🔓 Dos velhos e oprimidos

Além dos tão comentados traços intimistas e psicológicos, a literatura de Clarice Lispector flagra injustiças, desenganos e desumanidades
Clarice Lispector encara a “velhofobia” com sua forma peculiar de narrar
10/12/2020

— Jornal do Comércio: Você tem medo da velhice?
— Clarice: Aceito, mas com raiva.
(Uma vida que se conta, Nadia Battella Gotlib)

Está mais do que na hora de tirar alguns rótulos da literatura de Clarice Lispector e deixarmos de priorizar os aspectos intimistas, filosóficos ou psicológicos que obviamente são os mais flagrantes, mas que podem afastar os leitores iniciantes por medo das dificuldades que irão encontrar. Com muita frequência, recorre-se a dois textos específicos para dizer que a autora se redimiu pela suposta lacuna de tocar no social — a crônica Mineirinho e o derradeiro A hora da estrela. Mas o dito “social” está presente em diversos trabalhos, nos quais os narradores não só tomam conta do mundo, como flagram injustiças, desenganos e desumanidade. No próprio A hora da estrela, o narrador confessa: “É paixão minha ser o outro. No caso a outra. Estremeço, esquálido igual a ela”. Rodrigo S. M. diz ainda: “Estou passando por um pequeno inferno com esta história. Queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra”.

Parte deste processo criativo de quase incorporação foi descrito anteriormente no texto Encarnação involuntária, de Felicidade clandestina (1971): “Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la”.

É de Felicidade clandestina um dos mais belos contos de Clarice Lispector, que se chama O grande passeio. O texto, primeiramente publicado em A legião estrangeira (1964) com o título de Viagem a Petrópolis, fala de uma velha sequinha que “parecia não compreender que estava só no mundo”. Nome Margarida, apelido Mocinha, ela é desalojada do quarto dos fundos da casa onde vivia e era esquecida a maior parte do tempo, quando a família resolve que era hora de desfazer-se dela, afinal, eram todos muito ocupados. Trataram de levá-la para morar em Petrópolis, na casa de uma cunhada alemã.

Antes do “passeio” propriamente dito, o leitor percorre uma outra viagem, pela memória da personagem na véspera da noite da mudança, com destaque para as perdas — o marido e a filha. A dureza das recordações faz com que o retrato da velha ressequida se complete. Por fim, ao término da subida da serra, a velha é colocada nas imediações da casa onde deveria ficar. Ela teria que ir até lá e se apresentar. A recepção, no entanto, não foi das mais animadoras — “Não pode ficar aqui não, aqui não tem lugar não”.

Três “nãos” na mesma frase expulsam Mocinha. A recusa de Arnaldo, o dono da casa, espalha-se ainda por um parágrafo, não fosse o bastante negá-la por três vezes:

E agora estou muito ocupado! Eu lhe dou dinheiro e você toma o trem para o Rio, ouviu? Volta para a casa de minha mãe, chega lá e diz: casa de Arnaldo não é asilo, viu? Aqui não tem lugar. Diz assim: casa de Arnaldo não é asilo, não, viu!

O que acontece a partir daí não direi para não estragar a expectativa de quem não leu o conto em relação ao belíssimo final.

De fato, a velhofobia, que hoje é tema de estudos e teses, vista por Clarice em sua forma tão peculiar de narrar, é a ferida aberta de uma sociedade que, no geral, não cuida de seus velhos, especialmente quando estes não têm recursos próprios e perambulam perdidos e desmemoriados muitas vezes. Além deste texto, há vários outros que igualmente percorrem o social pelo lado mais sombrio das mazelas humanas.

O olhar de dentro é, na verdade, o espelhamento de um aguçado olhar para fora, para o outro, que capta os relances — porque a verdade era um relance, como escreve em Feliz aniversário, igualmente uma reflexão sobre a velhice a partir dos vários olhares dos convidados que chegam à festa por pura obrigação.

O “cozer” para dentro que a autora apregoa em sua célebre citação é o ato de elaboração que se conjuga ao olhar de fora, que escolhe (ou se deixa escolher) pelas personagens da vida comum. No texto em que explica o processo da tal “encarnação involuntária”, Clarice escreve ainda que, após uma dessas encarnações, ela demora a voltar a viver a própria vida — “Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, senão no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações”.

Uma autora de tamanho comprometimento com o seu redor e com os personagens que escolhe para habitar as suas páginas, não poderia jamais ser alguém para quem os aspectos sociais mais tocantes fossem ignorados. Vale a pena um mergulho na obra de Clarice, buscando este viés.

>>> LEIA “A (genial) estranheza de Clarice”

>>> LEIA “A Clarice essencial de todos nós”

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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