Impacto suavizado

"A escolha de Sofia", de William Styron, não resiste aos dilemas do século 21
William Styron, autor de “A escolha de Sofia”
01/02/2011

De tempos em tempos, alguns livros assumem importância que excede o significado estritamente livresco, alcançando o status de fenômeno cultural de seu tempo. Para citar um exemplo contemporâneo, no momento em que o presente texto é escrito, existem pensadores que insistem que o Facebook é a plataforma que melhor traduz o espírito da chamada era da informação. E, de acordo com esse raciocínio, o filme que ilustra a trajetória da construção dessa comunidade virtual — A rede social, dirigido por David Fincher — seria a peça cultural que mostra como as “pessoas são moldadas por essa nova maneira de se relacionar uns com os outros”, para utilizar as palavras, quiçá alvissareiras, de um de seus realizadores. Em uma escala cuja relevância pode ser medida pelo número de livros vendidos, 10 milhões de exemplares, A escolha de Sofia, do escritor William Styron, pode efetivamente ser considerado um livro que marcou sua época. Não fosse pela sua cativante narrativa, pelo envolvente estilo do autor ou mesmo pela discussão filosófica que é desencadeada pelo confronto entre seus personagens, a obra é daquelas cujo título ganhou vida própria: que atire a primeira pedra quem já não ouviu dizer que “fulano de tal está diante da escolha de Sofia?” Em função disso, não há dúvida sobre a importância do relançamento do livro pela Geração Editorial. Todavia, a leitura do livro hoje pode mostrar que o impacto da obra já não é o mesmo.

À história: Stingo, espécie de alter ego de William Styron, é o narrador do livro A escolha de Sofia. Ele é também um dos vértices do triângulo afetivo que acontece na história, que tem como outros personagens Nathan e Sofia. Stingo é um aspirante a escritor e, de início, o leitor o percebe como alguém que tenta a todo custo se afirmar como um grande autor, algo que ainda ele não é. Stingo trabalha como assistente editorial em uma grande casa publicadora dos EUA, mas entende que seu talento excede àquela prática subliterária. Como conseqüência de sua saída do emprego, muda-se, também, de casa, indo para uma pensão de tipos pitorescos. Além de Yetta, a proprietária, e do rabino Moishe, e dos já citados Nathan e Sofia. Nathan é um jovem que impressiona todos à sua volta tanto por sua energia como por seus ataques de nervos. Sofia é a bela jovem que está ao seu lado, seja nas crises de temperamento, seja nos momentos de candura. Em boa parte do livro, a narrativa expõe as impressões de Stingo sobre o relacionamento entre os dois, mas é possível afirmar que o livro ganha fôlego quando passa a dar atenção à voz de Sofia. É ao ouvir o que a jovem tem a dizer que a história se torna importante. Sobre isso, é interessante observar a extensão da narrativa, e o autor busca construir uma grande moldura para tratar de um evento bem específico.

Eis uma diferença, portanto, em relação aos romances contemporâneos: a extensão de A escolha de Sofia é acima da média se se levar em consideração os livros que hoje são publicados. Entretanto, essa extensão da obra não representa acréscimo ou decréscimo no tocante à sua qualidade. Antes, atualiza o leitor de hoje sobre a estrutura concebida por escritores como Styron, que, por sua vez, rende homenagem aos grandes romancistas norte-americanos, como William Faulkner e Philip Roth. De qualquer maneira, e o que é importante para o leitor, a história é envolvente, densa, não fragmentada; portanto, sem as idas e vindas das escolas de escrita criativa. Styron é um prosador cuja tradição remonta ao período que precede as grandes alterações — e teses desconstrucionistas — das recentes escolas literárias. Em vez disso, o autor prefere uma história franca, investindo num narrador que pretende conquistar a atenção do leitor com um jeito algo verborrágico, sem tantos filtros para revelar suas impressões acerca do seu derredor. Tudo isso leva a criar uma sensação-limite entre a empatia e a repulsa pela maneira como o narrador percebe o que está à sua frente: seus valores, preconceitos e preferências. Styron tem o mérito de estabelecer um personagem vigoroso, capaz de agregar diferentes sentimentos.

Nazismo
E é por esse narrador que o leitor alcança, pouco a pouco, a história de Sofia. A despeito de todas as indicações, ela não é judia, mas viveu sob o jugo dos nazistas, chegando mesmo a estar em um campo de concentração. Aqui, outra vez, o livro ganha em estatura, porque estabelece uma conexão com grandes autores que estudaram, do ponto de vista teórico, a relação entre os torturadores do nazismo e os torturados. Assim, nomes como Simone Weil e, de forma mais detalhada, Hannah Arendt têm suas idéias divulgadas no romance, algo que definitivamente não é aleatório, indicando que o autor tinha fluência no tema, antes mesmo de qualquer estudante de ciências sociais citar As origens do totalitarismo como referência teórica nessa área. De volta a Sofia, é só a partir das revelações que o seu dilema existencial se torna compreensível para os leitores. Em outras palavras, não é possível entender qual é a escolha de Sofia se o livro não for devassado, uma vez que o verdadeiro drama e questionamento filosófico acontecem na exposição do contexto em que a então prisioneira dos nazistas vivia. No livro, o grande talento de Stingo se torna ser esse interlocutor confiável de Sofia, a quem a jovem revela segredos de que seu amante, o problemático Nathan, não tomava conhecimento com a mesma facilidade.

Eis, então, que enfrentamos a questão central do livro no presente momento histórico: por que sua leitura hoje pode não causar o mesmo impacto, ainda que as mesmas questões filosóficas e morais estejam ali expostas? A resposta, evidentemente, não é simples, tampouco objetiva, mas vale tentar esboçar algumas hipóteses. Em verdade, poder-se-ia apresentar um conjunto de fatores que tornam A escolha de Sofia uma obra mais diletante nos dias que seguem — do estilo do texto, um tanto auto-referente; às personagens, excessivamente românticas para esse século 21 de tempos líquidos e pós-11 de Setembro; passando, ainda, pelo choque cultural provocado por um eventual conflito de grupos sociais distintos nos Estados Unidos. Evidentemente, essas questões não estão definitivamente superadas, mas, da maneira como são apresentadas ali, carecem de conexão com os dilemas contemporâneos. Tais elementos, no entanto, são secundários quando se observa que tanto o dilema de Sofia quanto a insegurança que permeia a personagem de Stingo pertencem a um período em que a discussão existencial e moral tinha mais peso. Em uma sociedade pragmática e essencialmente individualista, na qual os relacionamentos se desmancham no ar, a escolha de Sofia pode ser tomada de maneira simplória, sem necessidade de segredos, porque mesmo agora tudo parece permitido, desde que todos estejam alertados a respeito.

Nesse sentido, é como se a sociedade tivesse incorporado a idéia da escolha de Sofia sem se importar com a relevância da A escolha de Sofia. Entre o parecer ser e o ser de fato, optou-se por terceirizar a consciência, anulando o que o livro tem de mais elementar. A essa altura, alguém poderia contra-argumentar, afirmando que é exatamente por esse motivo que a leitura da obra se faz necessária. Engano: o ponto é exatamente esse. Em que pesem a erudição e o refinamento da prosa, as questões fundamentais da contemporaneidade já não combinam com aquele estilo de texto, muito menos com aquele tipo de conteúdo. Para o bem ou para o mal, a globalização ajudou a pulverizar alguns conceitos e, infelizmente, existe certa anestesia contra o impacto produzido pelo livro. Para pensar: se aconteceu com um grande romance, o que será de um filme que fala de uma rede social?

A escolha de Sofia
William Styron
Trad.: Vera Neves Pedroso
Geração Editorial
632 págs.
William Styron
Nasceu em 1925, no sul dos Estados Unidos. É considerado um dos grandes escritores de sua geração. Além de A escolha de Sofia, escreveu As confissões de Nat Turner e The suicide run. A escolha de Sofia foi adaptado para o cinema em 1983. Styron morreu em 2006.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho