Atualmente, ao menos no Brasil, os clássicos ou obras do cânone universal têm se destinado mais às prateleiras particulares (com suas lombadas caprichosamente voltadas aos visitantes) que à leitura. Quantos leitores se aventuraram nas páginas épicas da Jerusalém libertada, de Tasso, ou nas da Canção de Rolando, ou no Decameron? Tais obras parecem se prestar mais a um culto respeitosamente distanciado, ainda que seus títulos, indeléveis à ação corrosiva do tempo, cintilem sobre o colorido de caracteres dourados.
Entre elas talvez a mais ilustre das “esquecidas” seja Os contos de Canterbury, do inglês Geoffrey Chaucer, que a Editora 34 lança agora, na premiada tradução de Paulo Vizioli, mantendo o bom padrão de qualidade já conhecido do leitor, em especial dos que leram as obras dos clássicos russos, em tradução direta, ou o Fausto de Goethe, em primorosa edição traduzida por Jenny Klabin Segall.
Mas o que aliena o leitor moderno dessa obra-prima da Idade Média, bem como das demais supracitadas? Talvez a própria época que refletem, com seus hiperbólicos ideais cavalheirescos, cortesãos, ou de castidade e virtude femininas, elementos de uma sólida moral cristã anacrônica, mesmo levando-se em conta as rígidas doutrinas que vigoram nas mais sisudas igrejas e templos atuais. Ironicamente esse contraste de concepções validam a leitura desses contos.
Outra razão reside no contraste que a própria obra opera em sua estrutura, em que um imenso universo ideológico separa a fidalguia do conto do Cavaleiro da libertina astúcia do conto do Homem do Mar, assim também no abismo que separa os contos da Mulher de Bath e do Estudante, que unidos corporificam o paradoxo da alma feminina.
Nasce dessa oposição de elementos uma Idade Média complexa, cujos anseios espirituais não declinam dos impulsos carnais, uma época longe da aura de devoção religiosa que o seu teocentrismo possa ainda impingir aos mais crédulos. O resultado surpreenderá o leitor pelo prazer da leitura.
Boccaccio
As afinidades que a obra estabelece com o Decameron, de Boccaccio, são notórias. De fato, quem leu as duas obras terá a impressão de que aquela está para essa assim como a Eneida, de Virgílio, está para A odisseia e A ilíada homéricas.
O ponto de partida é o mesmo: a fim de se distraírem, um grupo de peregrinos conta, cada qual, uma história para os demais, seguindo as indicações de um líder que define a ordem. Tal como em Boccaccio, as histórias encarnam valores tão díspares como abnegação virtuosa e sanha erótica; exaltam por vezes ora a astúcia maliciosa, ora a galanteria, o ascetismo e o impulso natural. Seus contos tocam do mais sublime ao mais sórdido da alma humana, num torvelinho social que justapõe diferentes tipos num mesmo contexto. E aqui, as diferenças entre as obras despontam.
Nos dez peregrinos do Decameron não encontramos uma individuação tão marcante quanto a dos vinte e nove que plasmam vícios e virtudes na jornada chauceriana. Já no célebre prólogo deparamo-nos com uma viva pintura deles, não só como indivíduos, mas também como representantes de classes sociais à mercê da mordente pena do escritor inglês. Caracterização forte e variada que diversifica os contos, tanto na forma quanto no conteúdo, sublinhando a assinatura autoral dos personagens que os narram.
Distinta também a erudição expressa em remissões filosóficas, astronômicas e históricas, e a exuberância linguística de seus versos, em inglês médio, de rimas frequentemente emparelhadas, que o leitor terá a oportunidade de averiguar nessa edição bilíngue (com alguma dificuldade, é certo, pelo vernáculo), se não optar pela tradução, que é em prosa. Por vezes Chaucer cadencia o ritmo, elaborando em sextilhas algumas partes ou trilhando o caminho da prosa.
Chaucer elabora os contos num sistema menos rígido, permitindo que cada personagem opte pelo tema sobre o qual irá fabular, o que ocasiona divertidos entreveros entre eles, além de dar espontaneidade à sucessão de histórias.
Os contos
Se no Decameron a vitalidade física e espiritual nos contos se opunha à desolação que a peste disseminava ao redor dos dez narradores, em Chaucer esse mesmo impulso parece fazer frente ao conturbado cenário político inglês da época (implícito em certas tramas); a hipocrisia religiosa aparece nas figuras do Frade, do Beleguim e, principalmente, nessa figura ímpar que é o Vendedor de Indulgências, mas no geral os contos, em sua variedade, parecem celebrar essa vitalidade, bem como registrar os revezes da Fortuna.
No primeiro e monumental conto, a Fortuna contrapõe dois irmãos, prisioneiros do rei Teseu, no amor a uma dama, em uma singular mescla de mitologia e novela de cavalaria.
Contrastam com este os contos do Moleiro e do Feitor, não apenas na baixa extração das relações amorosas como na vulgaridade dos tipos — os amantes que logram o marido crédulo no primeiro e os jovens libertinos que lesam um corrupto comerciante após abusarem de sua filha e esposa, no segundo.
Dos dissabores de Eros também tratam os contos do Proprietário de terras e do Estudante, na forma clássica da virtuosa abnegação e fidalguia sublimando os ardores da paixão.
Em voos menos elevados (e boa dose de ironia dionisíaca) os contos do Mercador, do Homem do mar e da Mulher de Bath introduzem nos jogos amorosos o ardil traiçoeiro e a astúcia para a saciedade da carne. Aliás, a Mulher de Bath, a glória do livro, é aqui a jogadora por excelência, com seus cinco falecidos maridos, seu talento para manipular e submeter, e seu insaciável apetite erótico.
Por fim, o fator religioso, outro grande tema da obra, também justapõe elementos opostos, como o anticlericalismo (os contos do Criado do cônego, do Beleguim e, principalmente, do Frade) e a exaltação da autêntica vida cristã (os contos do Magistrado e da Outra freira). A julgar pela retratação de Chaucer ao fim da obra, suas sátiras à hipocrisia religiosa vão além de um simples reflexo das tendências da época.
Sobre a edição cabe algumas considerações. O leitor não terá nela a versão integral da obra: os contos do próprio Chaucer e do Pároco aparecem aqui resumidos. Nisso ela segue outras casas editoriais, e o fundamento é de que tais contos, de qualidade desigual, seriam de leitura maçante ao leitor moderno. O argumento procede, mas para o filólogo, o historiador ou o estudioso de Chaucer certamente tais páginas elididas suscitariam interesse. A tradução em prosa mostra-se sábia escolha, pois sendo fluente (é o caso) torna-se preferível a uma que, embora respeitando a métrica e rimas, não capte a riqueza do mais importante consolidador da língua inglesa.
O mordente retrato social de diferentes classes (antecedendo Gil Vicente), a ironia sem limites e, sobretudo, o retrato da vileza humana, tudo isso responde à reiterada pergunta do posfácio: “Por que ler Chaucer hoje?”. Se tais motivos não instigarem o leitor a tirar esta obra-prima da estante, acrescente-se mais um: para divertir-se!