Ornitorrinco moldado pela engenharia e poesia

Em entrevista por e-mail, Marco Aurélio Cremasco fala de sua indignação diante da impunidade, tão comum no Brasil; de seu processo criativo; de sua formação como leitor e escritor; e dos caminhos possíveis da literatura
Marco Aurelio Cremasco, autor de “Histórias prováveis”
01/06/2007

Por Rogério Pereira e Marcio Renato dos Santos 

• A maioria dos contos de Histórias prováveis trata de impasses, impasses humanos. Esse é o seu mote? Por quê?
É por aí, mas não como algo sem saída, pois há a sua possibilidade na ficção a que me proponho. Existe a impassibilidade, mas não diante do sofrimento humano. Ainda que a mídia nos revele constantemente males sociais que nos afligem, fico estupefato pela impunidade. Esta impunidade se estende às mínimas coisas, a começar quando, por exemplo, da compra de um sofá. Paga-se e a mercadoria não é entregue na data acordada, além de descobrir que o tal do sofá não existia nas características quando da aquisição. O cliente vai atrás de seus direitos e é desrespeitado pelo vendedor e pelo dono da loja. Inconformado, recorre à Justiça por dano moral — e é ironizado por advogado, juiz — “isso é besteira, parece que quer tirar vantagem de coisas mínimas”. Pior ainda quando recorre à assistência médica dos planos de saúde: enfrenta-se fila, chega-se a um balcão e ouve “o médico solicitou erroneamente este serviço, é para ser assim… pois, de acordo com a norma… olha! não adianta reclamar — mas que gente mal-educada, não é beltrana? (para a atendente ao lado). Sabe senhor (a), aqui ninguém reclama e todos estão contentes com o nosso serviço, não é pessoal? (para aqueles na sala de espera que, inertes, silenciam)”. Ninguém reclama e explode em casa, com o cônjuge, com os filhos; extrapola com os vizinhos, com os colegas de trabalho — quando existe trabalho. Na falta deste, o tormento das horas avulsas e o sentimento da incapacidade que o consome quando se vê em um diploma pendurado em uma parede, cuja única função é a de alimentar traças que o corrói aos poucos. Ou o inverso disso, quando se lança na esperança de um diploma e por falta de instrução é discriminado. Então se discrimina por questões política, racial, de gênero, de orientação sexual, socioeconômica, por uma simples opinião diferente, etc. Mergulha-se na Era da desqualificação e da desumanização do outro. Devemos ficar impassíveis? Devemos ficar indiferentes? Este mote é essencial no conto A onça-parda em que o animal se alimenta, sobretudo, da Indiferença alheia. O que eu faço? Escrevo.

• Por que o senhor fragmenta alguns de seus contos, marcando assim: 1, 2, 3, etc. É para pegar um pouco do espírito desse nosso presente?
Em parte sim, pois o mundo, por ser fragmentado, nos abre em sutilezas prontas para serem captadas. A fragmentação nos possibilita desestruturar para poder recriar. Permite-nos dissecar para apreender o que se passa à nossa volta. Além disso, trata-se — neste livro — de um recurso estilístico. O conto que abre e dá título ao livro inicia-se com um fragmento no qual não há numeração e se mostra como apresentação para o que está por vir. O autor, de posse de uma pasta amarela abre-a e nota um caderno. A partir de então, começa a folheá-lo aleatoriamente e dessa maneira aparecem os textos enumerados: 1, 2, 3, 23, 31, 56, 89, 98… 197. Os outros contos que se seguem, de algum modo, completam a numeração do primeiro. Alguns desses contos, como o Casais: crônicas quase mórbidas, possuiu a sua própria numeração, induzindo a fragmentação da fragmentação. O resultado é a dissecação que pode resultar no espírito mencionado por você. A forma, neste caso, complementa o conteúdo.

• O último conto — ou novela, como preferem alguns — mostra um diálogo com Oscar Wilde, de quem o senhor é admirador, naturalmente. Quais outros autores foram decisivos em seu processo de formação como escritor? Quais têm lugar preferencial em seu cânone pessoal?
Não tenho cânone em stricto sensu de modelo, padrão ou mesmo referência. Tive e tenho autores que me despertam o prazer de ler e aguçam o meu espírito. Por exemplo, a descoberta do poema Ismália do Alphonsus Guimaraens foi uma revelação; mas esse poeta não estaria no meu — se assim posso denominar — panteão; mas o poema foi fundamental para estimular, em mim, a escrita. Aliás, a minha formação enquanto escritor se deve muito a poetas, com os quais guardo relação, diria, anímica e dessa maneira cito sem ordem de preferência: Fernando Pessoa, Paulo Leminski, Cruz e Souza, Manuel Bandeira, Mário Quintana, Álvares de Azevedo, Pablo Neruda e o Langston Hughes. Quanto à prosa, vêm-me alguns livros que me puseram a marca de Caim ainda na juventude: Capitães de Areia, do Jorge Amado, e o Cem anos de solidão, do Gabriel García Márquez. Em relação aos autores na prosa que carimbaram as minhas leituras estão o Franz Kafka e o Machado de Assis.

• O senhor usa em alguns contos, ao invés de humanos, personagens que são bichos, pecados capitais, até flores. Isso é uma leitura indireta desses tempos em que vivemos, tempos repletos de impasses?
A desumanização por qual passamos me incomoda sobremaneira. Considero uma leitura direta, ainda que por metamorfoses, metáforas e alegorias. Todavia, não é a única vertente de leitura. No caso específico dos pecados capitais presentes no conto A paixão segundo qualquer pecado, existe o foco para um determinado segmento do Novo Testamento, em que os “pecados” podem ser identificados a personagens bíblicos. É uma situação atemporal calcada em arquétipos, os quais, inclusive, podem ser observados em partes do conto inicial do livro: em vez dos pecados capitais, insetos. Acredito que o ser humano é talhado pelo martelo e o formão dos impasses, das impossibilidades. Essa questão, a dos impasses, não é apenas uma problemática contemporânea. Transcende o tempo e o espaço, bem como se acomoda nas diversas culturas em que o ser humano está inserido.

• Em alguns contos, o senhor faz crítica social. A ficção é um instrumento adequado para tal?
Sim. A ficção pode e deve ser um dos instrumentos para tanto. Clássicos como A revolução dos bichos, Admirável mundo novo, as peças teatrais do Oscar Wilde, os poemas de Langston Hughes denunciam, cada qual em sua época e da sua forma, as mazelas da sociedade sob diversos aspectos. No caso de alguns contos do Histórias prováveis, a crítica está lá, mas não panfletária ou de cunho político partidário. No conto A importância de ser Oscar, vários diálogos são sustentados por uma visão crítica da sociedade vitoriana, por parte do Wilde, que pode ser replicada para a atualidade seja aqui ou na Inglaterra. No Histórias prováveis, são situações possíveis de acontecer, só não acontecem devido ao absurdo do que se apresenta enquanto escrita, mas não quanto à reflexão dessa escrita.

• Qual a sua ambição ao escrever contos? O que está por trás da sua escrita?
Noto, nos livros recentes de contos que li, a preocupação quanto à condensação da escrita, em que se procurar enxugar o texto à secura absoluta, ou mesmo cortá-lo ao extremo até perfurar a alma de quem o cria. Dizem que é um reflexo do mundo contemporâneo, regido pela pressa e pela falta de tempo. Isto me incomoda, pois a mim — apressado por natureza — busco a calma pela leitura. Esta calma está na descoberta do que está contido nas entrelinhas ou pela arte zen de descascar cebolas — inclusive com o direito de me emocionar. Talvez seja esta a minha ambição em escrever contos e compartilhá-los. Quanto ao que está por trás da minha escrita ou entre as camadas daquelas cebolas, gostaria que me dissessem, pois não sei ao certo.

