Estranho dom

Na trilogia "Seu rosto amanhã", de Javier Marías, o ser humano se revela essencialmente traiçoeiro e dissimulado
01/02/2011

É muito fácil se deixar levar pela ficção envolvente do autor madrileno Javier Marías. Caudaloso, ensaísta de primeira grandeza, não poupa sua verve ao tocar em profundas questões da existência humana. Não parece, tampouco, preocupado em se alinhar a alguns modismos da escritura contemporânea, cuja fragmentação nos modos do narrar, muitas vezes, angustia o leitor, na tentativa vã de estar à altura do jogo que se lhe propõe.

Ao contrário, em sua extensa trilogia intitulada Seu rosto amanhã (nos volumes 1. Febre e lança; 2. Dança e sonho; e 3. Veneno, sombra e adeus), o narrador em primeira pessoa e sempre ele, Jacques Deza detém as rédeas ao nos contar sua intensa trajetória de vida. Num primeiro momento, apresenta-se como professor leitor de Literatura Espanhola e Tradução em Oxford e, a posteriori, como tradutor e intérprete para um grupo específico de intelectuais da espionagem britânica, aos quais presta serviços.

Importa observar que, mesmo sem fazer uso das artimanhas de relativização do que se conta, por meio da variação constante de diversas consciências narrativas, aqui o único narrador, com seu refletir persuasivo, parece que se multiplica.

Jacques ora será chamado de Jaime, ora de Jacobo, outrora de Yago, para se resumir, afinal a Jack. Na base etimológica originária desses nomes, todos são sinônimos. Mas tal pluralidade não tem, no caso, o intuito de denunciar a fragmentação do indivíduo, cuja identidade se perdeu, conforme a noção trágica do século 20 de que o homem moderno é sempre partido e vive sob os influxos dessa angústia. Tem mais a ver com os possíveis disfarces assumidos, via de regra, na arte da espionagem ou ainda com uma certa fixação do narrador em esmerar-se nas várias possibilidades semânticas que a palavra e o ato de nomear revelam.

O que interessa a Marías é a concentração, em uma só voz, das infinitas dúvidas que sobrecarregam o protagonista e que acabam assolando, também, a nós leitores.

Neo-barroco
De fato, seu discurso, pleno de sinuosidades um tanto barrocas, enfrenta, com fôlego, os paradoxos de viver. Vemos em cena a dissimulação, a desconfiança, as delações e as torturas dos períodos de guerra, as perdas em todas as suas faces, a necessidade de calar e de falar, a importância do relato, fazendo jus à melhor tradição conceptista da literatura espanhola à la Quevedo.

No brilhantismo ensaístico de seu procedimento narrativo percebemos aquela — assim denominada — “agudeza na associação engenhosa entre palavras e idéias”, especialmente na intensidade semântica do léxico, repleto de significados, numa tendência explícita ao bom uso dos recursos polissêmicos. Isso não se dá apenas por mero preciosismo ou maneirismo, mas sim pela carga antitética que os conflituosos enigmas do viver encerram.

Talvez coubesse aqui uma das máximas do famoso teorizador da literatura espanhola do barroco, Baltasar Gracián, ao afirmar que um dos requintes do conceptismo seria, justamente, o de propor que “a verdade, quanto mais dificultosa, é mais agradável, e o conhecimento que custa é mais estimado”.

E Javier Marías é mestre em relativizar verdades, em dificultar o acesso à decodificação simples e rasteira do que quer que seja, em perscrutar, até o exaurimento, a necessidade de ver muito além das aparências.

De certa forma, poder-se-ia arriscar a dizer que o autor madrileno aproveita o que há de melhor no vaivém oscilatório das conjecturas paradoxais da vida, atualizando-as com vários elementos sobre os quais se apóiam as narrativas contemporâneas. Assim é que não faltarão, por exemplo, infinitas chaves de análise para sua obra que se nutram das diversas formas presentes de intertextualidade (textos que remetem a outros), da sobreposição de discursos, das releituras críticas da história oficial, das famosas discussões pós-modernas sobre alta cultura e baixa cultura e das nuances sempre controversas do embaralhamento entre arte e vida.

