Ecos da existência

Romance de estréia de Cadão Volpato, "Pessoas que passam pelos sonhos" cria uma sutil rede de incerteza
Cadão Volpato, autor de “Pessoas que passam pelos sonhos”
01/06/2013

Apesar de improváveis juntos, Rivoli e Tortoni se cruzam e se ajudam em dois momentos diferentes de suas vidas. Tornam-se importantes um para o outro pelo que fazem, não por uma grande similaridade entre si.

Arquiteto preocupado com a arte escondida nas paredes, Rivoli encontra refúgio em construções e se interessa por elas quando viaja. Ainda guarda lembranças fortes da ditadura militar brasileira. Em dado momento, resolve viajar para um hotel no fim do mundo, como disse o arquiteto que indicou o local: é uma construção em montanhas de pedras da Patagônia, encanto para esses personagens.

Já em Buenos Aires, Rivoli conhece Tortoni, taxista apelidado por conta do seu ponto favorito, o famoso café portenho. Rivoli, que estava na capital para seguir viagem pelo interior da Argentina, pede ao taxista que o acompanhe. Esta é a primeira vez que Tortoni viaja de avião. Nesse momento, Rivoli parece ser responsável por mostrar um novo mundo a seu companheiro, um homem já acomodado em sua rotina.

Os dois seguem viagem, mas ficam presos no deserto por causa de problemas mecânicos no carro, sem que ninguém passe pela estrada para ajudá-los. Rivoli e Tortoni no início tentam passar o tempo jogando futebol e conversando sobre suas famílias (sem compreender muito o que o outro diz). Tortoni tenta entender como um brasileiro pode ser tão branco e tão grande, quase um sueco. Rivoli procura entender quando o taxista fala do filho, que aparentemente joga muito bem futebol. Passando por inanição, insolação e frio, o arquiteto perde os sentidos. Recebe ajuda de Tortoni e acorda em um hospital. Depois de poucos dias, os dois voltam para a estrada.

Tortoni e Rivoli permanecem no hotel apenas por alguns dias quando decidem voltar. O taxista fica em Buenos Aires e Rivoli retorna ao Brasil. Cada um em sua vida, com seus problemas e suas memórias, acabam perdendo o contato.

Cerca de quinze anos depois, Tortoni precisa de ajuda. O filho Francesco não vira craque de futebol e se envolve com questões políticas da ditadura argentina, tornando-se alvo da polícia. Tortoni o envia então com a namorada para a casa de Rivoli em busca de abrigo. A família basicamente adota os adolescentes, até o momento em que eles decidem voltar para a Argentina.

O auge de Pessoas que passam pelos sonhos é a construção de uma impressão não confirmada pelo autor e que permeia toda a narrativa. Ao final, pode-se duvidar até da existência de personagens.

Certeza e acaso
O enredo é construído por capítulos com diferentes objetos narrados. A primeira perspectiva que o leitor tem é de um astronauta que vê a Terra de longe. Só depois disso começa a se aproximar dos dois personagens e da história de cada um, de maneira intercalada, antes de se cruzarem.

Com essa forma, cria-se uma imagem muito forte de Rivoli e Tortoni. Descobrem-se elementos de seu passado e presente, alguns pensamentos, preferências e opções. Ao mesmo tempo, o leitor constrói essas figuras aos poucos e em camadas, descobrindo sobre eles por todo o livro.

A ditadura militar dos dois países é a única data de referência. Com trechos intercalados, diferentes momentos da vida dos personagens se mesclam.

O romance é divido em três partes — “Primeiro”, “Segundo”, “Hoje e amanhã”. No primeiro, o autor apresenta os personagens e narra sua viagem pela Patagônia. Em seguida, os filhos se encontram. Por fim, o brevíssimo “Hoje e amanhã” é uma espécie de conclusão.

Uma das características da escrita de Cadão Volpato é a construção de uma parte do enredo que não fica explícita para o leitor. Nesse sentido, o autor dá indicações que criam um sentimento em quem lê, mas elas não são confirmadas ao longo da narrativa. São uma espécie de sombra — ou sonho — que paira ao longo do livro, resultando em uma dúvida jamais solucionada.

Mesmo com o formato não-linear, a escrita é clara e fluida. O enredo é envolvente e os personagens são bem construídos: completos e coerentes, com sentimentos complexos e uma vida quase real.

Nesse sentido, Rivoli, o arquiteto, possui uma cronologia mais sólida. Ele construiu uma casa de vidro, em que os personagens ficam mais expostos e o mundo mais exposto a eles. É um espaço com relações mais externalizadas. O arquiteto e sua família têm, porém, uma casa de pedra em uma pequena cidade do interior. É um lugar em que ficam mais introspectivos e as tramas são principalmente internas. Rivoli, esposa e filhos são personagens que parecem saber para onde vão na vida.

Ao contrário deles, a família de portenha soa menos como uma construção e mais como uma obra do acaso. Não planejada, é só quando a mulher engravida que Tortoni sai de casa e começa a trabalhar. No início, vende velas para igrejas, o único trabalho que consegue encontrar. É só por uma força externa que vira taxista — um padre conhecido sugere que divida o táxi com outro motorista da região. Por fim, quando o colega morre, acaba ficando com o carro. Seu filho, depois do plano fracassado de ser jogador de futebol, também acaba sem decidir por si próprio o que fazer de sua vida.

Memórias que ecoam
Outros fatores trabalhados no livro são a memória e o sonho. Os personagens permanecem na memória um dos outros por muito tempo, mesmo depois de mudarem ou não estarem mais fisicamente juntos.

Essa característica ajuda a criar a dúvida que emana de Pessoas que passam pelos sonhos. Alguns personagens são tão frágeis que até se duvida de sua existência. São vultos ou sonhos que estão, que permanecem. Como diz Rodrigo Naves na orelha do livro, o autor constrói uma “epopéia fantasma”. Mas essa aura é dada de maneira sutil e gradual, tornando-se a surpresa do livro.

As próprias ditaduras são como vultos nas vidas dos personagens. Cadão não apresenta em nenhum momento dados concretos ou realidades inevitáveis dessas épocas. Mas o que acontecia no mundo altera os personagens, e ao leitor chega o eco das revoluções. A incerteza em relação à existência de personagens está associada ao momento de ditadura militar e pode ser vista como um reflexo do que esse tempo causou nas pessoas.

A melhor parte é a sombra que se constrói ao longo do livro na mente do leitor. No fim, resta melancolia e dúvida tanto para leitores como para personagens, reflexos de uma boa história para quem lê e de tempos turbulentos de ditadura para quem os viveu.

Pessoas que passam pelos sonhos
Cadão Volpato
Cosac Naify
320 págs.
Cadão Volpato
É escritor, músico, jornalista e ilustrador. Nasceu em 1956, em São Paulo. Já publicou quatro livros de contos (Ronda noturna, Dezembro de um verão maravilhoso, Questionário e Relógio sem sol) e um infanto-juvenil (Meu filho, meu besouro).
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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