• Ao lado de Ademir Demarchi, que assina a orelha de Histórias prováveis, o senhor fundou a revista Babel, dedicada à poesia, tradução e crítica. Como foi a experiência? A provocação de que há mais poetas do que leitores de poesia no Brasil faz algum sentido?
A Babel foi concebida a três: o Ademir Demarchi, o Mauro Faccioni Filho, e eu. Na época da elaboração da revista, entre 1998 e 1999, eu estava nos EUA, o Ademir, em Santos e o Mauro, em Florianópolis. A provocação para o nascimento da Babel nasceu por parte do Mauro, muito mais por indignação sobre um possível marasmo que pairava sobre nós. Além de falarmos e darmos pitacos nas nossas produções, atrevíamos a outros além do trio. Façamos uma revista!, foi o Ipiranga do Mauro. Entrei com o fogo e o Ademir, prudente, com a água. Só pode ser coisa de engenheiros (o Mauro além da formação de engenheiro elétrico, possui o mestrado e o doutorado nessa área) — bradou o Ademir abaixo do equador. Por fim, o Ademir topou, mesmo porque sem ele a revista não seria possível. Inicialmente, a proposta era a de a revista, além de impressa, ser direcionada tão-somente à poesia, principalmente para dar espaço a pessoas como nós: os sem-teto da poesia. O Mauro — rebelde desde os seus tempos de cineasta — sugeriu traduções. Também tradução pura e simplesmente não caberia, gostaríamos da análise crítica — segundo a nossa ótica — sobre o traduzido. Coube ao Mauro e a mim essa tarefa. Algo que eu jamais aventava em me aventurar. Com a revista concebida e estruturada, o Ademir sentiu a necessidade da aproximação da leitura acadêmica (vai ver ele estava de saco cheio dos engenheiros). Quase no apagar das luzes da primeira edição, ele, Ademir, convidou a Susana Scramim, da Universidade Federal de Santa Catarina, para compor o corpo editorial da Babel. Com a vinda da Susana e com a própria formação do Ademir (formado em Letras, mestre e doutor em Literatura), a Babel ampliou a sua abordagem para uma revista de poesia, tradução e crítica. Logo no primeiro número, tivemos poemas do Milton Hatoum que, naquele momento, era conhecido principalmente pelo Relato de um certo Oriente. O Ademir entrevistou o Boris Schnaiderman, além de publicar poemas do Sérgio Rubens Sossélla que, a partir de então, estabeleceu um contato bastante amistoso com a revista. Coube ao Mauro a tradução daquilo que se denominou de novos poetas estrangeiros, em particular, o americano Jeffrey MacDaniel. Nessa linha, eu me aventurei em um ensaio de apresentação, bem como na tradução de dez poemas do Langston Hughes, um dos ícones da poesia norte-americana e não tão divulgado no Brasil. A Babel foi lançada oficialmente no primeiro semestre de 2000 e a sua recepção foi além do que imaginávamos. Foi uma experiência e tanta, tanto no apuramento da literatura que eu praticava quanto para ouvir outras vozes. E são muitas as vozes que desde aquela época ressoam por aí, bem como outras surgem no eco da internet por meio das revistas virtuais e pelos blogs. Sob este aspecto e utilizando-se a web, existem poetas na medida certa para leitores de poesia no Brasil. É só navegar que cada um vai encontrar a sua praia. A questão que fica é quando se procura migrar do www para o impresso, daí a coisa muda, pois existirá — a partir de então — mais poetas do que compradores de poesia no Brasil.

