árvore genealógica a qual pertencem Poe, Carroll e outros de estirpe racionalista. Como disse Paul Auster, numa resenha para a edição americana:

Para ler Perec, deve-se estar pronto para abandonar-se ao espírito do jogo. Seus livros são ornamentados com armadilhas intelectuais, alusões e sistemas secretos, e, se não são necessariamente profundos (no sentido em que Tolstoi ou Mann são profundos), são prodigiosamente divertidos (no sentido em que Lewis Carrol ou Laurence Sterne são divertidos).

Tragédia em família
Ainda pouco conhecido e publicado no Brasil, mais de duas décadas após sua prematura morte por câncer aos 46 anos, em 1982, Georges Perec foi o mais inventivo e prolixo integrante do grupo OuLiPo (Ouvroir de la Litterature Potencielle), fundando por Raymond Queneau (1903-1976) e François de Lionnais (1901-1984) na França dos anos 1960. O grupo, de inspiração dadaísta, usava a matemática e a lógica para compor poemas e romances, levando adiante o projeto lançado por Stéphane Mallarmé (1842-1898), no século 19, de distender os limites do impresso.

A máquina de fazer poemas de Queneau — Cent mille milliards de poèmes (Cem mil milhões de poemas) —, por exemplo, publicada em 1961, antecedia Ted Nelson, Vannevar Bush e Tim Bernes-Lee na concepção de hipertextualidade. A obra de Queneau consistia em uma coleção de dez sonetos cujos versos eram impressos em tiras, que podiam ser permutadas com outros nove, pelo leitor, formando assim novos poemas. O escritor italiano Italo Calvino (1923-1985), autor de Se um viajante numa noite de inverno, é outro ilustre oulipiano. A respeito de Perec, disse: “Uma das mais singulares personalidades literárias do mundo, um escritor que não se parece com nenhum outro.”

Perec provinha de uma família de judeus poloneses que imigraram para a França nos anos 1920. Ficou órfão aos seis anos de idade, depois que o pai morreu no front e a mãe, num campo de concentração nazista, durante a Segunda Guerra Mundial. Seu primeiro romance, Les choses (As coisas), foi premiado com o Renaudot de 1965. A partir daí, e até sua morte, publicou duas dezenas de livros, uma média de mais de um por ano.

A despeito da tragédia pessoal, o trabalho de Perec é entretenimento de alto nível, seja pelos jogos de palavras ou pelo estilo cômico. Observando-se com mais cuidado, porém, há também uma sombra existencialista que se projeta de seus personagens, obsessivos e confinados na espiral entrópica de seus ofícios, artes e manias compulsivas. Oposto a Sartre, em Perec não se divisa nenhum horizonte de salvação pela arte. Há apenas o jogo.

Existe maior desprendimento em literatura do que as brincadeiras com acrósticos, lipogramas, anagramas ou palíndromos cultivadas pelo escritor francês? Perec, por sinal, ficou célebre pelo uso de lipogramas, técnica que consiste em suprimir determinadas letras do alfabeto na composição de textos. Em La disparition (Desaparecimento), são 200 páginas escritas sem a vogal “e”, seguido de Lês revenentes, em que “e” era a única vogal presente, e outro livro com lipograma em “a”. Ele também fez um palíndromo (palavra ou sentença que pode ser lida ao contrário, como “Amor, me ama em Roma”) de cinco mil palavras e publicava semanalmente um jogo de palavras-cruzadas com elevado grau de dificuldade na revista Le Point.

Puzzle
A vida modo de usar, ficção contemplada com o premio Médici de 1978, foi arquitetada como um puzzle. O livro é composto de 99 capítulos, mais preâmbulo, epílogo, planta do prédio (sic!) e anexos. Cada capítulo possui uma história independente, que funciona em si mesma, mas há links que interconectam os contos ou romances. O fio condutor é uma trama de vingança que envolve, direta ou indiretamente, os moradores de um condomínio em Paris.

Ao contrário de outro laboratório literário, O jogo da amarelinha (1963), de Julio Cortázar, a seqüência de leitura, apesar de não-linear, não é aleatória, mas previamente determinada em sua construção. O padrão adotado é o mesmo dos movimentos da peça do cavalo no xadrez, que evita que se passe duas vezes pelo mesmo quadrado ou, no caso, pelo mesmo apartamento ou espaço comum do prédio.

O quebra-cabeça é não somente tema como metáfora da própria literatura. Segundo o autor:

Podemos deduzir daí algo que é, sem dúvida, a verdade última do puzzle: apesar das aparências, não se trata de um jogo solitário ― todo gesto que faz o armador de puzzles, o construtor já fez antes dele; toda peça que toma e retoma, examina, acaricia, toda combinação que tenta e volta a tentar, toda hesitação, toda intuição, toda esperança, todo esmorecimento foram decididos, calculados, estudados pelo outro.

