Limites e perigos

A reflexão sobre a experiência com a linguagem e sobre a relação com a escrita permeia "O belo perigo" e "A grande estrangeira", de Foucault
Michel Foucault, autor de “O belo perigo” e “A grande estrangeira”
10/11/2016

Mais dois volumes de Michel Foucault — O belo perigo e A grande estrangeira — chegam às livrarias brasileiras. Trata-se de um box que reúne textos importantes para se adentrar um pouco mais nos meandros entre Foucault e a escrita, e a linguagem e a literatura.

O belo perigo consiste na transcrição do primeiro dos vários encontros entre o filósofo e o crítico de arte da revista Arts, Claude Bonnefoy, durante o verão-outono de 1968. Data emblemática pelos movimentos do período e pela tomada da palavra por parte de intelectuais e, ainda, pelos dois livros que orbitam esse momento: As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969). O volume brasileiro, além da introdução de Philippe Artières, traz uma apresentação de Jean Marcel Carvalho, na qual é sublinhada a “detida reflexão sobre a arte da escrita, sobre suas potencialidades, sem dúvida, mas também sobre suas muitas armadilhas e restrições”.

Como enfatiza Artières, aqui há uma prática não comum, uma vez que o script de uma entrevista tradicional é rompido para dar lugar a um “enunciado íntimo do autor sobre si mesmo”. Esse espaço que a voz de Foucault vai, aos poucos, ocupando é aberto pelo poeta e crítico Bonnefoy, desde o início, quando este afirma que não deseja fazer desse encontro a ocasião para repetir o que já se disse nos livros ou fazer comentários sobre os mesmos. A ideia do entrevistador é mais audaciosa:

Gostaria que essas conversas se situassem, se não em sua totalidade, ao menos em grande parte, à margem de seus livros, que elas nos permitem descobrir o avesso deles, algo como sua trama secreta. O que me interessa em primeiro lugar é sua relação com a escrita.

A primeira reação de Foucault é se questionar sobre sua relação com a linguagem, um espaço no qual não se sente livre, e se indaga sobre o que poderá dizer. Percebe-se, ao longo da entrevista, uma descoberta compartilhada propiciadora de espaços que a fala de Foucault vai ocupando, por meio da troca realizada. “Sempre tive para com a escrita uma desconfiança quase moral” é uma primeira abordagem, que o conduz a um exercício de rememorar o período das dificuldades da época escolar até chegar aos 30 anos, quando sente a vontade de escrever. A descoberta desse prazer se dá pelo “fora”, durante a estada na Suécia, pela exposição a línguas que ou pouco conhecia ou praticava com dificuldades. Nas tentativas de interação, por meio do contato tenso com línguas “estranhas”, ele tem a possibilidade de pensar sobre a sua, redescobri-la:

Naquela Suécia, onde eu devia falar uma língua que me era estrangeira, compreendi que podia habitar minha língua, com sua fisionomia subitamente particular, como sendo o lugar mais secreto, porém mais seguro de minha residência nesse lugar sem lugar que é o país estrangeiro onde nos encontramos.

É, justamente, nessa situação de deslocamento que ele constrói o que chama de “casinha da linguagem”. O prazer da escrita — vai revelando o filósofo — toma corpo por meio de uma impotência: “Entre prazer de escrever e possibilidade de falar, existe certa relação de incompatibilidade. Ali onde não é mais possível falar, descobre-se o encanto secreto, difícil, um pouco perigoso de escrever”. A relação com a morte permeia a incursão pela escrita e, mais uma vez, o distancia de uma busca da origem.

Espaço autoral
Foucault faz ainda uso desse momento para problematizar o espaço autoral (“fugir de si mesmo”) e sua experiência da escrita, chegando a dizer que se escreve “também para não ter mais rosto”. Nesse sentido, escrever é colocar e medir distâncias, é a descoberta dessa distância, não é imprimir certa existência monumentalidade. Em relação a essa entrevista que não deixa de ser um processo de desnudamento, Foucault fala da sua perplexidade sobre a publicação desse material, coloca em questão a qualidade “dessas coisas” e diz sentir-se um “pouco apavorado diante da ideia de que um dia elas serão conhecidas”.

Enigma, repulsa e atração são alguns dos sentimentos trazidos à baila. “Escreve-se para se chegar ao limite da língua, para se chegar, por conseguinte, ao limite de toda a linguagem possível, para fechar enfim através da plenitude do discurso a infinidade vazia da língua”. Com efeito, a experiência com a linguagem, a loucura e a transgressão do literário delineiam-se como os três eixos de A grande estrangeira, que conta com uma apresentação assinada por Philippe Artières, Jean-François Bert, Mathieu Potte-Bonneville e Judith Revel. O que se abre é uma montagem complexa e dialogante de textos produzidos, entre 1963 e 1970, para ocasiões de intervenção oral, divididos em três partes. O conjunto inicial, A linguagem da loucura, é a transcrição de dois programas radiofônicos transmitidos em janeiro de 1963, O silêncio dos loucos e A linguagem enlouquecida. Ambos tratam da loucura e da sua relação com a linguagem. Se no primeiro, o que sobressai, com a análise de Shakespeare e Corneille, é como a loucura é lida e representada pela linguagem, no segundo, Foucault traça um percurso, recorrendo a Artaud, Leiris dentre outros, para pontuar que a literatura e a loucura “têm um horizonte comum, uma espécie de linha de junção que é a linha dos signos”.

Linguagem e literatura é a segunda parte, fruto de uma conferência em Bruxelas, em dezembro de 1964. Foi primeiramente publicada no Brasil, em 2000, por Roberto Machado, no livro Foucault, a filosofia e a literatura. A pergunta “O que é a literatura?” é o mote da primeira sessão, que dialoga com outros escritos de Foucault no início da década de 1960. A forte relação com George Bataille e Maurice Blanchot resta como referência, ao lado de outros nomes como Sade, Joyce, Cervantes, movimentos que lhe permitem olhar para a obra como cristalização e transgressão. A literatura, portanto, como “ser de negação, e de simulacro, que toma corpo no livro”. Na segunda sessão, o filósofo muda o foco, centra-se na crítica literária, criticando-a fortemente. Para além da retórica ou de uma perspectiva baseada na identidade (Saint-Beuve), Foucault propõe uma análise em que “a obra não cessa de se designar no interior de si mesma”, apontando dois nomes iniciais significativos: Barthes e Starobinski. A análise da literatura, enfim, “mergulha num domínio de signos que não são ainda signos verbais, e, por outro lado, ela se estende, se eleva, se alonga em direção a outros signos, que são muito mais complexos que os signos verbais”. A literatura como lugar essencial da linguagem.

A terceira parte, Conferência sobre Sade, é a segunda conferência, nos EUA, em 1970. A questão colocada por Foucault, a partir de A nova Justine, é a imbricada relação entre verdade e desejo: “o problema de Sade é demonstrar uma verdade — uma verdade absolutamente ligada à realização de um desejo”. Na segunda sessão dessa conferência, a leitura de Sade é agora trabalhada em relação à “ordem do discurso”, a problemática central é a liberação do desejo da subordinação à verdade, que será retomada, no mesmo ano, na aula inaugural no Collège de France.

A variedade dos temas e dos textos, aqui reunidos, não impede um olhar transversal para os mesmos. De fato, a reflexão sobre a experiência com a linguagem e sobre a relação com a escrita permeia essas páginas, apontando para a potencialidade do caráter transgressor: “A língua é aquilo com que se pode construir um número absolutamente infinito de frases e de enunciados”.

O belo perigo e A grande estrangeira
Michel Foucault
Trad.: Fernando Scheibe
Autêntica
288 págs.
Michel Foucault
Nasceu em Poitiers, em 15 de outubro de 1926. Licenciou-se em Filosofia e em Psicologia, pela Sorbonne, onde, em 1961, obteve o doutorado. Publicou História da loucura na Idade Clássica (1961), As palavras e as coisas (1966) e Arqueologia do saber (1969). Ingressou no Collège de France em 1970, onde anualmente ministrou, até 1984, importantes cursos. Em 1975, publicou Vigiar e punir e, em 1976, o primeiro volume de História da sexualidade. Ao lado de importantes intelectuais e artistas, na década de 1970, Foucault promoveu uma série de manifestações políticas contra o racismo, o sistema prisional e psiquiátrico francês, a repressão na União Soviética, o fundamentalismo islâmico e o franquismo, ou a favor, por exemplo, do aborto, dos refugiados chineses, dos militantes bascos, dos negros e dos homossexuais. Foucault faleceu em 25 de junho de 1984, em Paris.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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