Eles & Clarice

Depoimentos de escritores sobre a importância de Lispector em suas vidas
Clarice Lispector por Ramon Muniz
01/02/2010

Cabeçolândia
Por Cíntia Moscovich

Me lembro que quando eu tinha ali pelos 15 ou 16 anos, um colega de aula, o Samuel, me deu Água viva. Era década de 70, ditadura, coisital, e Clarice andava em voga entre os culturetes resistentes — como anda hoje em dia. O Samuel me disse que não tinha entendido muito bem a primeira página, mas que o título era bonito e achou que eu podia entender. Eu fui ler e não entendi um ovo. Senti vergonha e não falei nada para o Samuel. Guardei o livro, no entanto, vai que um dia eu entendesse.

Nos anos que se seguiram, olhava o livro e sentia uma preguiça grande de entender aquela coisa meio cabeçolândia. Até que, aos 25 anos, já formada como jornalista e concluindo a faculdade de letras, um professor siderado (do bem), chamado Humaitá, pediu que lêssemos Laços de família. Como todos os alunos reclamassem do que não entendiam, o Humaitá descambou a falar de epifania, de alargamento de consciência, de potência do olhar. Alguns colegas boiaram ainda mais, mas, para mim, foi a maior descoberta do mundo. Tudo começou a se encaixar e a fazer sentido. A partir dali, eu sabia para que lado deveria ir, se quisesse realmente escrever. Eu queria nada mais nada menos do que escrever como Clarice.

Cíntia Moscovich é escritora e jornalista, autora de livros como Por que sou gorda, mamãe? e Arquitetura do arco-íris. Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1958, onde vive.

Lalande
Por Flávio Carneiro

O que acho curioso na minha relação com a obra de Clarice é que nunca fui de fato um grande leitor dos seus livros, não diria que sou um leitor apaixonado de Clarice, e no entanto ela acabou tendo uma presença fundamental na minha própria ficção.

Essa presença se deu também na escrita de um pequeno ensaio, a que dei o título de A leitora clandestina, com digressões sobre um conto dela de que gosto muito, o do duelo — insinuante, ambíguo — entre duas meninas, em torno de um livro de Monteiro Lobato.

Agora, sua presença na minha formação como escritor se deu mesmo em meados dos anos 80, quando escrevi meu segundo livro, uma novela chamada Lalande. Foi um livro muito importante para mim, escrevê-lo significou uma guinada radical com relação à minha própria visão do que era escrever, do que eu queria fazer como ficcionista, e o livro nasceu da leitura de Perto do coração selvagem.

Há uma passagem no romance de Clarice em que a personagem, Joana, brinca de inventar palavras e dar a elas significados inusitados. O significado de uma dessas palavras — lalande — me pareceu tão fantástico que resolvi escrever uma história passada numa cidade criada a partir da definição que Joana inventa para sua palavra inventada. Daí, escrevi a novela, em que uma menina — de nome retirado de uma foto feita por Lewis Carroll de uma de suas pequenas amigas: Xie Kitchin — procura saber de onde veio o nome da sua cidade, Lalande.

Flávio Carneiro nasceu em Goiânia (GO), em 1962. Mudou-se para o Rio de Janeiro (RJ) nos anos 80 e, desde 2003, mora em Teresópolis (RJ). É escritor, jornalista, crítico literário e professor de Literatura da UERJ. Publicou vários livros, entre eles O campeonato, A confissão e Passe de letra.

A paixão segundo C. L.
Por Lívia Garcia-Roza

Clarice Lispector foi uma mulher que não recuou diante de seu desejo: ser escritora. Uma escritora de extrema coragem, que conseguiu romper com os paradigmas narrativos de sua época, escapar à forma dominante e construir uma obra criativa, original, única, tornando-se um dos nomes mais celebrados da literatura brasileira. Com sua dicção particular criou sua própria língua, fazendo a literatura sair dos “trilhos”, o texto pulsar, a língua variar, possibilitando novas formas de subjetivação. A abrangência de sua literatura é inegável; no entanto, a autora não desconhecia o inacabamento da linguagem, sua não totalização, levando-a assim a seu limite, a um de-fora da linguagem. “Finco a palavra no vazio descampado”, nos diz em um dos seus escritos.

Gilles Deleuze nos diz que ao escrevermos nos tornamos estrangeiros em relação a nós mesmos e à própria língua: nos desterritorializamos. De fato, constitui-se um novo território — o território literário. Foi a grande conquista realizada por essa praticante da palavra. A “estrangeira” Clarice Lispector. Aventura a qual se entregou e da qual saiu vitoriosa.

O impacto produzido pela leitura de seus textos foi de fundamental importância na minha vida de leitora, possibilitando desse “sopro de vida” dar início à minha trajetória literária.

