Começo a ler Mundos de uma noite só, de Renata Belmonte, com a sensação de ter em mãos um filho do Gabriel García Márquez com a Simone de Beauvoir.
Gosto de autores que mostram não apenas as suas garras, como também suas entranhas. Belmonte escreve a partir desse útero, mas não é caricata. É um útero com cólica, com dor, com raiva. Sem, com isso, enaltecer — muito pelo contrário — esse feminino.
Ambos nascemos do nada e precisávamos nos contentar com nossas mães estranhas e insensatas. Este parecia ser o principal elo que nos unia: éramos produtos exclusivos do feminino.
De fato, a maternidade-entranha de Beauvoir mostra sua cara na página 13: “não se nasce mulher: torna-se”. Acho que o que eu mais gosto de Mundos de uma noite só é o fato de que essa construção de ser mulher não cai em nenhuma caricatura. Não é heroína, não é vítima. É o que é. E aponta o papel cruel do masculino sem também cair em nenhum dos artifícios fáceis (e tolos) de culpabilidade.
Quinze anos. Já havia mesmo escutado minha mãe dizer que era assim: todas as mulheres morrem, pela primeira vez, aos quinze anos. Por isso, a valsa: o anúncio da primeira morte, do fim definitivo do corpo de menina. Em geral, entre os vinte e trinta, há também outra dança. E como não existe valsa sem motivo, surge a segunda despedida: as noivas começam a dizer adeus à juventude, aos pais, à casa antiga. São os homens que entregam, conduzem as mulheres para suas mortes. Amanhã completo quinze anos. Qual será a minha sorte?
Na orelha do livro, Luiz Ruffato escreve “Renata Belmonte não faz concessões. Ela sabe que a literatura é o espaço privilegiado da liberdade e da transgressão”. Essa é sua maior qualidade.
Belmonte constrói com retalhos, com cenas que se cruzam, construindo um mosaico que, por natureza, é também gráfico. Os objetos, as cenas, as pessoas complexas e ricas de Belmonte são quase como tesselas. Tesselas são aquelas pedrinhas que compõem um mosaico. Não são todos os elementos literários, tesselas? É. São. Refiro-me aqui, entretanto, às marcas literárias assíncronas (e, portanto, atemporais) que encontramos também em García Márquez. Belmonte não chega a ser realismo fantástico, mas a construção espacial e temporal faz lembrar a cidadezinha Macondo e a família Buendía, de Cem anos de solidão.
A concepção do tempo, principalmente, bem mais que a do espaço, é, tanto em García Márquez como em Belmonte, um fenômeno instável, imensurável. É esse tempo aniquilador e avassalador que dá o tom da solidão. Apenas no final de Mundos de uma noite só sabemos o motivo da solidão da personagem Lágrima, motivo que na verdade pertence ao início da saga familiar contada, em uma das muitas construções geniais de Belmonte. Esse desassossego permeia o livro todo. É nessa estranheza, nessa talvez raiva com o mundo, que habita a força de Belmonte.
Há uma construção do tempo e do espaço que é, também, imagética. Não pela descrição ou qualquer outra saída fácil. Belmonte não pega atalhos. É imagética porque usa a linguagem não verbal do silêncio, das ausências, das relações vazias. É o vazio e a solidão que desenham a temporalidade assíncrona de Mundos de uma noite só.
Complexidade
Mundos de uma noite só encontra a sua forma ao potencializar o narrador. As muitas relações, ambiguidades e incongruências de todas as personagens fazem com que o narrador assuma também o papel de atribuição de afeto, não apenas de sentido. Afeto aqui na acepção de ser aquilo que te afeta. É o narrador que torna o estático inseguro, inconstante e, por consequência, interessante. Não há nenhum elemento fixo ou estático que tenha essa significação (de fixo ou estático).
Analiso-me. Naquela mesa, estou do mesmo jeito que estive em todos os lugares da minha existência: espremida entre as figuras grandiosas de Lágrima e minha mãe. Habito o porta-retrato que separa o delas, sou sempre meio, jamais fim. Vendo nossos rostos tão próximos, estabeleço comparações. Constato: pareço com as duas.
A figura forte de Lágrima faz com que o narrador seja quase homodiegético, com pitadas de ironia. Como acontece em Crônica de uma morte anunciada, aliás.
A roupa não cai bem em mim. Aliás, nenhuma deste tipo nunca ficará boa em meu corpo. Da mesma forma que acontecia com Lágrima, elas sempre parecerão que foram feitas para outra pessoa. Esta, em especial, zomba do meu quadril, insistirá em deixar claro que o fato de eu estar enfiada nela é uma ironia.
Considerando bem-sucedido o teste de DNA aqui proposto, o que de fato importa é a escrita de Belmonte.
A sua força não está somente na história contada. Podemos contar uma história terrível de forma cômica e vice-versa. É a relação e o uso da palavra escrita que determinam a sua natureza literária, em oposição, por exemplo, à linguagem jornalística, conforme nos diz Marisa Lajolo em O que é literatura:
É a relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de produção da leitura que instaura a natureza literária de um texto. O que torna qualquer linguagem isto ou aquilo é a situação de uso. A linguagem parece tornar-se literária quando seu uso instaura um universo, um espaço de interação de subjetividade (autor e leitor) que escapa ao imediatismo, à predictibilidade e ao estereótipo das situações e usos da linguagem que configuram a vida cotidiana.
Vamos encontrar em Belmonte essa relação, sem concessões. E, o que eu mais gosto, de forma escancarada, com as entranhas à mostra. Não há verdade sem crueldade.
Assim você quis, minha filha, portanto, tome de presente este verso pobre: na história da sua família, não há verdade sem crueldade.
Existe uma potência em não fazer concessões, nem mesmo à figura materna.
Não, o outro dia não foi apenas um outro dia. No outro dia, acordei num lugar diferente, vazio, um lugar que não era a minha casa. Por um minuto, pensei que era o céu. Mas minha mãe estava lá.
Minha mãe não tem este direito. De plagiar minha infância tão sacrificada. Ela não pode, simplesmente, ficar assim tão doente.
Não amamos por decreto. Não amamos por sermos mães, esposas ou filhas. Amamos apesar de sermos mães, esposas ou filhas.
E seguimos, aqui, todas nós, amando nos tempos de Covid.