Traduzir a vida
Em todas as manifestações desse estilo pujante, em que as palavras jorram de uma fonte inesgotável de indagações, há sempre subjacente a intenção de se traduzir palavras, expressões, gestos, fatos históricos, pessoas, enfim, vida.

Nesse sentido, um dos traços mais recorrentes em toda obra é o da profissão de tradutor que o protagonista exerce. O conceito de tradução aqui, porém, se amplia à máxima potência e se relativiza, uma vez que parte do primeiro conceito de tradução como aproximação de universos lingüísticos distintos (o do espanhol e o do inglês) até o da compreensão do outro, numa visão dialética de alteridade que ora nos espelha, mas também repele; que às vezes, identifica e, simultaneamente, estranha.

Em vários trechos dos três volumes temos a impressão de estar diante de verdadeiras e requintadas aulas de tradução, de questões de filologia ou lingüística comparada, como quando Peter Wheeler, um dos mais renomados professores octogenários de Oxford, a quem o narrador tanto admira, emprega a palavra “presciência”:

Tinha empregado a palavra “prescience”, culta mas não tão rara em inglês quanto é em espanhol “presciência”, entre nós ninguém a diz e quase ninguém a escreve e muito poucos a sabem, nós nos inclinamos mais por “premonição” e “pressentimento” e até “palpite”, todas têm mais a ver com as sensações, uma desconfiança — também se diz, coloquialmente —, mais com as emoções do que com o saber, a certeza, nenhuma delas implica o conhecimento das coisas futuras, que é o que de fato significam “prescience” e também “presciência”, o conhecimento do que ainda não existe e não aconteceu…

O que Peter tinha dito era “presciência”, um latinismo chegado quase sem alterações às nossas línguas a partir do original praescientia, uma palavra desusada, rara, e um conceito nada fácil de compreender, portanto…

Há também exemplos jocosos de expressões que não encontram similares no jogo tradutório, como na difícil empreitada que o narrador tem pela frente para explicar ao mesmo Sr. Wheeler (intelectual inglês, exímio conhecedor da língua espanhola) o significado de “mulher turbinada”:

Impossível uma tradução verossímil. Ou não, para tudo há tradução, é só trabalhá-la, mas eu não ia me dedicar a isso àquela hora. O reaparecimento da minha língua fez Wheeler transportar-se a ela momentaneamente.

— Turbinada? Turbinada, você disse? — perguntou-me com uma ponta de desconcerto e também de aborrecimento, não gostava de descobrir lacunas em seus conhecimentos — Não conhecia o termo, embora o entenda sem dificuldade, creio. É como “boazuda”?

— É. Sim. É isso mesmo, Peter. Não sei explicar agora, mas com certeza entende, perfeitamente.

Wheeler se coçou na altura da costeleta (…)

— Deve ter a ver com turbina, humm — murmurou, de repente muito pensativo. Embora não veja a associação, a não ser que seja como aquela expressão, “do peru”, essa sim eu conheço, aprendi faz uns meses. Você diz, do peru? Ou é muito vulgar?

— Meio juvenil, isso sim.

— Bem, eu deveria visitar mais a Espanha. Fui tão pouco nos últimos vinte anos que daqui a pouco serei incapaz de ler um jornal direito, a língua coloquial muda sem parar…

Há ainda menções pontuais a esses exercícios tradutórios, à medida que o enredo vai se desenvolvendo, porém num crescente grau de complexificação.

O que definirá o paradoxo da difícil arte de traduzir será, afinal, a dimensão que essa tarefa passa a assumir no transcorrer da narrativa.

De fato, em sua primeira estada na Inglaterra, o jovem espanhol Jacques Deza teria sido — por um breve período — professor de Literatura Espanhola e tradutor em Oxford.

No momento em que o narrar se presentifica, estamos na década de 80 e ele, então, volta a Londres, dessa vez trabalhando como hispanista na rádio BBC, após a dolorosa separação da mulher Luisa, a quem ainda ama e que continua em Madri com os dois filhos pequenos.

Volta, por ocasião, a conviver com alguns nomes importantes da elite universitária de Oxford, especialmente o velho culto e elegante Sr. Peter Wheeler e o ilustre Bertram Tupra, a quem conhece numa high table (festa fechada da elite britânica oxfordiana).

Estes lhe propõem um novo trabalho, já que o emprego naquela rádio não o satisfazia. Persuadem-no, convencendo-o de que ele — tanto quanto os demais daquele elitizado grupo — possui um dom muito especial, que é o de ser capaz de ampliar o foco tradutório do âmbito das línguas para o das pessoas.

Mesmo sem saber a que finalidade se destinavam aquelas “interpretações” de pessoas que passa a realizar, nosso protagonista se sai muito bem e alarga o rol de traduções que lhe submetem:

Foi inevitável a sensação de ter passado num exame e de que eu me incorporava ao que quer que fosse aquilo, na época não indaguei muito a respeito nem tampouco mais tarde, nem tampouco agora porque aquilo talvez tenha sido sempre impreciso. (…)

As modalidades dessas tarefas variavam, sua essência porém pouco ou nada consistia em ouvir, prestar atenção, interpretar e contar, em decifrar condutas, aptidões, caracteres e escrúpulos, desprendimentos e convicções, o egoísmo, ambições, incondicionalidades, fraquezas, forças, veracidades e repugnâncias; indecisões. Interpretava — em três palavras — histórias, pessoas, vidas. Histórias por acontecer, freqüentemente. Pessoas que se desconheciam e que não poderiam ter se aventurado a ver sobre si mesmas nem uma décima parte do que eu via nelas, ou me instavam a ver algo nelas e a expressar isso, era o trabalho.

Vidas que ainda podiam fracassar logo cedo e não durar nem para assim se chamar, vidas incógnitas e a ser vividas (…)

Outras sim me utilizavam como intérprete da língua, a espanhola e também a italiana, mas no amplo conjunto de conversas e supervisões, essas vezes logo passaram a ser as menos numerosas, e em todo caso nunca me limitava a apenas trasladar palavras, requeriam meu ponto de vista no fim, quase meu prognóstico em certas ocasiões, como dizer, uma aposta.

Se é verdade que uma boa chave de leitura de Marías é a de seguir a ambientação do romance enquanto excitante thriller de espionagem, faz-se necessário, também, perceber sua acurada consciência metaliterária, uma vez que o ato de espiar, aqui, merece ser entendido de modo mais abrangente.

O que temos, pois, é um verdadeiro elogio à arte de traduzir, de saber ver (ou de espiar/espionar), de ler e interpretar pessoas, porém não apenas no sentido idealizado do que isso represente, mas com todas as implicações a que tais leituras possam induzir. Estas implicações assumem, de modo constante e inevitável, a angústia do que não se resolve de maneira linear ou pacífica, mas contraditória. O ato de traduzir, desse modo, não se reduz apenas a um ato de amor à língua estrangeira, à reverência utópica de redenção ao diverso, mas é muito mais a constatação dos limites e das conseqüências funestas a que seu mau uso pode levar.

Assim, o menino Jacques, que desde a infância aprendera, com o próprio pai, a não se satisfazer com a primeira impressão das coisas, teria sido estimulado a ver sempre além, a buscar outros sentidos ao espaço circundante que não o superficial e, desse aprendizado, nascera-lhe o estranho dom daqueles que sabem interpretar e traduzir pessoas. “Olhe mais, indague mais, procure mais” era o treino para desenvolver os olhos da mente e assim ampliar o ângulo de percepção e, enfim, de leitura do mundo.

Em boa medida, um dos aspectos mais relevantes hoje ressaltados pela Teoria da Leitura é, precisamente, o que trata da correspondência entre ver/apreender e ler. Nos termos de Alberto Manguel em Uma história da leitura, por exemplo, “o processo de ler, tal como o de pensar, depende da nossa capacidade de decifrar e fazer uso da linguagem, do estofo de palavras que compõe texto e pensamento”.

