Fragilidades afetivas

A narradora de "Olhos baixos", de Maria Helena Nascimento, assume a sua falta de encanto num mundo tão afeito aos interesses
01/01/2008

Olhos baixos, de Maria Helena Nascimento, é um livro que tematiza as relações afetivas de uma mulher de classe média, inserida em sua vivência no cotidiano. Apesar de o texto significar sua estréia em narrativa literária, a autora já é escritora experiente, com um amplo currículo em roteiros e textos de telenovelas e outros. Em entrevista, afirma que o grande desafio, agora, diz respeito à tomada de decisões individuais, ou seja, a perspectiva autoral, que diferentemente de um texto público e coletivamente construído, como as produções globais, das quais participa como co-autora, esse caráter encontra-se diluído ou partilhado no que toca ao produto final de uma narrativa literária.

Maria Helena Nascimento entra numa experiência nova e que, ao mesmo tempo, se oferece como continuidade do velho ofício da escritura. Cabe-nos, levando isso em conta, observar que em literatura “ensaia-se”, a partir da velha arte, sob a influência de novos instrumentos e tecnologias. Como isso se evidencia nesse texto em discussão? Em que medida a produção coletiva de um texto televisivo ou cinematográfico vem influenciando a literatura e determinando novas sensibilidades e formas de expressão?

É inegável que dentro do novo contexto contemporâneo e globalizado a literatura sofre influências decisivas de outras linguagens e, sem perder seu caráter, ganha novos atributos e recursos estéticos. Longe de ser ameaçada de extinção com isso, amplia suas potencialidades, sem abrir mão de sua natureza, na qual a palavra é o eixo central e determinante.

Olhos baixos não traz em sua apresentação uma definição de gênero específico. Muitas vezes, esta definição vem grafada na capa, acoplada ao título: contos, novela, romance. É isso também que, por um lado, tenta orientar o leitor sobre a tipologia textual que este terá pela frente ou, por outro, tende a desorientá-lo. Num momento em que as fronteiras encontram-se cada vez mais porosas, as definições se tornam irrelevantes, já que as produções híbridas se constroem com superposição de gêneros e com a relação dialógica entre linguagens diversas, que tradicionalmente não eram pensadas em termos literários algum tempo atrás. O cinema, a televisão, a internet são perspectivas que se refletem na linguagem literária, na qual a palavra continuará sendo, apesar de todas as experiências e inovações que se sucedem, o instrumento determinante na construção de sentidos e produção de efeitos estéticos.

Neste sentido, poderemos considerar o livro como romance ou novela, com um narrador-personagem que se impõe muitas vezes como um sujeito lírico, voltado para a expressão de seus sentimentos e emoções mais particulares e íntimas, como acontece na prosa poética. O que, entretanto, não deixa de ganhar um conteúdo generalizador, pois tais manifestações subjetivas dizem respeito a uma condição feminina do contexto social no qual a personagem está inserida. Quanto à estruturação, divide-se em três capítulos marcados com subtítulos significativos: A adestradora, Ruiva-rubi, A primeira faísca do sol que sobe. Cada uma dessas partes agrupa pequenas narrativas numeradas, a primeira com 11, a segunda com 14, e a última com 8 fragmentos. Esta estrutura, apesar da aparente irrelevância, tem uma função ordenadora de seqüências, fatos e impressões, de certa forma, caóticos. No conjunto do texto a presença do aspecto numérico também se destaca como uma necessidade premente da narrativa se fixar em alguma coisa mensurável, no meio da quantidade de situações sem limites e medidas como as palavras que escorregam e não se deixam prender a significados fluidos. Uma data que marca o atravessar de um rito de passagem, um número de telefone salvador que funciona como passaporte para saída do inferno, uma vizinha do 412, uma caixa postal com 23 recados, o preço de uma bugiganga que “tinha custado 200 euros e parecia ter custado 20” são elementos que fixam no tempo sentidos condenados à diluição pela imprecisão da linguagem verbal que se nega ao indizível.

A primeira parte reúne 11 fragmentos que se relacionam entre si num presente narrativo linear, entrecortado por reminiscências de um passado mais distante, ao mesmo tempo, presente na construção do narrador personagem, cujo ponto de vista é fundamental na trama. “[…] essa infância da qual nunca me livro está sempre voltando, como um refluxo ácido do estômago. Quanto mais ando para frente, mais colada nos meus calcanhares ela vem.” É sob o olhar feminino, em sua condição de mulher dependente do “outro”, em vários aspectos, mas principalmente o afetivo, que a ação se movimenta e toma corpo. Marido e mulher vivem um casamento como tantos outros, marcado pela distância de interesses e a incomunicabilidade de desejos, carências e verdadeiros sentimentos. “Não somos bons de conversa, nunca fomos…”, é dentro dessa constatação que a mulher se coloca a reboque do que julga ser o desejo do outro e recua em expressar a inquietação de sua carência de afeto e comunicação, até para si própria. Tudo isso é narrado em primeira pessoa, por uma voz feminina que tenta se autodefinir como conformada com o seu destino, quase como se esta fosse a única possibilidade de seguir vivendo. Já que não são bons de conversa, deveriam ser bons em outras linguagens, a dos gestos, a do corpo, por exemplo. Nas não é o que fica explícito quando a personagem, num momento crítico da relação, diz: “tentei não aparentar coisa alguma. Fiz minha cara neutra. Não preciso fazer essa cara, meu rosto já é neutro, mas ficou mais”.