• Como é o seu processo criativo? Como se deu a construção dos contos de Histórias prováveis?
Não me programo para escrever rotineiramente e com hora marcada. Não sou de brigar com musas ou sentar e ligar a maquininha da escrita para digitá-la em frêmito. Caso apareça um tema interessante, principalmente em relação à prosa, o idealizo e, quando necessário, faço uma pesquisa preliminar para subsidiar a escrita. A primeira versão sai desestruturada, caótica, contudo com a essência do que pretendo. Constrói-se o conteúdo que aos poucos dá corpo à forma, a ponto de ela começar a interferir no conteúdo, do modo como eu lhe respondi na pergunta sobre a numeração dos fragmentos. Os contos de Histórias prováveis foram escritos ao longo de duas décadas, com mais afinco nos últimos cinco anos. Cada um deles tem história e identidade própria, entretanto conservam o mesmo corpo textual, assim como apresentam certo parentesco temático, que está sintetizado no título do livro. Abre, como mencionei, com o Histórias prováveis. Este conto começou a ser escrito em 2000 e finalizado em 2003. Inicialmente, eu o imaginei como fábulas isoladas, mas percebi que guardavam a unicidade do que é plausível ainda que beirasse ao absurdo, como a paixão de um pernilongo por uma bela jovem ou mesmo alguém debruçado sobre uma barata, contemplando a morte do inseto, como Narciso à beira do lago. O segundo conto, O livro de Geografia, escrito em 1995, nasceu depois de eu finalizar o meu primeiro livro técnico. Após terminá-lo, aflorou-me a sensação do vazio. Desse modo, o Teo — personagem central do conto — insiste em escrever um livro que contivesse tudo sobre geografia. A partir de então, outros personagens surgem de maneiras estapafúrdias: da ponta de um cigarro, das páginas de uma revista de astronomia, de um raio de sol, para questioná-lo sobre o domínio do tema. O terceiro conto, Esperança, nome da personagem central e cuja descrição resvala no kitsch, morre e por ser demais bondosa substitui a S. Pedro na guarda das chaves do Céu. Essa seria a primeira leitura, mas que bem poderia se identificar à alegoria que a nomeia. O quarto conto, Casais: crônicas quase mortas, segue a proposta do anterior. Os fragmentos foram concebidos como crônicas e com fluxo temporal definido, mas quando lidos em conjunto compõem um texto único e atemporal, inclusive com o último fragmento escrito de trás para frente, quase frase a frase, para potencializar a sensação de não-temporalidade. Esses dois contos foram escritos em 2005, enquanto o próximo, A onça-parda, em 2004. Neste conto, a onça-parda foge de uma reserva florestal devido à queimada, refugia-se em uma metrópole e não é percebida. A onça-parda sou eu, você, aquele que nos lê e que anda por Curitiba, Campinas ou Chicago lutando contra os tais dos impasses em que você bem percebeu nas suas perguntas anteriores. As leveduras, em que primeira versão é de 1984, foi elaborado enquanto eu fazia estágio em uma destilaria de álcool em Astorga, interior do Paraná. Incomodava-me ver os canaviais bateram à porta das cidades. Apesar do tempo, este conto quase não sofreu modificações, pois transcorridos vinte e poucos anos esse incômodo ainda me povoa. A invasão dos ratos foi concebido em 1985 e trata, em essência, do poder: oposição em determinado momento e depois situação, um assumindo o discurso do outro, devorando-se e sendo governados pelos de sempre. O conto que se segue é o Paixão segundo qualquer pecado, que comentei anteriormente, foi escrito em 1990 e retomado em 2002. As flores de lírio cravo é um blues delirado em 1986 no meu mestrado no Rio, e retomado em 2003. Refere-se à trajetória do Lírio Cravo e os seus amores: as flores. O Lírio é extremamente solitário e busca consolo nos bares. Cada flor tem um significado que serve de provocação ao leitor para descobri-lo e assim descascar mais uma camada da cebola que a leitura assim o possibilita. O penúltimo conto, A teoria do enroscamento, escrito em 2003, foi baseado em uma conversa de bar com um colega, em que categorizávamos pecados, associando-os a personagens históricos e tendo como pano de fundo a questão da culpa. Foi o tipo da conversa descartável, mas que me pererecou na mente por pelo menos um ano, até eu pô-la no papel. O último conto, A importância de ser Oscar, iniciado em 1998 e finalizado em 2004, foi o mais trabalhoso. Não por sua extensão, mas por sua formulação e formatação. As falas do Wilde foram extraídas de suas obras. Às vezes uma seqüência de frases proferida por ele, é uma montagem em que cada frase é retirada de uma determinada obra, como uma espécie de mosaico da produção literária do Oscar Wilde. A leitura e a seleção dessas frases foi em inglês que, depois de montada a seqüência, passou à tradução. Escrevi-o de diversas formas, entre elas uma versão para o teatro para ver como ficava. Não ficou. Voltei para o formato original, pois a minha maior dificuldade foi a de encontrar ritmo, dar forma final ao tempo de não fugir do conteúdo, pensado assim da proposta do bate-papo com o velho Wild.

• Há algum diálogo possível entre a atividade de professor na Faculdade de Química da Unicamp e a de escritor?
É total e constante, pois enquanto professor na FEQ também escrevo. Foram vários relatórios, teses acadêmicas, artigos científicos, solicitações de patentes e livros técnicos. E não só a minha escrita, como a dos meus alunos de iniciação científica, de mestrado e de doutorado. São atividades que mantêm a escrita, cujo objetivo é a de estabelecer e sustentar a comunicação em vários níveis e interlocutores. Quanto à literatura propriamente dita e aqui entendida fora da minha área de formação e atuação profissional, ela absorve muito da minha literatura técnica, como o método, a reflexão e o foco. Por outro lado, contribui com a técnica da escrita em si e com certa dose de flexibilidade quanto à rigidez da literatura técnica. Neste caso, enquanto escritor, sinto-me um ornitorrinco, um ser híbrido moldado pela engenharia e pela poesia.