Lívia Garcia-Roza nasceu e mora no Rio de Janeiro (RJ) e é escritora e psicanalista. É autora de Quarto de menina, Meus queridos estranhos, Cartão-postal, Cine Odeon, Solo feminino e A palavra que veio do Sul, entre outros.

Minha contista
Por Miguel Sanches Neto

Embora o livro de Clarice Lispector que eu tenha lido um maior número de vezes seja A paixão segundo G. H., sofri mais o impacto de seus contos. A minha Clarice, portanto, é a contista.

Por trazerem uma concentração de emoções e de linguagem, seus contos se tornaram uma referência para mim. A dispersão de seus romances tem um efeito literário e filosófico extremamente interessante, cifrando uma modernidade narrativa. Reconheço isso, e admiro tal efeito, mas ele está distante de minha sensibilidade de escritor. Já seus contos, estes criam uma tensão existencial que me leva a sofrer com a condição órfã do indivíduo sensível.

Talvez esta seja a grande marca dos personagens de Clarice: eles não têm proteção diante do mundo. Qualquer pequeno acontecimento mais áspero cria uma instabilidade brutal, exigindo que se reconstrua uma segurança mínima contra o sem-sentido da vida. Seus contos operam isso em uma estrutura bem-amarrada, dando-nos um sentimento de plenitude mesmo diante do vazio.

Miguel Sanches Neto nasceu em 1965, em Bela Vista do Paraíso (PR). É escritor, autor de Um amor anarquista, Chove sobre minha infância e A primeira mulher, entre outros. Vive em Ponta Grossa (PR).

Encontros e desencontros
Por Rubem Mauro Machado

Os romances de Clarice, apesar do texto límpido e musical, da presença indesmentida do gênio, sempre me causaram mal-estar. A afirmação, numa sociedade que precisa de santos e heróis, pode parecer chocante, é como fazer restrições a um filme de Glauber, um crime de lesa-pátria. E pode me render qualificativos, de cretino a vilão. Hoje, sei a causa. Enquanto sou embebido pelo profundo sentimento da História, o que nada tem a ver com realismo socialista e bobajadas do gênero, Clarice faz o trajeto oposto, na busca da essência de um “humano (universal?)”, fora do tempo histórico, balizada pelo existencialismo tão em moda no pós-guerra. Daí o sentimento de estranheza, uma suave repugnância.

A Clarice que de fato me atinge e ilumina, percebo bem, é a dos textos curtos onde o humor (capaz de burilar jóias como Uma galinha) e a ironia ferina (que numa obra-prima como Feliz aniversário chega à pura crueldade) suavizam a exaustiva perquirição em busca de uma essência nunca alcançada, o espanto permanente de se descobrir existindo. A Clarice que em mim permanece é a que, em A hora da estrela, nos presenteia com a figura da frágil e tola Macabéa, nossa irmã, inesquecível e comovente como a Cabiria de Fellini. E me pergunto se a morte prematura da autora não interrompeu uma vertente que se inaugurava, de uma maior identificação com a concretude, com o ser recortado na carne e na dor do puro momento presente.

Rubem Mauro Machado é escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixão, O executante e Lobos. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

A descoberta
Por Tatiana Salem Levy

Conheci Clarice aos 14 anos e fiquei logo doente: de paixão, de amor, de obsessão. Lembro-me do meu espanto com cada conto de Laços de família, a leitura sempre arrastada para não chegar ao fim. No auge da minha adolescência e timidez, ela se tornou minha confidente secreta para, em seguida, se tornar também o meu grande amor. Nossa relação foi crescendo com A hora da estrela e Água viva, até chegar ao ápice com A paixão segundo G. H.. Eu já não podia me conter: morria de ciúmes ao ver alguém com um livro da Clarice, controlava o ímpeto de arrancá-lo de suas mãos; mudava de assunto se alguém viesse com conversa sobre ela. Meu amor havia se tornado possessivo e, dois anos depois de descobri-la, uma certeza se fazia evidente: eu era a única pessoa a amá-la de verdade.

Com o tempo e minhas novas descobertas, a paixão foi esfriando. Primeiro, deixei de ter ciúmes, já podia ouvir outros leitores falando de suas experiências sem que isso me afetasse. Depois, fui lendo cada vez menos Clarice, traindo-a com outros autores, até o ponto em que minha paixão se transformou numa quase repulsa. Foi preciso tempo, anos, para que eu abrisse novamente um livro seu e respirasse aliviada: eu tinha razão em ter ficado tão perturbada por essa mulher, seu grito e seu silêncio.

Tatiana Salem Levy é escritora, tradutora e doutora em Estudos de Literatura. É autora de A chave de casa. Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1979. Veio para o Brasil aos nove meses de idade. Vive no Rio de Janeiro (RJ).

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho