Flores e espinhos

Na fábula "A mercadoria mais preciosa", Jean-Claude Grumberg mostra a importância do amor em meio ao Holocausto
Jean-Claude Grumberg, autor de A mercadoria mais preciosa
01/07/2020

Muito já se escreveu sobre o Holocausto. Dos seus desdobramentos na sociedade, na política; o impacto na vida daqueles que sobreviveram e, na condição de refugiados de um regime sem coração, não tiveram opção a não ser recomeçar. Depois da tempestade, quando o sol há de aparecer, em países como os Estados Unidos, França e a própria Alemanha, a literatura sobre o período floresceu, se arramalhando a outras terras, territórios propícios, ainda hoje, para se pensar criticamente um período tão duro e mais: o perigo de não retroceder na linha do tempo.

À direita o mundo guinou de cinco anos para cá. E, hoje, muito se fala de distopia, com as reedições de clássicos de George Orwell aos escritos de Ray Bradbury, Asimov e o cinema de Kubrick. A diferença é uma só: a distopia existiu (o nazismo). E hoje a discussão é recorrente e necessária para, em tempos de intolerância, não forjar vis juízos de valor. Fala-se muito de livros como O diário de Anne Frank, O pianista, Sobrevivendo com lobos, sendo esses e outros títulos levados ao cinema e, por consequência, discutidos amplamente.

Ano a ano surgem novas narrativas que voltam ao passado com especial atenção — é o caso de A mercadoria mais preciosa, fábula da autoria de Jean-Claude Grumberg, premiado roteirista francês que, como boa parte dos descendentes de judeus torturados no regime, volveu com inteligência ao período. Em tom de deboche, Grumberg brinca com o conceito de infantilização da fábula, ao menos momentaneamente, para, de supetão, descambar para uma espécie de “realismo rápido”, muito rápido. São apenas oitenta páginas, mas muitos, muitos supetões.

A fábula é uma paulada na cabeça de leitores de cuca fechada e corre na velocidade do trem, feito bala de prata disparada à queima-roupa nas intenções do leitor. E esse, ao cair na tentação de pensar A ou B, de repente, pum!, é surpreendido pelo cruel e prático narrador. O inusitado também é explorado e as personagens não se demoram em compreender os aspectos humanos que sobressaltam à aspereza da guerra, mesmo se tratando de lenhadores pobres e analfabetos (ou, como coloca Grumberg, pobres lenhadores), cujo intelecto é o poder do coração.

O coração
Em A mercadoria mais preciosa, o trem, esse colossal gigante que perturbava a calmaria do bosque de Pobre Lenhadora, visto por ela como uma entidade, era, na verdade, o literal expresso para o inferno. Há exatos 40 anos era lançado nos Estados Unidos a célebre história em quadrinhos Maus, de Art Spiegelman, cujo protagonista, pai do autor, mostra como era o interior desses trens, onde milhares de judeus morriam por tifo.

Vladek, como os judeus do livro, foi caracterizado por Spiegelman como rato. Em Maus, os nazistas são gatos, os poloneses, porcos, os franceses, sapos, os americanos, cães, e por aí vai. Em A mercadoria mais preciosa, são chamados os judeus de “os sem-coração”, aqueles homens tripudiados por bitolados pelo nazismo, sujeitos pobres que vivem no bosque, com medo dos homens de farda cinzenta — os agentes da Gestapo —, muitos deles são amigos de Pobre Lenhador.

“Pobre Lenhador, nosso pobre lenhador — todos eram lenhadores e pobres —, o nosso, portanto, tinha bebido mas se calado. Então, os colegas se voltaram para ele, como se fossem um só homem, esperando ouvir suas palavras”, e assim, surpreendendo-os, ele falou, escreve Grumberg: “Os sem-coração têm um coração”. A partir deste ponto, a narrativa esquenta e, mal olhado pelos companheiros de taberna, eis que Pobre Lenhador se mete em enrascada.

Oh, o coração, esse sinônimo de enrascadas. Grumberg, trafegando pelos espinhos de um tema tão denso e vasto como o antissemitismo, ainda assim consegue talhar em palavras, como um joalheiro, as ricas sensações que, pela primeira vez, encrustam os corações e mentes daquele pobre casal. Como ele escreve:

No dia seguinte, onde quer que pusesse a mão, era o coração da mercadoriazinha que ele sentia bater sob a palma. Dali em diante, no segredo de seu coração afogado numa doçura desconhecida, ele também chamava a pequena sem-coração de sua mercadoriazinha.

Entregue à pobre Lenhadora por um desconhecido, no passar do temível trem que cortava o denso bosque, a mercadoriazinha é o elo entre dois mundos. E nesta fábula não importam o frio, a fome, as línguas estranhas, a pobreza, a crueldade, o nazismo, nada importa, segundo seu autor no epílogo do livro. Grumberg desmente sua fábula, desmente o nazismo, desmente a própria realidade, a vida, pois o único fato que importaria, como fio condutor, é a garotinha que foi jogada na neve e que, só pelo amor, ela sobrevive.

Aos 81 anos, Jean-Claude Grumberg, assim como Art Spielgelman, teve seu pai capturado pelos nazistas e, como reflexo de sua própria história, grande parte de sua obra aborda essas reminiscências da dor e sofrimento. Mas ele insiste: “O amor, o amor oferecido às crianças, às suas como as dos outros. O amor que faz com que, apesar de tudo o que existe, e de tudo que não existe, o amor que faz com que a vida continue”.

Elogiado pela crítica francesa, A mercadoria mais preciosa é um escrito delicado e profundo, cuja história, lida rapidamente, provoca no leitor um hiato de reflexão. “Um conto admirável e terrível”, bem definiu a crítica Claire Devarrieux do jornal Libération. Grumberg surfa na experiência do roteiro para levar o leitor consigo até a última parada.

A mercadoria mais preciosa
Jean-Claude Grumberg
Trad.: Rosa Freire D’Aguiar
Todavia
80 págs.
Jean-Claude Grumberg
Nasceu em Paris, em 1939. Autor de mais de 30 peças teatrais, é também roteirista de cinema e de TV.
Matheus Lopes Quirino

Jornalista, é editor revista eletrônica de literatura Fina e colaborador do jornal O Estado de S. Paulo.

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