Ao ver O homem bumerangue na lista de possíveis livros para se resenhar aqui no Rascunho, a primeira coisa que me veio à cabeça foi Bumerangue blues, música escrita por Renato Russo e dada de presente a um Barão Vermelho que ainda tinha Cazuza em seus vocais. A letra, como é de se imaginar, fala de ciclos, voltas, mas lembra que o bumerangue, quando cumpre sua função — acertar o alvo, pois é primordialmente um objeto de caça —, não retorna para o seu ponto de origem.
Essas idas, voltas e possíveis viagens sem retorno têm bastante a ver com o livro de estreia do jornalista e tradutor Téo Lorent (que, num lapso cognitivo, minha cabeça ainda insiste em chamar de Léo Torent, provavelmente por influência dos arquivos para se baixar quase tudo pela internet). O homem bumerangue reúne onze contos protagonizados por personagens masculinos que fazem transições entre países, relacionamentos e experiências. Vão, voltam, passam por lugares como Barcelona, Mississipi ou Salvador, erram muito, mas, às vezes, acertam.
Um dos melhores do volume, o conto de abertura, Na pedra da praia, é bastante simbólico como abre-alas do livro de estreia de um autor. A narrativa conta a história de um piloto de avião que, inspirado por Hemingway, após realizar o seu último voo, finalmente tem tempo para se dedicar à carreira de escritor e trabalhar em sua primeira narrativa.
“Depois de ter sido um comandante de avião, agora iria se tornar um homem das letras”, diz o narrador, retomando a velha questão: quando é a hora de se tornar um escritor? Como se isso fosse algo que se faz do dia para a noite, e não um processo contínuo de aperfeiçoamento na lida com as palavras.
Entretanto, apesar de ser uma peça razoável, a prosa de Lorent já apresenta alguns pontos duvidosos no próprio Na pedra da praia. Veja:
Mas, quando começou a escrever o que lembrava do acontecido, deu-se conta de que a turbulência severa era sempre aquela que estava por vir e não a que passou, pois cada voo é um voo, cada viagem é uma viagem, uma jornada é uma jornada, independente de a rota ser sempre a mesma. Olhou para aquela noite equatorial, fria e chuvosa e, como um comandante que fora sempre, preparado para enfrentar qualquer intempérie sobre o Atlântico, alçou voo na escrita sem se importar com o tempo que levaria para chegar ao destino que as palavras quisessem alcançar.
Os grifos ficam por minha conta. O primeiro trecho (“cada voo é um voo, cada viagem é uma viagem…”) é de uma obviedade, inclusive estética, tão grande que deveria ter sido limado da narrativa. No outro, a crítica é em relação à postura do comandante junto às palavras. Meu caro ex-piloto, se você é o autor, o artista, quem deve saber o que elas alcançarão é você. Por mais que muitas vezes elas pareçam ter vida própria, as palavras não devem se impor sobre quem as escreve.
Sigamos com outro trecho de gosto duvidoso: “Sendo que, ao contrário do que se imagina nos trópicos, um frio assim é fogo puro”. Um frio assim é fogo puro… Um frio assim é fogo puro… Parece letra de alguma música brega. Está no conto Na tundra, no final do primeiro parágrafo, escrito num tom que se assemelha aos documentários da National Geographic (Na savana africana, a chita espreita sua caça…), o que, se não chega a ser exatamente um equívoco, é no mínimo curioso.
Outra parte problemática está no final de A morte do cantor sertanejo (vai rolar spoiler aqui, se não gostar disso, pule o parágrafo). Após conseguir levar uma desejada mulher para cama, o protagonista esbarra no controle remoto e a televisão anuncia a morte de um cantor sertanejo do qual a moça era fã. Ela desaba a chorar e a transa é interrompida. Contudo, a construção da cena feita por Lorent, privilegiando o diálogo, não dá conta de transmitir as emoções — sofrimento e tristeza por parte dela, raiva e decepção por parte dele — do momento ao leitor.
Em todo o livro, o ponto alto é O marido, a melhor peça de O homem bumerangue, com um marido tradicional tentando aceitar a realidade de moças que vivem com maridos de aluguel. O autor apresenta um humor agradável, com um toque de Luis Fernando Verissimo. Entra até em questões futebolísticas: “Ontem eu mesmo tinha certeza de que o Palmeiras iria voltar a ganhar e apostei com um colega… seguro de que ganharia…”, diz um personagem. “Mas aí é se precipitar demais, senhor há de convir”, retruca outro. Do jeito que as coisas andam, logo o meu São Paulo ocupará o lugar do time de verde nas piadas.
Um Kid Abelha
“Fomos ao Brasil achando que era o paraíso da liberdade natural e vimos que não, é como qualquer outro lugar no mundo, onde temos que buscar nossas praias. Interessante que não evoluímos nada no conceito da moralidade. Pode?”, diz um dos personagens do autor. A nudez e o naturalismo encontram o seu lugar na obra. Porém, parece faltar tesão às crias de Lorent. Ficam pelados, mas não sensualizam; fazem amor, não transam; fumam maconha, mas não chapam. Parecem nunca ultrapassar a barreira do razoável.
Por fim, comecei a resenha falando de música, e esta arte é um dos traços mais marcantes dos contos de Lorent. O tempo todo nos deparamos com referências explícitas ou veladas a nomes diversos, como Bob Marley, Manu Chao, Milton Nascimento, Elis Regina, Chico Buarque, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso e até mesmo a pop Alanis Morriset (um personagem mergulha na letra de Ironic). Uma pena que o autor não alcance a graça de boa parte dos nomes citados. Também não é chato como um pagode meloso ou uma sofrência qualquer, veja bem. Está mais para um Kid Abelha, algo insosso, que não incomoda, mas também não empolga.