Se o escritor é o projetista do labirinto, deixando intencionalmente pistas falsas e becos sem saída, ao leitor é destinada a tarefa de reconstituir o puzzle, disposto em peças fragmentadas. Reconstruir sentidos, a partir de tantos elementos estranhos encontrados pelo caminho, como listas, sumários, rótulos, receitas, bulas, bibliografias etc.; descobrir dezenas de citações de outros autores (indicados pelo próprio autor no pós-escrito); avançar pelas combinações e variações de estilos e técnicas, que vão do policial ao cômico, do romance sentimental à biografia.

Haverá saída para o labirinto de Perec? Sem dúvida. Mesmo que passe despercebido ao leitor toda complexidade de A vida, ele pode desfrutar do texto primoroso, cheio de minúcias nas descrições precisas, com personagens (dezenas!) que, aproximados na lente perequiana, passam longe da normalidade. Esquisitos, engraçados, trágicos, maníacos até, as almas que habitam o cotidiano detalhado pelo olhar antropológico do autor convencem na medida da sua quase impossibilidade. Não somos todos assim?

Monsieur Bartlebooth
A história começa e termina precisamente às 20 horas do dia 23 de junho de 1975, num edifício localizado no fictício endereço do número 11 da rua Simon-Crubellier (a inspiração veio de um desenho do cartunista Saul Steinberg publicado no livro The art of living, de 1952). Cada capítulo é dedicado a descrever cada um dos apartamentos, mais hall e escadarias, com as vidas de seus moradores, atuais e antigos. O texto, portanto, apenas retrocede no tempo.

O personagem principal da trama é Percival Bartlebooth, um milionário excêntrico e apaixonado por puzzles, morador do condomínio. Ele parte numa viagem pelo mundo em companhia de seu mordomo por um período de quase 20 anos, de 1935 a 1954. O objetivo foi pintar 500 marinas em 500 portos diferentes do globo. Terminada uma aquarela, Bartlebooth enviava a peça pelos correios para outro morador da Simon-Crubellier, Gaspar Wincker, que transformava as marinas em quebra-cabeças de 750 peças.

Em 1955, Wincker terminou o último puzzle para Bartlebooth. O milionário retornou então da aventura para dedicar o resto de sua vida a remontar, peça por peça, e em ordem cronológica, as aquarelas originais que pintou. Os quadros são refeitos graças a um processo químico usado nas peças do puzzle para recuperar a imagem que, vista de longe, parece perfeita, íntegra. A vingança de Wincker está no jogo, que Bartlebooth precisa terminar para sair do labirinto de sua própria insanidade e tédio.

Tarefa inútil, de certo modo como a própria vida, que só tem sentido enquanto é jogada em suas incertezas e acasos. Quem constrói o texto do mundo? Quem o recupera em infindáveis interpretações? Haverá um sentido único, uma ordem pré-estabelecida no tabuleiro? As peças, ao final, se encaixarão? Para todos os propósitos, o melhor modo de usar — a vida ou a literatura — é extraindo o máximo dos momentos de prazer. Divirtam-se.

A vida modo de usar: romances
Georges Perec
Trad.: Ivo Barroso
Companhia das Letras
680 págs.
Georges Perec
Nasceu em 1936, na França, filho de judeus poloneses. Ficou órfão aos seis anos de idade, depois da morte do pai nas trincheiras da Segunda Guerra Mundial, e da mãe, em um campo de concentração nazista, provavelmente Auschwitz-Birkenau. Foi criado pelos tios, estudou na Sorbonne, foi militar e trabalhou até os anos 1970 como arquivista em um laboratório de neurofisiologia. Juntou-se, em 1967, ao OuLiPo (Ouvroir de la Litterature Potencielle), grupo de literatura experimental fundado por Raymond Queneau. Publicou em 1965 seu primeiro livro, As coisas, ganhador do prêmio Renaudot. Nos anos seguintes, publicou mais de duas dezenas de romances, poemas, ensaios e peças de teatro, além de colaborar com revistas literárias. Seu trabalho se caracteriza pela brincadeira com jogos de palavras e pelo uso da matemática, da teoria do xadrez e da lógica em literatura. A vida modo de usar: Romances, considerada a obra-prima do autor, foi publicada em 1978 e agraciada com o prêmio Médici. Perec morreu em 1982, vítima de câncer.
José Renato Salatiel

é jornalista e professor universitário.

Rascunho