Se apenas nos detivéssemos ao lado positivo dos que aprendem a interpretar além do senso comum, talvez como o personagem Novecento do monólogo homônimo de Alessandro Baricco, que não lia só os livros (já que esses todos são capazes de ler), mas que sabia “ler pessoas”, concluiríamos que essa qualidade — de poucos eleitos —, nesse caso, teria o grande mérito de acionar a capacidade criativa do protagonista, que compunha peças musicais originalíssimas, a partir da minuciosa observação do que o circundava.

Há cada vez mais exemplos na arte e na literatura de uma necessidade de reeducação do olhar, em tempos de total embotamento de nossa acuidade visual (a propósito, detalhamos o tema neste mesmo Rascunho, na edição 104).

Mas a problematização que Javier Marías coloca é a do paradoxo (e não a da idealização), do dilaceramento a que conduz esse fabuloso dom de interpretar.

Uma vez que o menino observador Deza se torna adulto e é convidado a trabalhar como informante do Serviço Secreto de Inteligência da alta cúpula de espionagem britânica, muito comum em tempos de guerra, tudo muda. O halo poético e criativo dos que sabem interpretar para além das primeiras evidências se transfigura em arma perigosa, aparato persuasivo e retórico dos que controlam tudo e todos:

Não se pode dizer a alguém que traduza tudo sem questionar, julgar nem repudiar o que traduz, qualquer loucura, qualquer interpretação ou calúnia, qualquer obscenidade ou selvageria. Embora não seja você mesmo que fale ou diga, embora você seja um mero transmissor ou reprodutor de palavras e frases alheias, o certo é que as faz bastante suas ao convertê-las em compreensíveis e repeti-las, em muito maior medida do que a imaginável em princípio. Você as ouve, entende-as, às vezes tem uma opinião sobre elas; encontra um equivalente imediato para elas, lhes dá nova forma e as diz. É como se você assinasse embaixo.

No limite, há situações aqui descritas que remetem aos sistemas de opressão dos regimes ditatoriais extremistas, cujas arbitrárias invasões excedem os espaços da vida privada com total ingerência. E assim o “dom especial” de ler pessoas, quanto mais aguçado pela insistência dos que querem arrancar informações, a qualquer custo, transforma-se em pesadelo e violência.

Com efeito, o narrador denuncia que, muitas vezes, devido à pressão suscitada sempre pelas mesmas perguntas — “O que mais? O que mais lhe ocorre? Diga o que vê, vamos, vá além…” —, acabou fabulando, inventando circunstâncias que não seriam de todo plausíveis ou dedutíveis. Postura essa análoga à de alguns presos que, sob tortura, contam o que, em verdade, não aconteceu: “É incrível a capacidade que certas pessoas têm de se convencer de que não houve o havido e sim existiu o não existido…”.

Daí a necessidade de se perceber os dois gumes afiados da mesma lança: a arte de fabular, se, de um lado, eleva e pressupõe um certo dom dos que a ela se dedicam (como os escritores, por exemplo), por outro, dissimula e aniquila.

Orwell, Fleming e Bond
É por esse viés que muito do cenário recuperado pelo narrador retrocede, especialmente, à Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e ao da Segunda Guerra Mundial, períodos em que a espionagem assumia estratégias inimagináveis.

Daí por que não ser casual a lembrança, reiterada em mais de uma passagem do romance, ao Lutando na Espanha de George Orwell (que, de fato, lá esteve na ocasião e tornou-se uma das referências mais abalizadas no assunto), ao lado do importante historiador inglês Hugh Thomas, autor de Spanish Civil War.

Mas, de todas as possíveis referências intertextuais aqui apresentadas (e elas se multiplicam e variam ao longo dos três volumes), chama a atenção o destaque à obra do britânico Ian Fleming, no original: From Russia with Love.

Numa espécie de “volta ao passado”, no rol de suas boas lembranças de menino, Deza elogia a versão fílmica da obra de Fleming, na irretocável atuação de Sean Connery (primeiros filmes da série Bond) em Moscou contra 007.

Evidente a intencionalidade desse recorte de obras de espionagem no bojo do enredo, uma vez que o plot geral de ambientação do romance se nutre disso.

O que, entretanto, vai além é o interessante questionamento — disfarçado como digressão — do tradicional embate entre alta cultura e baixa cultura (James Bond como referência) e da relativização dos cânones literários.

O narrador mostra-se fã incondicional do autor inglês e não parece conformar-se com a menos valia que lhe dedica a crítica literária abalizada, não apenas quanto à questão literária em si, mas também quanto aos dados históricos muito verossímeis que representa: “Fleming parecia muito bem documentado”. A ficção (arte) recuperaria, em boa medida, o ocorrido (vida): “Ian Fleming, a julgar pelas escassas páginas de From Russia with love, que li no escritório de Wheeler, pareceu-me mais hábil e perspicaz do que a altiva História da Literatura dignou-se de lhe conceder até agora…”

Conversa imprudente
Elogios e digressões à parte, outro recorte de fundamental importância é o dedicado, no primeiro volume da trilogia, ao chamado programa inglês de combate à espionagem (durante a Segunda Guerra Mundial), conhecido como Careless Talk.

Em síntese, este seria o da necessidade de prestar a maior atenção e que se tivesse todo o cuidado em evitar as “conversas imprudentes”, descuidadas, das quais os espiões — em especial os nazistas inflitrados — pudessem obter as mais inescrupulosas vantagens.

Há uma série de representações visuais e pictóricas desse tipo de propaganda, bem datada, contra o inimigo — os da conhecida “quinta coluna” (inclusive recuperadas de jornais e revistas da época), que aqui aparecem como ilustrações, as quais, o agora tradutor de imagens Deza, passa a interpretar.

Note-se como nessa interação de múltiplas linguagens (no caso, a pictórica, de autoria de G. R. Rainier, e a de sua respectiva interpretação em relato escrito) há, no fundo, o intuito de aprofundar os níveis de suspeição, dissimulação e desconfiança que circundam toda a narrativa:

Esta obra de G. R. Rainier, que ilustra como as conversas imprudentes (deixemos “careless talk” ser isso aqui), por mais inocentes que possam parecer no momento, poderiam ter suas peças juntadas e encaixadas pelo inimigo e assim trair segredos vitais, será emitida de novo esta noite às dez em ponto.

Eram quatro as cenas: três pessoas conversam num pub jogando dardos, o mais atrás seria o espião, pelo monóculo, o nariz adunco, a cabeleira de artista e a barba afetada; um soldado conversa num trem com uma loura, ela sem dúvida seria a espiã, não só por exclusão mas também por elegância; dois pares numa rua, um de homens, outro misto: os respectivos espiões deviam ser o indivíduo com a gravata-borboleta e o do cachecol, embora aqui não fosse tão claro (mas eu diria que são os que ouvem); por fim, um aviador é recebido em casa, seguramente por seus pais e, em segundo plano, por uma jovem criada de avental e touca: seguramente ela é a espiã, por ser moça e empregada, por ser intrusa…

O que advirá, como conseqüência nefasta desse período de alerta máximo em que se faz necessário desconfiar até da própria sombra, é desolador.

Como ficar imune à idéia persistente de que “as conversas imprudentes custam vidas”, de que “o inimigo tem mil ouvidos”?

Essa inquietação também se presentificou, de algum modo, na Guerra Civil Espanhola em que se viam espiões e colaboradores do general Franco em cada esquina.

O silêncio imposto como norma geral: “cale-se e salve-se” trazia às pessoas, então, o peso de que sua própria língua era uma inimiga invisível, podendo ser uma arma poderosa.