• É certo que a literatura de um modo geral tem perdido muito espaço no imaginário das pessoas. O cinema, a televisão, a internet, a imprensa “roubam” boa parte do tempo que poderia ser destinado à leitura de ficção. O senhor concorda que a literatura é, cada vez mais, algo para poucos?
Harry Potter é para muitos, os livros do Paulo Coelho e do Dan Brown também. Penso que guardam semelhança com outros veículos como o cinema e a televisão, pois são digeridos com mais facilidade e vendem. E vendem muito bem; viram filmes, séries televisivas e vendem muito mais. Os apreciadores da arte literária, em número, são mais ou menos os mesmos ao longo do tempo, com uma leve tendência ao crescimento, mas que se dilui quando comparados à população crescente de consumidores daqueles veículos citados há pouco. A internet, por sua vez, é um caso à parte. Ela nos rouba um tempo precioso, porque está literalmente ao alcance das mãos e é o mais barato dos tais veículos. Navegamos em mares inumeráveis de besteiras, inclusive literárias. Todavia, existem sites excelentes de literatura, com corpo editorial respeitado, que faz o papel importante da divulgação dos trabalhos daqueles que ainda não estão no catálogo das editoras comerciais.

• Quais os melhores caminhos — ou os possíveis — para se formar um bom leitor?
O Caminho suave! Digo Caminho suave porque foi a minha primeira cartilha, o instrumento pelo qual fui alfabetizado. Este é o começo do caminho e não existe outro, a não ser o da educação. Aqui, recordo da máxima do Nailor Marques Jr., velho sábio chinês maringaense, que, no seu A lei de Zeca e outras leis, diz que a nossa guerra educacional ainda está na luta primitiva do arroz, feijão, saúde e educação. Não é difícil identificar no chinês as necessidades básicas do ser humano no que se refere à alimentação e à saúde. Tais necessidades, por outro lado, são complementadas por outras como às lembradas pelos Titãs: a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte. Creio que não é a educação centrada tão-somente no saber ler e escrever que o povo vai ter acesso à leitura ou à arte, mas no saber ler, escrever e compreender: a educação funcional. Como se pode formar um bom leitor com a escrita e a leitura se ele não entende o que escreve e/ou o lê? O bom leitor não se faz simplesmente com a quantidade de leitura, quantificada no número de livros lidos, mas com aquilo que apreendeu. Existem algumas políticas de distribuição de livros pelas bibliotecas. Isso é ótimo, mas que tal incentivar a ida dos autores para comentar as suas obras, em especial junto aos leitores mais jovens, em particular para despertar e saciar a curiosidade das crianças? E aqui não precisa ser — necessariamente — autores de obras infanto-juvenis, pois a primeira pergunta que nos fazem, invariavelmente, é: o que é escrever? Por que você escreve? É gostoso? Então tá, também serei escritor. Isto me disse alguém no alto de seus oito anos. Enfim, há dois vetores: ter acesso constante a um ambiente apropriado para a leitura e motivação.

