— Ei, você não é o Marcio que escreve no Rascunho?
— Também escrevo na revista Idéias.
— Eu leio as resenhas que você escreve.
— Mesmo?
— Leio tudo que você escreve.
— Sério?
— É. Mas não gosto de tudo.
— Nem eu.
— Nem você?
— Nem eu.
— Posso me sentar?
— Claro. Por favor.
— Marcio, você já leu o livro do Cremasco?
— Histórias prováveis?
— Esse mesmo.
— Acabei de ler.
— E daí, Marcio? Que tal?
— Bom.
— Bom?
— Bom.
— Esperava mais de você, Marcio.
— O quê?
— Esse é o seu parecer sobre o livro?
— O livro é bom.
— E por que é bom?
— O Cremasco trata de impasses. Os contos mostram o homem diante de impasses…
— Marcio, desculpe interromper, mas você está repetindo essa palavra, impasse, em muitas resenhas. Você está se repetindo, sabia?
— Bebe algo?
— Sim.
— Garçom, dois cafés, por favor.
Impasses
— O segundo conto, O livro de geografia, tem a ver com isso que chamo de impasses.
— Esse conto é bom, Marcio.
— Claro que é bom. É ótimo.
— Por que é ótimo, Marcio?
— Você leu, não leu?
— Lógico que li.
— Então você sabe do que estou falando. O personagem se propõe a escrever um livro de geografia. Do mundo. Depois, percebe ser uma tarefa relativamente difícil…
— Daí, ele pretende escrever sobre a Terra…
— Desiste e tenta escrever sobre as Américas…
— E assim vai desistindo do projeto…
— Até se dar conta de que não conseguiria escrever nem mesmo sobre a sua geografia pessoal…
— Agora entendo, Marcio. Isso é o impasse, não é?
— Isso mesmo. O conto trata da impossibilidade de se fazer as coisas. Estou com livro aqui. Na página 30 tem um fragmento interessante. Vou ler. Posso?
— Pode sim.
A geografia da sua vida mudara e ele nem se dera conta. Desesperado, olhou para as mãos, vendo-as envelhecidas com dobras cartográficas que mudaram a sua geografia. Mirou-se no espelho e viu que o tempo lhe causara sulcos, pelos quais lágrimas escoavam feito os rios que nunca navegara. Esse mesmo tempo, que foi consumido na busca perfeita da perfeita geografia, trouxera o vazio de nada ter feito: nem o livro de Geografia nem a si próprio. No seu último suspiro pôs-se a escrever:
No início era o Caos…
— Ei, Marcio. Esse conto também trata da impotência. O personagem se dá conta de que a existência se aproxima do fim e ele não fez nada.
— Esse é o impasse dele.
— E de muita gente.
— No livro tem outros contos que também tratam de impasses.
— Por exemplo?
— O conto Esperança apresenta uma personagem que acredita numa existência melhor. E nada melhora.
— O nome dela é irônico, não é Marcio?
— Exatamente.
— O conto Casais: crônicas quase mórbidas também trata de impasses, impossibilidades.
— Também.
— Agora estou entendendo esse negócio de impasses.
— Casais: crônicas quase mórbidas é dividido em três fragmentos, e os fragmentos dialogam.
— É mesmo…
— No segundo fragmento, a personagem está conversando com o marido. Vou ler um trecho. Posso?
— Pode sim, Marcio.
Não carece me dirigir a palavra. O seu silêncio não mais aborrece. Deitarei. Também não precisa me aconchegar, envolver-me, aquecer-me. Passamos da idade dos casais que vivem se esfregando até durante o sono. Viro-me do outro lado para evitar a sua respiração. Você sabe que gosto de arzinho frio que refresca as noites maldormidas. Sinto-me ótima deitada de bruços. Levanto. Escovo os dentes. Ainda na cama? Tomo café. Você quer?
— Isso é bom, Marcio.
— Muito. O impasse aí é a dificuldade de relacionamento.
— Não é nesse conto que o marido…
— Está morto.
— Mórbido.
— E irônico. Mas muito bom.
— Bom mesmo.
— A personagem conversa com o marido. Mas ele já está morto.
— Impasse total, Marcio.
— O seu café vai esfriar.
— O seu também.
— Vou pedir um pão de queijo. Quer um também?
— Quero.
— Garçom, por favor.
Personagens
— Marcio, o Cremasco também escreveu contos em que os personagens não são humanos…
— Também.
— Tem um que o protagonista é uma onça…
— É o conto A onça-pintada.
— Tem outro com flores.
— Esse se chama As flores de Lírico Cravo.
— Que tal?
— Interessantes.
— Interessantes, Marcio?
— Isso. Interessantes.
— Você não está desconversando?
— É que eu prefiro A paixão segundo qualquer pecado.
— Por quê?
— Veja, o Cremasco escreveu alguns contos em que os personagens não são humanos. A invasão dos ratos fala dos humanos a partir de bichos.
— Tipo A revolução dos bichos?
— Lembra.
— Tipo Fazenda modelo?
— Também lembra. Mas no conto A paixão segundo qualquer pecado ele transcende.
— Transcende?
— O conto tem como personagens os pecados capitais.
— Preguiça, Ira, Avareza, Inveja…
— Isso mesmo.
— É, Marcio. Esse conto mostra também um impasse?
— Não há como não pecar. Esse é o impasse do protagonista. Mas o livro, de uma maneira geral, mostra impasses do humano diante do inesperado, do porvir, da condição humana…
— Os impasses do homem são o mote do Cremasco.
— É possível dizer que sim. Posso ler um trecho?
— Pode sim, Marcio.
Venho do palácio da Preguiça. Sou a Ira. Estou em uma colina cercada por pedras, vegetação rasteira e uma multidão de pecadores com as feridas expostas ao asco deste reino. Malcheirosos, sedentos, esfomeados. No alto, alguém, que daqui me parece ser o Pecador, fala sem cansar e solta no ar uma promessa destinada à massa ignorante. São palavras lançadas ao vento, laçando almas perdidas, adormecidas no doce embalar de um encantamento. Que multidão ensandecida! Sente e crê no que não tem sentido, e não vê o que é para ser visto.
— Ei, Marcio, vou pedir mais um café. Quer um também?
— Aceito.
— Garçom, por favor.
No presente
— Marcio, o que mais você tem a dizer sobre o livro do Cresmasco?
— É um livraço.
— Livraço?
— Sim.
— Diga mais sobre ele.
— Chama a atenção a divisão dos contos.
— Em números?
— Isso. O autor fragmenta os contos.
— Como se fossem rupturas? Fraturas?
— Isso mesmo.
— E que função tem isso, Marcio?
— Olhe, o primeiro conto, Histórias prováveis, que empresta nome ao livro, funciona bem com tal recurso.
— Por quê?
— Histórias prováveis tem várias partes, cada uma trata de uma situação. Mas há conexão entre todas as partes.
— Entre todas?
— Sim. São fragmentos, aparentemente aleatórios, mas que mostram impasses.
— Impasses. Você não conhece outra palavra, Marcio?
— Mas o conto trata justamente disso.
— Você pode ler uns fragmentos?
— Aleatoriamente?
— Aleatoriamente, Marcio. Pode ser.
Deixou uma pasta amarela como quem se livra de obrigações, transferindo-as para mim. Dias depois, morreu.
— Só isso, Marcio?
— Vai outro agora.
Era doida. Maluca comum. Comia o vento. Bebia a chuva que do céu não caía. Nem sei explicar.
— Então, Marcio?
— Espere. Tem mais.
Vamos aprender com os pirilampos a arte de enxergar no escuro.
— Antes que você peça, tem mais.
Ontem encontrei um livro que fala.
— E mais ainda.
Em 2053 não estarei vivo. Não terei o privilégio de ver as coisas que nem imagino existir.
— Mas isso não é aleatório demais?
— Do jeito que eu li até que é.
— E então, Marcio?
— Mas os textos, na íntegra, têm sentido. Mostram impasses…
— Você só fala em impasses.
— Mas o conto e o livro tratam disso.
— Você não tem mais nada a dizer?
— Tenho.
— Então?
— Quer mais um café?
— Não, Marcio.
— Eu quero. Garçom, por favor.
Oscar Wilde
— Você está bebendo muito café, Marcio.
— Não dizem que café faz bem?
— Do jeito que você bebe deve fazer mal.
— Será?
— Fale mais sobre o livro do Cremasco.
— Você leu A importância de ser Oscar?
— O último texto?
— Esse.
— No texto da orelha está escrito que é uma novela.
— Vou encarar o texto como um conto. Pode ser?
— Pode. Você está dizendo…
— Conto ou novela, é um texto genial.
— Genial?
— O narrador, de repente, em meio a livros, encontra alguns personagens…
— Entre eles, Oscar Wilde.
— Genial.
— Por que genial, Marcio?
— Ele conversa com Wilde e Wilde responde com aquelas frases certeiras.
— Já fizeram isso com outros autores?
— Não vem ao caso. O texto funciona.
— O Wilde tem pontos de vista interessantíssimos a respeito de homens e mulher, Marcio.
— Também acho. Sobre a impossibilidade de homens e mulheres serem amigos…
— Me fale mais, Marcio.
— Olhe, preciso trabalhar.
— Já?
— Já. Foi um prazer conversar com você.
— O prazer foi meu, Marcio.
— Mas, desculpe perguntar, esqueci o seu nome…
— Esqueceu?
— Esqueci não. Não sei o seu nome…
— Ah, como você fala, não vem ao caso…
— Mas…
— É, Marcio. Sou um leitor.
— Eu também sou leitor.
— Estou de olho no que você escreve.
— Tudo bem. Preciso ir agora.
— Me prometa uma coisa, Marcio.
— Depende…
— Pare de se repetir nas resenhas.
— Vou tentar.