É revelador que o senhor Peter Wheeler advirta a Deza sobre aquele tenebroso período:

Não sei se você se dá conta disso, Jacobo: alertaram as pessoas contra sua principal forma de comunicação; fizeram-nas desconfiar da atividade a que elas se entregam e sempre se entregaram de maneira natural, sem reservas, em todo tempo e em todo lugar, não só aqui e então; indispuseram-nas com o que mais nos define e mais nos une: falar, contar, dizer-se, comentar, murmurar e passar informação, criticar, trocar notícias, fofocar, difamar, caluniar e espalhar boatos, referir-se a acontecimentos e relatar ocorrências, manter-se a par e fazer saber e, claro, também brincar e mentir. Essa é a roda que move o mundo, Jacobo, acima de qualquer outra coisa; esse é o motor da vida, o que nunca se esgota e pára jamais, esse é seu verdadeiro alento. E de repente pediu-se às pessoas que desligassem esse motor; que deixassem de respirar…

Desconfiança aguda
Ao retomar vários episódios de guerra, em que se explicitam formas de sobreviver ao inimigo, o narrador apenas acena à tônica dominante em todo seu percurso narrativo:

“Desconfie sempre”, único veredicto entre as possíveis “receitas de viver”.

Exacerbando os pólos de oposição entre traduzir para aproximar x traduzir para violar; observar os detalhes para criar x espionar para delatar; calar (para sobreviver) x falar (para viver); interpretar os fatos para elucidar x interpretá-los para distorcer, o humano, nesta trilogia, revela-se essencialmente traiçoeiro e dissimulado.

Daí por que ser impossível prever “seu rosto amanhã”, ainda que se quisesse muito mantê-lo intacto, tal como o vejo ou o leio e interpreto hoje.

Esse o nó trágico de nossa condição: o de ter que prever a queda, já na ascensão; o de ter que imaginar a entrelinha, por trás da linha; o de preanunciar o horror dos desgastes dos relacionamentos, que faz cair por terra qualquer tipo de idealização:

Pode-se saber como são as pessoas e como evoluirão no futuro? Até que ponto podemos confiar em nossos amigos, conhecidos e sócios, em nossos amores, em nossos pais e em nossos filhos? Quais são as tentações e fraquezas, ou seu grau de lealdade e sua fortaleza? Como saber se fingem ou se são sinceros, se interessados ou desinteressados na manifestação de seu afeto, se seu entusiasmo é verdadeiro ou só adulação, calculada lisonja para ganhar nosso apreço e nossa confiança ou para se tornar imprescindíveis e assim nos persuadir de qualquer projeto e influir em nossas decisões? Tem mais: podemos prever que amigos vão nos dar as costas um dia e se transformar em nossos inimigos? Quero dizer: imaginar a possibilidade quando ainda são os melhores amigos e por eles poríamos a mão no fogo e deixaríamos cortar nosso pescoço? Podemos confiar em nós mesmos, em que não seremos nós que mudaremos e entortaremos e trairemos, que invejaremos um dia hoje quem mais queremos e não poderemos suportar seu contato nem sua presença, e decidiremos nos reger só pelo ressentimento?

Nada mais desalentador do que saber que todas essas perguntas retóricas, ao longo do romance, pressupõem respostas negativas. Mas isso não impede o eloqüente Javier Marías, em meio às desconfianças que nos fazem emudecer, de elevar sua voz altissonante, investindo no relato e na arte de narrar como possível saída.

Afinal, a ficção pode ser mesmo isso: “Imaginar uma coisa é começar a resistir a ela.”

Imaginemos, então…

Seu rosto amanhã
Javier Marías
Trad.: Eduardo Brandão
Companhia das Letras
1. Febre e lança
408 págs.
2. Dança e sonho
360 págs.
3. Veneno, sombra e adeus
616 págs.
Javier Marías
Nasceu em Madri, em 1951. Formado em Letras e especializado em Filologia, trabalhou como roteirista e tradutor até publicar seu primeiro livro, Os domínios do lobo, em 1971. Desde então já escreveu mais de 30 obras, entre os quais Coração tão branco, O homem sentimental, Quando fui mortal e os três volumes de Seu rosto amanhã — Febre e lança, Dança e sonho e Veneno, sombra e adeus, publicados no Brasil pela Companhia das Letras. Suas obras foram traduzidas para mais de 20 idiomas e venderam mais de três milhões e meio de exemplares.
Maria Célia Martirani

É escritora. Autora de Para que as árvores não tombem de pé.

Rascunho