Cemitérios não são a minha praia. Acredito que não sejam a de ninguém — o solo não é dos melhores —, mas divago. Nunca tinha ido a um (o Père Lachaise não conta: é ponto turístico, praticamente um museu dedicado à história da arte) até o dia em que resolvi deixar de besteira e passar pelo Cemitério da Consolação, aqui do lado. Fui do jeito que estava (camiseta azul cobalto, calças vermelhas, tênis amarelos de corrida), no horário que me deu na telha — pouco depois do almoço, num dia nublado.
Não sei se esse que visitei é representativo dos demais, mas, ao contrário do estereótipo, ele me pareceu um lugar tranquilo para se passear com os amigos — em outras palavras, nada assustador. Não havia cortejos fúnebres, tampouco coveiros que surgissem do nada implicando com minhas roupas. Senti-me tão à vontade que essa familiaridade me lembrou da protagonista de Rani e o sino da divisão, romance de Jim Anotsu.
Atravessei a rua e segui para dentro do cemitério, um ótimo atalho. O lugar estava silencioso, exceto pelo som de pequenos animais. Olhei as árvores por um momento, lembrando-me de quando era criança e roubava frutas com um grupo de amigos. Alguns moradores se recusavam a comer qualquer coisa dali, mas eu não ligava muito, afinal, a cidade inteira já era um grande cemitério para mim.
Aliás, não me lembrei apenas dela. Logo no parágrafo seguinte ao da citação, o leitor vê — pela primeira vez, assim como Rani — Pietro: “Eu não conseguia ver o rosto dele direito, mas enxergava os cabelos pretos bagunçados e as roupas coloridas que pareciam ter saído de um show de rock para crianças, com sua camisa amarela e tênis verde fluorescente (porque certamente uma coisa daquelas tinha que brilhar no escuro)”. Em minha visita, passeei como uma mistura da menina do cemitério com o adolescente fluorescente.
Os epítetos dos personagens antecipam a verve musical característica da narrativa: vêm, respectivamente, das canções Graveyard girl, da banda M83, e Fluorescent adolescent, dos Artic Monkeys. Tal verve transparece em mais de 70 epígrafes no decorrer dos capítulos, a maior parte delas advinda — e devidamente traduzida — do bom e velho rock’n’roll apreciado pela protagonista, que tem sua própria banda: ela e Marina são as Tank Gurls, “uma versão punk death metal do conceito The White Stripes”.
O conjunto de características dadas por Anotsu à personagem com nome retirado de um poema de Thirunaloor Karunakaran não se parece em nada com o que costumo encontrar em minhas leituras de YAs (Young Adults). Rani é negra e straight edge, usa óculos, ama livros e seriados de ficção científica, joga futebol e… descobre ser uma xamã urbana destinada a preservar o equilíbrio do mundo sobrenatural e, consequentemente, salvar o mundo. Nessa missão, ela será auxiliada pela facção Animais de Festa, uma reunião de seres tais como vampiros (Pietro é um deles) e o filho de Lúcifer, que se reúnem em uma casa temperamental chamada Gertrudes.
A história é narrada em primeira pessoa, quase um diário — com direito a constantes notas laterais e glosas a título de comentário. A fluidez da linguagem é um atrativo à parte: Rani soa como uma adolescente contemporânea e seu humor peculiar deve muito ao sábio uso tanto de piadas internas geradas na internet (fáceis de ser identificadas por um connoisseur de redes sociais, elas não chegam a comprometer a leitura de quem não as conhece) quanto das referências, aparentemente infinitas para uma mente obsessiva com amplo acesso à banda larga. Além das notas, o autor não se furta de apresentar outras intervenções no meio da narrativa: bilhete, folheto de propaganda, um caderno de turismo sobrenatural, teste vocacional, setlist do show das Tank Gurls, enfim, todos os extras que pudessem contribuir para o desenvolvimento do enredo e dos personagens — ou prolongar o suspense — são anexados ao livro.
Há também um e outro capítulo em que um ponto de vista ou estilo distinto é seguido. Meu favorito pessoal é aquele intitulado Tragédia grega em que, semelhantemente ao que David Levithan fez também em um YA (Dois garotos se beijando), Anotsu dá um tom teatral ao texto, forçando o leitor a decifrá-lo.
RANI — Aquele da alcunha de Paranoid fugiu ao travar olhar com minha pessoa. Acredito que a lição singular aplicada ao mesmo no ponto de combustíveis fósseis foi de grande valia.
MARINA — (Descontente) Não me tome por estúpida. Sua mente guarda muito bem ao que me refiro. Dou-te as letras: P-I-E-T-R-O. Feições raquíticas, sorriso de certo esquisito e que se veste tal qual um arco-íris.
RANI — Ah, isso! (Lacônica) Ignoro deliberadamente. Tal discussão me corroeu por vários momentos na carruagem de volta para casa. Pai e mãe nas perguntas alternadas, infinitas. Nome, verões de vida, estirpe e família, todas as perguntas que ouvi. E a flecha da minha vergonha foi lançada ainda mais longe. Sabe quando do seu primeiro sangramento e sua mãe envia comunicados até a presidente para dar ciência da notícia? O mesmo se ocorre entre os meus, onde até mesmo uma tia das terras do Rio de Janeiro está ciente.
Ah, “essas garotas (…) pensam que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes”. A citação do início de Esta valsa é minha (romance de Zelda Fitzgerald), uma das epígrafes iniciais de Rani e o sino da divisão, liga-se facilmente a uma fala de Brooke, a menina desenvolta de Suíte em quatro movimentos, de Ali Smith: “O fato é que eu posso ser Hermione se eu quiser. (…) Eu posso ser a Branca de Neve se eu quiser e dã óbvio que eu nunca ia ser idiota de comer aquela maçã, ninguém ia”. Jim Anotsu dá seguimento a elas e apresenta em sua obra uma boa resposta ao chavão muito atual que acusa a “ditadura do politicamente correto” de tornar a vida menos divertida — ao contrário de antigamente, como pontuou Renato Aragão, pois “Naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam”.
Um livro que reúne bom humor, aventura, romance adolescente e drama familiar certamente fez sua lição de casa para entreter o leitor que aprecia o melhor da leitura infantojuvenil contemporânea. Mas isso não parece ser o suficiente para o autor, que faz questão de subverter alguns dos maiores clichês do gênero: entre o “caminho mais percorrido” e o politicamente (uma tendência crescente nos YAs), a primeira opção parece inexistir. Meu destaque vai para a sequência de sete capítulos aventurescos em que os personagens masculinos são deixados de lado para que apenas as meninas enfrentem o desconhecido. Não há donzelas em perigo aqui: elas sabem se virar sozinhas.
Por falar nelas, dia desses vi uma menininha levando um Wolverine de pelúcia para passear num carrinho de bebê. Fiquei pensando em como Rani seria uma referência literária preferível à famosa (e tão batida) Emília. Espero que, quando ela virar uma mocinha e aprender a ler, a personagem de Jim Anotsu não seja mais exceção nas prateleiras das livrarias.