Um livro intitulado com dois substantivos. Um deles certamente cumpre a função de adjetivo, mas não pode deixar de ser lido também como substância nesse lírico percurso de hesitações da lembrança que é o Corpo continente, de Lorena Martins.
A poeta gaúcha, que hoje vive na Estônia, traça uma sorte de geografia afetiva do tempo e do espaço num livro dividido em duas partes, Mapa e Memória. Mas, justamente por tratar-se de uma geografia afetiva, ambas as substâncias, a do mapa e a da memória, vão se realizando mutuamente, entrelaçadamente. O mesmo se pode dizer das substâncias que nomeiam o livro, ou seja, o corpo se oferece feito carne de memória onde se traça o mapa, o continente. E este, cercado pelo mar, que não é apenas o que separa, mas também o que lambe a praia onde as pegadas da memória se volatizam, não pode ser pensado senão nas dimensões do próprio corpo.
Além desse entrelaçamento, há também a potência de adjetivo contida na substância continente. O corpo contém. Ele é a ilha onde a geografia afetiva acontece. Por isso o oceano, que a princípio separaria os corpos fazendo aumentar a saudade, na verdade é o lugar de não sentido do eu lírico. Nele, no oceano, o barco segue sozinho, sem a poeta — é o que nos dizem os versos de Sophia Breyner Andresen na epígrafe do livro:
Através do teu coração passou um barco
Que não para de seguir sem ti o seu caminho
Se assumirmos a epígrafe como uma conversa entre a poeta portuguesa e a existência lírica no livro, vemos que essa segunda pessoa com quem os versos conversam é a própria voz poética de Lorena. Sendo assim, a subjetividade que se inscreve feito memória no corpo continente deste livro parece não fazer do oceano um lugar ou motivo de saudade. É o que a própria jovem poeta gaúcha parece insinuar no fechamento do livro. No último poema, ela diz:
Descobrir que esqueci todos os nomes
da semana passada
que aquele barco
nunca existiu
Percebida a composição do livro, que está ainda mais fortemente delineada pelo verso final deste derradeiro poema, “antes de tudo recomeçar”, voltamos às substâncias que dão corpo ao todo, mapa e memória, cientes de que essa lírica não se esparrama em líquidas lembranças, antes, se deixa traçar em coisas mais concretas: recordações de um dia de sol, ou de muito frio, a cama bagunçada, um rosto, cabelos, um moletom, uma praça, um aceno de despedida.
A escrita de Lorena se insere, com isso, num cenário bastante recorrente da poesia contemporânea do Brasil. Ela faz vazar seu lirismo ao deixar ver pequenos gestos ou objetos: uma foto, um móvel, um olho fechado, dormindo, um lenço. A paisagem não está delimitada pela grandeza do oceano, está cartografada na delicadeza que só os instantes de silêncio permitem ver. Ou melhor, inventar. E essa tradição de memórias delicadamente inventadas conhecemos bem, vem de Manoel de Barros, com escrita pantaneira, passa visceralmente por Ana Cristina Cesar e pousa inspirada e cheia de ausências em Ana Martins Marques — agora também em Lorena Martins, que quer nos falar sobre lembranças.
Poetização das lembranças
As memórias do livro são hesitantes não porque há dúvidas acerca de algum passado, mas sim porque, além de criativa, a lembrança é puro desejo de também esquecer.
perder-me da tua casa
esquecer
o teu nome
Não há novidade talvez em perceber que o esquecimento e a lembrança compõem uma mesma carne, um mesmo corpo. A particularidade do lirismo deste livro consiste na proposição de que o próprio mar, elemento que se ligaria à distância, problematizando o esquecimento e a lembrança, habita em verdade o próprio corpo da poeta. Novamente, conforme a epígrafe já citada: “Através do teu coração passou um barco”.
Aqui está o corpo se fazendo continente como substantivo e também como adjetivo. Ele está cercado de mar, como numa geografia comum, mas também ele contém os mares dentro de si. E nesse mar, que também é peito, logo, está no corpo, o barco da recordação segue sozinho. Mais do que sem a poeta, como referido acima, esse barco segue sem poesia.
A beleza do livro está então em compor outro tipo de geografia, cujos instrumentos para a navegação do barco sejam única e tão somente a imaginação. E esta, sabemos, opera no nível da afetação. Corpo continente, livro que ainda traz alguma quietação pré-pandêmica, mapeia com o silêncio do olhar outra sensualidade. Uma sensualidade em Noite branca:
a boca dele só
de passear em meu pensamento
me deixa doce
ele tem cama dentro de mim
Podemos também chamar essa poética de Lorena de fenomenologia da memória, que, como já parece estar claro, é também a vivência do esquecimento e da poetização das lembranças. Formas de nos inscrevermos de maneira mais suportável no mundo.
Se vivemos tempos em que a inscrição dos corpos em liberdade ou em condição amorosa, erótica, vem sofrendo violências das mais diferentes formas, tempos em que a vida parece diminuída por vômitos moralizantes de uma gente sem poesia, inscrever-se com memória criativa na história de si pode consistir em exercício ácido e incômodo de perturbação dos bons costumes alheios, onde a memória confirma horizontes ao invés de fissurá-los.
Corpo continente é afeto. É deitar-se em cama própria e ver a luz do dia modificar as formas de ver ou ser em silêncio. Não é preciso gritar jargões políticos para desarranjar uma dinâmica ética anestesiante. Em muitos casos, basta mudar um oceano de lugar. Fazer das memórias um jeito criativo de ser. Na poesia cabe isso. Cabe o mar dentro do peito. A cama dentro da poeta. A lembrança no esquecimento.
Este livro parece dizer, por fim, que a literatura pode ser matriz de sentido incessante, onde não apenas podemos nos inscrever inventando memórias, fazendo caber o mundo dentro, mas também matriz por onde vaza o memorável do mundo.