Exumação radical

Em "Anatomia de um instante", Javier Cercas se apóia na literatura para dissecar um importante momento da história espanhola
Javier Cercas, autor de “Anatomia de um instante” Foto: privat
01/09/2012

“Todos os romances são autobiográficos”, diz Javier Cercas. “É uma espécie de strip-tease em sentido inverso: a partir de sua própria experiência, é revelado o que existe de mais autêntico, de melhor. A técnica literária coloca vestidos, chapéus e torna irreconhecível. Isto é, escrever um romance.”

Javier Cercas é o autor de Anatomia de um instante, considerado o melhor livro editado em 2009 em castelhano pelo suplemento literário Babelia, do jornal espanhol El País.

O tema é o golpe antidemocrático comandado pelo tenente-coronel Antonio Tejero em 23 de fevereiro de 1981, na Espanha. Tejero invadiu a câmara dos deputados de pistola em punho, gritando “todo mundo quieto”. A seguir, alguém gritou “silêncio”; logo, “todo mundo quieto”; a seqüência: “No chão, no chão todo mundo”. Quase todos os presentes obedeceram imediatamente, prontamente convencidos por aquele que empunhava a pistola e que também a disparou. Para o ar, mas disparou. O “quase todos” se deve ao presidente Adolfo Suárez; ao Ministro da Defesa, general Mellado; e a Santiago Carrillo, secretário geral do PCE. Os três permaneceram sentados, recusando o mergulho “ao chão”.

Você, democrático leitor, já deve ter concluído: esse livro é mais um libelo anti-golpe, daqueles que satanizam os golpistas e santificam os depostos. Errado.

Javier Cercas mostra que anjos e demônios habitavam os dois universos, os demônios predominando. Como exemplo dessa isenção, repare bem como o autor trata Adolfo Suárez e Santiago Carrillo. Nada de novo, visto que o cenário é o habitat de políticos, militares, militares tentando ser políticos. E quando essas correntes buscam o mesmo objetivo, a população paga a conta. Todas as contas possíveis e imagináveis.

Anatomia de um instante é, em primeiro lugar, um manual de sobrevivência no território do “animal político”. Conclusão deste aprendiz: não temer tais palhaços, tampouco rir de suas estultices. São animais venenosos, no entanto, devemos desprezá-los.

Javier Cercas escreveu um romance, um ensaio, um livro de História no qual exuma um tempo triste, impossível de evitar enquanto não for extinto o animal político e, conseqüentemente, seus atos desgraçados.

Atenção redobrada, indefeso leitor: mãe de ditador está sempre grávida.

Em tempos nos quais políticos infestam o país com seu marketing de quinta, a leitura de Anatomia de um instante alcança o status de imprescindível. Conclusão deste aprendiz: o “animal político” jamais será domesticado. Traiçoeiro, não tardará a mostrar suas garras.

Cercas não deixa dúvidas a respeito do caráter instável dos políticos. Ao mostrar o presidente Adolfo Suárez como um tipo ambicioso, sedutor, ao mesmo tempo capaz de eliminar qualquer um que se atreva a atravessar seu caminho, aponta a periculosidade do “animal político”.

Suárez convenceu todas as correntes de que ele era pessoa ideal para cuidar dos interesses do povo. Enquanto isso, cuidava exclusivamente dos seus. Aos franquistas, deixou a impressão de alguém capaz de manter tal chama acesa; ao rei, deu a entender que se tratava de um monarquista ferrenho; e vendeu o mesmo peixe disfarçado ao seu partido, também abrigo de franquistas, além de amansar o exército. Assim que Suárez chega ao poder, defenestra os franquistas, faz seu vice um militar, Gutiérrez Mellado, e “fazendo jus ao caráter pra lá de volúvel, legalizou o Partido Comunista”.

Javier Cercas exuma o cadáver do golpe, examina o fato sob diversos pontos de vista, aprofunda passo a passo a investigação. Ações oriundas da direita e da esquerda se relacionam e se complementam. Nada escapa ao seu rigoroso olhar. Autores intelectuais, a reação dos deputados quando da entrada intempestiva de Tejero, o que se passou pelas cabeças de Suárez, Mellado e Carrillo durante a performance do tenente-coronel.

Cercas não se limita a narrar o episódio, também se posiciona. E de forma corajosa diz que o fracasso do golpe de Estado apagou a tensão reinante no país. O frustrado golpe serviu para fazer a assepsia, eliminou a insegurança que já durava décadas.

O livro traz uma imensa quantidade de informações que podem ser retomadas individualmente em narrativas futuras, o pontapé inicial pode ser, sempre, a tentativa de golpe de Estado espanhol. Talvez a maior virtude, entre tantas, dessa obra seja examente a incansável análise desse momento político. Um momento televisivo. Permita a redundância, arguto leitor: um espetáculo trágico… patético… estúpido.

Volte, paciente leitor, à frase de Cercas que dá início a este texto. Ensaio, romance, ensaio histórico, seja o que for. Aconteceu. Acontece. Acontecerá.

LEIA ENTREVISTA COM O AUTOR.

Anatomia de um instante
Javier Cercas
Trad.: Ari Roitman e Maria Alzira Brum
Globo
436 págs.
Soldados de Salamina
Javier Cercas
Trad.: Ari Roitman e Maria Alzira Brum
Globo
274 págs.
Javier Cercas
Nasceu em Ibahernando (Espanha), em 1962. Além de escritor e tradutor, é professor de literatura espanhola na Universidade de Girona e colaborador do jornal El País. Lecionou durante dois anos na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, período durante o qual publicou sua primeira obra, o livro de contos El móvil, em 1987. Anatomia de um instante (2009), seu mais recente trabalho, foi traduzido para oito línguas e recebeu, entre outros, o Prémio Nacional de Narrativa (Espanha) e o Prêmio Salone Internazionale del Libro (Torino, Itália).
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho