Estilo e profundidade

O grande livro do jornalismo traz textos que se tornaram clássicos na história da imprensa mundial
Hitler e a Segunda Guerra Mundial são temas de reportagens de “O grande livro do jornalismo”
01/06/2008

Em um momento em que o jornalismo, enquanto elemento central das sociedades democráticas, está sob forte ataque perpetrado pelo advento das novas tecnologias, que pode ser traduzido pela recente (e, ao que parece, interminável) guerra entre blogueiros e jornalistas, O grande livro do jornalismo traz uma coletânea de reportagens com o objetivo de apresentar os clássicos de um tipo de narrativa que, para o bem ou para o mal, só pode ser produzido por jornalistas. Em outras palavras, o leitor que atravessar os 55 textos produzidos, não por coincidência, pela nata do jornalismo mundial há de constatar que, sim, a internet pode até mesmo assassinar os jornais diários tal como estes existem hoje; entretanto, o gênero reportagem permanecerá intocável nos corações e mentes. Em muitos casos, vale a pena salientar, trata-se do texto que apresenta um universo desconhecido aos olhos da multidão.

A propósito, um paralelo pode ser feito entre esse lançamento e a seleção mundial da World Press Photo, ora em exposição na cidade de São Paulo. Tanto na fotografia quanto no texto, o que sempre chama a atenção do leitor é a força das imagens construídas a partir das palavras e das imagens. Nesse sentido, é bastante acertada a introdução do livro ao assinalar que a reportagem é uma espécie de rascunho da história, posto que elaborado, sobretudo no caso desses textos, por testemunhas oculares dos acontecimentos, sendo, assim, de interesse central para o público. É dessa forma, por exemplo, que o leitor trava contato com acontecimentos marcantes em um primeiro momento graças a esses relatos que fazem história, como nas grandes tragédias, nos conflitos mundiais, ou, ainda, quando surge uma figura singular para a sociedade. No que se refere a essa última característica, talvez hoje esse seja um dado corriqueiro, já que o mundo das celebridades parece ter tomado de assalto todos os veículos. Mesmo assim, os jornais não deixam de refletir o estado das coisas de sua época, naquilo que alguns teóricos do jornalismo classificariam como Teoria do Espelho. Enfim, de volta ao livro no próximo parágrafo.

Qualidade incontestável
Em certo sentido, as reportagens selecionadas por Lewis também podem ser lidas como uma espécie de momentos capitais da sociedade mundial nos últimos dois séculos. É bem verdade que, escolhidos aqui e acolá, esse processo de seleção ignora solenemente a idéia de pluralidade estabelecida em determinadas listas. Com isso, se é correto afirmar que textos brilhantes foram deixados de fora, também é preciso ressaltar que os textos escolhidos primam pela qualidade incontestável de seus autores, alguns deles nomes fundamentais para a literatura universal. É o caso de Charles Dickens, cuja trajetória como escritor freqüentemente se confunde com a de repórter. E isso porque, muito tempo antes do maneirismo Jornalismo Literário, o autor de Um conto de duas cidades já emprestava a seus romances elementos do jornalismo da mesma maneira que aos relatos jornalísticos já fazia uso das técnicas narrativas originárias da literatura. No caso de Um homem é guilhotinado em Roma, o autor narra com grande impressionismo, se assim é possível qualificar, o momento da execução de um condenado. Devido à riqueza dos detalhes, o texto dá ao leitor a sensação de algo que acaba de acontecer, e não de um evento datado; além disso, humaniza um acontecimento absolutamente corriqueiro àquela época.

Também nesta linha de que nenhum acontecimento é alheio à reportagem, em A França se rende, lê-se o depoimento de William Shirer sobre a rendição dos franceses à época da Segunda Guerra Mundial. O texto, originalmente produzido para o diário pessoal do autor, torna único um acontecimento que ganhou tons grandiosos nas aulas de História. Para quem não se lembra, trata-se do exato momento em que Hitler e seu séqüito receberam dos franceses a rendição no mesmo lugar em que havia sido assinado o armistício da Primeira Guerra Mundial, episódio que, ocorrido em 1918, foi capitalizado pelo nazismo como momento de humilhação dos alemães ao fim da Primeira Guerra. Pois Shirer mostra com precisão absoluta como se deu o encontro e de que forma os franceses se tentaram até o último momento se resignar diante à imposição alemã. Não é apenas o rascunho da história, mas, também, o depoimento de quem esteve lá.