• Como a literatura começou a ocupar espaços em sua vida? De que maneira o senhor virou um leitor e, em seguida, um escritor?
Nasci em Guaraci, norte do Paraná, na época do café. Cresci como qualquer menino pé-vermelho: correndo atrás de bola de futebol, nadando em riachos, namorando passarinhos e, claro, roubando mangas, goiabas e jabuticabas nos sítios da redondeza. Seguindo o Caminho suave, minha mãe me pôs no Colégio São José. Além da alfabetização e doutrinação, a prática artística era uma constante, seja em trabalhos manuais seja em encenações em dias das mães, dos pais e por aí em diante. Como sempre tive dois tornozelos no lugar das mãos, trabalhos manuais não eram comigo. As Pastorinhas encontraram a saída no canto. Como a voz sempre foi perto de qualquer coisa horrível e braços terminados em tornozelos, eu não estava para cantar ou tentar algum instrumento, ainda que fosse um pandeiro. Havia o teatro… e foi onde tudo começou. No início, encenações de passagens bíblicas feitas por um bando de moleques, que se divertiam em ver mães e pais aos prantos quando das apresentações. Apesar de atuar, eu gostava em dar palpites nos roteiros e com o tempo o diretor da rapaziada passou a ouvir e acatar as sugestões daquele guri. Tinha entre dez e treze anos. Ao mesmo tempo, na minha casa, havia a maior biblioteca do mundo. Seus quase cinqüenta volumes satisfaziam a minha curiosidade. O segredo estava nas páginas d’O tesouro da juventude. A começar pela contracapa, a qual continha uma ilustração de um menino e uma menina em um tapete-voador pairando sobre diversos monumentos e paisagens do planeta. Já era uma viagem. Nessa caixa mágica havia o livro dos porquês, tipo você sabia que, o livro da poesia, resumos de romances. Bebi naquela fonte e ainda a revisito quando visito a D. Maria. Ali me tornei um leitor voraz. Não posso deixar de mencionar o incentivo de uma professora de português, quando estudei no Ginásio Estadual João de Giulli. Ela nos tirava da sala de aula, levava-nos ao jardim da Matriz e nos fazia prestar atenção nas árvores, nos frutos, nos pássaros para, então, criarmos histórias. Propus-me a escrever, agora morando em Santa Fé, cidade vizinha a Guaraci. Fiz alguns poemas, atrevi-me a enviá-los para a Folha de Londrina, e foram publicados. Nessa época eu fazia cursinho em Maringá e para a minha surpresa, um professor de português parou a aula, tirou um papel do bolso e leu um dos poemas da Folha. Continue, disse-me. Continuei, mas entrei — no início da década de 1980 — na Engenharia Química da Universidade Estadual de Maringá. Passei a publicar poemas no Jornal do DCE — que vim a fazer parte junto da antológica turma do Próximos Passos. Foi um período efervescente: movimento estudantil, cultural; participação nos festivais Femucic (Festival Cidade Canção — Maringá) e Femup (Festival de Música e Poesia — Paranavaí). Como pode perceber, fui moqueado no caldeirão cultural do norte e noroeste do Paraná. No início da década de 2000, eu havia sido premiado em vários concursos literários, publicado livros de poemas, incluindo A criação (Prêmio Xerox & Livro Aberto), além do meu primeiro livro técnico, Fundamentos de transferência de massa. Ainda que a Babel viesse a ocupar um espaço importante, a minha produção literária e o ânimo começavam a rarear. Em 2003, surgiu o Prêmio Sesc de Literatura. O Santo Reis da Luz Divina, meu primeiro romance e que vinha sendo escrito desde 2000, conquistou a premiação e como conseqüência foi publicado pela Record em 2004. Em 2005, o Santo Reis foi indicado ao Jabuti e publiquei o meu segundo livro técnico, Vale a pena estudar engenharia química. E agora, novamente com a Record, Histórias prováveis.

• Mario Benedetti diz que “a escritura é um abrigo”. Para o senhor, o que é a escritura?
Como pode ser notado das respostas anteriores, não me imagino sem escrever. Não me policio se este ato advém da literatura técnica ou da não-técnica, e mesmo dentro desta se é romance, conto ou poesia. O ato de escrever é traduzir-se. Buscar-se e compreender. Dar significado ao olhar. Dar sentido à diversidade. Escrever é reduzir-se para ampliar, é incomodar-se para provocar a si próprio como ao outro. Existir.

• O senhor acompanha a literatura contemporânea brasileira? Qual a sua opinião sobre o grande número de autores em evidência neste momento? Da quantidade sai a qualidade?
Gostaria de ler, de conhecer mais o pessoal. Contudo, essa questão passa — ao meu ver — primeiramente por uma reflexão sobre o que é contemporâneo, pois tal conceito como que existiu na mesma época é, de certo modo, regido por um preceito einsteiniano de ser relativo, pois aquilo que poderia acontecer em uma determinada época e em certo lugar, pode levar anos para acontecer em outro. Divago aqui sobre contemporaneidade enquanto o que é da época atual, acontece ao mesmo tempo e em espaço distinto. Neste sentido, o mundo nunca foi tão contemporâneo de si mesmo como o é agora. Isto graças à revolução midiática em curso, em que fatos e eventos substanciais que ocorrem em qualquer parte do planeta atingem, on-line, quase a todos nós, refletindo-se na natureza humana e traduzindo-se em manifestações artísticas, incluindo a literatura. Vide os blogs transformando-se em romances. O www nos possibilita experimentar diferentes visões e cores. Sou levado a crer que a literatura contemporânea não aborda, necessariamente, o tempo atual, mas traz elementos atuais como: velocidade, síntese e objetividade. Cada um pode criar o seu lócus e dialogar com o universo, ainda que virtual. Vejo, portanto, como natural a profusão de autores, como também natural que uma parcela tenha evidência… e como a boa dialética nos ensina: da quantidade vem a qualidade. Agora, aquele autor que permanecerá será o que conseguir dialogar com o Tempo ou se contentar em ser uma simples representação pontual de uma época.

LEIA RESENHA DE HISTÓRIAS PROVÁVEIS

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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