O conformismo também não está em discussão, coloca-se como fato consumado: o mundo é dos homens; às mulheres cabe o papel coadjuvante de segui-los, servi-lhes de sombra. Isso se evidencia muito menos pela voz da narradora do que pela própria ação que se desenvolve em torno dos personagens. Num episódio no qual Liliane, uma amiga grávida, domina Fred, o cachorro da narradora, com palavras e gestos assertivos, esta pergunta se aquela não teve medo. A mulher responde: “— Não, não… — … ele sabe que sou mais forte. Tem um homem dentro de mim, ele respeita”.

Cegueira íntima
Na primeira parte do romance, a protagonista vai sendo construída sob a tônica da falta de vontade própria como decisão racionalmente tomada. “Eu iria agir contra a minha vontade. Porque minha vontade nunca mais quis o que é melhor para mim, essa é a verdade.” A decisão de ser indecisa e submissa ao destino adverso se insere no cotidiano como registro de uma realidade que se desdobra em distorção de si própria. Isto porque se mantém fiel apenas a um foco narrativo, sob o raio limitado apenas por um olhar que seleciona o que pode ver e do resto se isola numa cegueira muito íntima e imperceptível.

A narrativa constrói-se pautada por esse olhar. Quando tudo que estava em torno de sua redoma se descortina, o choque apresenta-se como a chance de ruptura e outra dinâmica se oferece à protagonista na segunda parte do romance. O corte é tão drástico a ponto de tornar, de certa forma, inverossímil as soluções encontradas pela narradora para a virada de vida. Ruiva, só, pobre e, à sua maneira, independente, segue vivendo como se nada tivesse a ver com a outra do primeiro capítulo. A continuidade é garantida pela linguagem com que é construída a trama. O cotidiano concreto e tão simples torna cada aspecto da ação, do tempo e do espaço convincente. Do ponto de vista da ação, o grande impacto se dá no momento em que a subjetividade da personagem desvia o foco de sua atenção do outro ou dos outros e passa a voltar-se sobre si mesma, mesmo que esta perspectiva não se sustente por muito tempo.

Os detalhes banais do dia-a-dia, muitas vezes inverossímeis, são seguidos pela câmara cinematográfica (por que não televisiva?) do olhar narrativo que, como recurso, utiliza cortes, seleção de lembranças e esquecimentos, mosaicos de fragmentos numa técnica de recortes e montagem. A composição é estabelecida por uma sintaxe própria na qual o banal ganha excepcionalidade na medida em que é enfocado com brilho e cores de imagens poéticas. A ruiva, rubi do subtítulo (1ª parte) e a primeira faísca do sol que sobe (2ª parte) são exemplos de imagens suspensas em significados múltiplos, desde os mais poéticos aos mais concretos e simples. Poética e cotidiano não se separam ou têm valoração diferenciada, com superioridade de uma em função de inferioridade da outra. Como manifestação de arte, a literatura perdeu sua aura desde os primórdios da modernidade e vem radicalizando a prerrogativa de incorporar-se à vida cotidiana, em suas diferentes formas.

Reinaldo Laddaga, em estudos sobre a mídia e a literatura, cita o americano Mark Amerika que afirma: “[…] a arte passa a se integrar nas tarefas da vida cotidiana, situando-se (…) na vasta estratosfera que aloja as culturas pluralistas em que vive”. Apesar de a discussão centrar-se nas influências da internet na literatura, podemos ampliar a questão para a influência das demais culturas interativas de massas, como a televisão ou o cinema, que reúne universos díspares, perspectivas múltiplas de enfoques “realistas”, na medida em que dramatizam especificidades consideradas corriqueiras, ao mesmo tempo em que têm como atributo criar identificação, ditar moda, ou ainda, em última análise, ser “verdadeiramente parte de um desejo maior de se vincular a um mosaico sociocultural”.

E o que tem tudo isso a ver com Olhos baixos? Neste livro discute-se a fragilidade de um anti-herói como tantas criaturas sem voz, necessitando de um campo de identificação legitimado nesse mosaico sociocultural difuso no qual vive. Só figuras bem-sucedidas como as dos contos de fadas, só “namoradinhas do Brasil” não garantem isso, muito menos audiência. É preciso uma voz que assuma: “Nunca chamei atenção, nem por ser bonita, nem por ser feia, nem por estar ou não estar numa sala. (…) De jeito nenhum fui graciosa, com os ombros curvados e olhos sempre procurando o chão”. Por trás desses olhos baixos há um modo de enxergar o mundo e a si própria.

Para se dizer em literatura, ou seja, através da palavra, esta precisa se apoderar da concretude extrema do cotidiano, fotografá-lo, recortá-lo, montá-lo, recriá-lo. Até que, partindo desse “realismo afetivo”, possa se “criar efeitos de realidade, na transgressão dos limites representativos do realismo histórico”, como salienta Karl Eric Schollhammer. Para dizer da vida e da morte é preciso ousar como se só estivesse se deixando levar sem vontade e sem juízo. “Alguma coisa explodiu, silenciosa como uma galáxia microscópica, dentro do cérebro de Hugo.” Alguma palavras bastam para fechar um ciclo, para criar efeitos sensuais e afetivos em seus recortes, seleção e silêncios. O estranhamento das coisas mais simples vem por conta de uma realidade difícil de se dizer e, impressionantemente, mais ficcional que qualquer fantasia. Isso porque vem em pedaços, fracionada, embaralhada e recriada. A partir daí já é outra coisa: filme, telenovela, literatura, arte ou sabe-se lá que nome os homens resolvam lhe dar.

Olhos baixos
Maria Helena Nascimento
Guarda-chuva
153 págs.
Maria Helena Nascimento
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1961. É escritora, roteirista, co-autora de telenovelas e produtora de cinema. Entre algumas produções, destacam-se as telenovelas Paraíso tropical, Começar de novo, Celebridade. Em literatura, publicou Gasolina azul (poesia, 1992) e agora o romance Olhos baixos.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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