Ainda no tocante à Segunda Guerra, há também espaço para perfis, esses retratos elaborados sobre um determinado personagem, famoso ou não, apresentando suas idiossincrasias, além de levar em consideração, por conseguinte, o ambiente que o cerca, assim como das pessoas que pertencem ao seu convívio. Nesse segmento, há que se destacar o texto Um retrato de Hitler, assinado por John Gunther, jornalista freelance para a publicação Inside Europe.O texto se destaca porque dá ênfase à personalidade do líder-símbolo do Nazismo, uma vez que trata desde os anos de formação até a sua relação com o poder e com a religião, passando, claro, por sua posição junto aos judeus. Se se considerar que esse texto foi editado em 1940, anos antes dos estudos mais profundos sobre ele, há que se lembrar que a reportagem é uma precisa análise em tempo presente, como mostra o trecho a seguir:

Hitler nasceu e foi educado como católico romano. Mas cedo perdeu a fé e não assiste a ofícios religiosos de nenhuma espécie. O catolicismo nada significa para ele; é indiferente até ao consolo da confissão. Ao formar-se, seu governo quase imediatamente iniciou uma feroz luta religiosa contra católicos, judeus e protestantes, sem distinção.

De todas as reportagens, a mais bem elaborada, no que se refere ao seu estilo, é o do escritor e jornalista John Hersey, que, para a revista The New Yorker, escreveu o artigo: Hiroshima, texto que traz o relato de seis personagens que sobreviveram ao ataque atômico em 1945. A reportagem, editada apenas em 1946, sofre várias alterações feitas pelo editor, outro ponto que caracteriza esse tipo de texto. Mais do que apuração e estilo, uma reportagem também se constitui com a participação dos editores, cujo trabalho, apesar de ficar fora dos holofotes, é elementar.

Por se tratar de uma coletânea de textos, alguém pode imaginar que os textos são envelhecidos porque seus autores não representam a atual produção do jornalismo. Entretanto, essa afirmação só seria verdadeira se Jon Krakauer ou Robert Fisk não tivessem textos selecionados para a obra. De Fisk, aliás, autor renomado por sua atuação como correspondente das áreas de conflito, o livro traz duas reportagens: a primeira sobre a invasão do Líbano perpetrada por Israel; e a segunda traz o registro da segunda invasão no Iraque, em 2003. Os dois textos são recheados por impressões que, muitas vezes, fogem à lógica da objetividade. Mesmo assim, são relatos que dão vivacidade aos temas abordados, deixando, com isso, a eventual aridez dos temas em segundo plano. E aqui isso não acontece porque o jornalista faz uso das técnicas do jornalismo literário. Mas, sim, porque o repórter apresenta os fatos de maneira quente, como se efetivamente aquele relato tivesse as impressões de quem esteve no campo de batalha. De maneira semelhante, só que com mais participação por parte do autor, o livro conta com um artigo de Hunter Thompson, sobre a Convenção Republicana em 1972. Talvez a cobertura jornalística sobre as eleições americanas de 2008 ganhasse em interesse se houvesse um jornalismo mais autoral em vez das infindáveis análises dos especialistas que tomam de assalto o noticiário.

Como disse Eugênio Bucci na série Jornalismo sitiado, há muitos fatores que fazem com que o jornalismo esteja, atualmente, sob pressão. Para além da tirania da imagem e da intolerância, é preciso acrescentar, ainda, o fato de que, por diversos fatores, a reportagem tem sido deixada de lado tanto nos veículos impressos como nos eletrônicos. Isso se deve, parcialmente, à equivocada idéia de que a informação instantânea pode substituir os textos mais densos, como a reportagem. Em O grande livro do jornalismo, o leitor nota que esse tipo de conteúdo é imprescindível.

O grande livro do jornalismo
Jon E. Lewis
Trad.: Marcos Santarrita
José Olympio
377 págs.
Jon e. Lewis
Nasceu em Hereford, Inglaterra, em 1961, e atualmente mora no sul do País de Gales, onde trabalha como escritor e crítico freelance. Seus livros anteriores incluem várias antologias, como Os melhores contos de faroeste, também publicado pela José Olympio.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho