Distante do sonho americano

No romance "Sula", ambientado no período entreguerras dos Estados Unidos, Toni Morrison discute liberdade feminina e discriminação racial
Toni Morrison, autora de “Sula”
01/02/2022

“Por que o pânico?”, questiona Toni Morrison sobre o receio dos escritores de meados do século 20: ser considerado politizado. A pergunta de Morrison introduz o prefácio de Sula, segundo romance da autora, publicado originalmente em 1973. Essas indagações ressoam o momento literário em que a obra é republicada no Brasil, no qual dois romances socialmente perspicazes — Torto arado (2019), de Itamar Vieira Junior, e O avesso da pele (2020), de Jeferson Tenório — ganharam, sucessivamente, a maior premiação de literatura do país, o Prêmio Jabuti.

Sula repete o feito da estreia de Morrison, O olho mais azul (1970), ao colocar o protagonismo sobre mulheres negras. Os holofotes estão na amizade de Nel Wright e Sula Peace, forjada ainda na infância. O panorama, contudo, é desolador. O cenário dos anos de formação das amigas é um bairro periférico, o Fundão, na qual estão sujeitas às pressões sociais. Os Estados Unidos da primeira metade do século 20, marcado pela intensa segregação racial, é perscrutado por Morrison.

Mote recorrente na literatura, a amizade feminina em um ambiente hostil tem ressonância em escritos posteriores à Sula de Toni Morrison, vide o fenômeno mundial de Lenu e Lila, da Teratologia napolitana, de Elena Ferrante, e Tudo de bom vai acontecer (2005), da nigeriana Sefi Atta. Todavia, se em Ferrante o destino de duas bonecas costura a trama, o caso torna-se mórbido em Morrison, envolvendo o assassinato acidental de uma criança, segredo compartilhado por Nel e Sula.

Gótico americano e modernismo
Em Sula, Morrison flerta com o gótico americano, estilo que aparecerá com mais ênfase em Amada (1987). A morte ronda o Fundão como símbolo da desolação e do abandono que acometem a comunidade, majoritariamente negra. Hannah, a libertária mãe de Sula, é consumida pelas chamas enquanto parece dançar, evocando o folclore da Nova Inglaterra; a morte das bruxas, mulheres consideradas gauches. Mas a água é igualmente mortal na obra, bem como uma possibilidade de purificação, e o rio que corta o Fundão guarda os seus segredos mais profundos.

Especial é o tratamento que o categórico narrador do livro oferece às personagens secundárias, como Shadrack, criador do peculiar Dia Nacional do Suicídio. Apesar da aparente resignação, ao ver a morte como única saída, é Shadrack — sobrevivente da Grande Guerra (1914-1918) — que comanda o ato de revolta da narrativa contra o mundo branco, evidenciando a perícia de Morrison na construção de suas personagens, quase sempre dúbias.

A autora norte-americana bebe na fonte do modernismo ao fragmentar a temporalidade da narrativa, ainda que de forma mais latente em relação aos grandes nomes de décadas anteriores, como o também nobelizado William Faulkner. A narrativa potente de Sula transpassa os anos, de modo a revelar, assim, as transformações. Simbolicamente, há uma estrada sendo construída, a promessa do bairro, nas palavras de Morrison: morta como uma folha.

Toni Morrison examina os Estados Unidos no período entreguerras. Na transição para a cultura americana de abundância, com a profusão de centros urbanos como Nova York e a exuberância do Harlem — bairro de domínio negro — em plena era do jazz, a escritora prefere voltar seu olhar para uma localidade esquecida, distante do sonho americano. Não caímos, entretanto, em regionalismos. O Fundão espelha todas as comunidades negras norte-americanas, em plena era da segregação racial.

Personagens
A introdução da narrativa é um quadro reconstituído pela maestria de Morrison nas descrições. Em meio à desapropriação do Fundão, agora reivindicado pelos brancos que outrora o renegaram, ela pinta as cores e tons que definiram o cenário em que Sula e Nel desabrocharam.

É também com Amada, livro que só surgiria na próxima década, que Morrison leva a linguagem ao extremo. Na urdidura de Sula, ainda na década de 1970, a autora experimenta em tons sutis artificies como o monólogo interior. O ponto de vista preciso conduz a narrativa entre as principais personagens. Sula reflete o olhar social sobre a mulher negra, de modo que a predominância é toda feminina.

Além de Sula, personagem que dá título ao livro — e assusta os moradores do Fundão por sua contravenção às regras infringidas a seu sexo e a sua raça — somos apresentados a um caleidoscópio de marcantes personagens. Alinhadas às expectativas sociais, temos Nel e sua mãe, Helene. Elas sabem que para mulheres negras, não há margem para erros. Na contramão, a mãe de Sula, Hannah, surge como expoente da liberdade sexual.

Para completar o retrato, a matriarca Eva, a mais singular figura do livro, assim como o arquétipo bíblico, destaca-se pela primazia e pela transgressão. Com apenas uma perna, e deixada pelo marido, ela mantém um pensionato na casa que conquistou. O ambiente, sempre em profusão, ressoa a própria povoação bíblica após a expulsão do paraíso.

Sula é, desse modo, uma reflexão sobre a maternidade. Se o russo Ivan Turguêniev nomeou sua obra-prima de Pais e filhos (1862), os espelhamentos na obra de Morrison poderiam levá-la a chamar seu segundo romance de Mães e filhas. Entretanto, não apenas os laços maternais são esquadrinhados pela autora norte-americana. Há uma profunda minúcia das relações, que ressoa para nós o legado de bell hooks, ativista e feminista negra, grande examinadora do amor, que morreu em dezembro de 2021.

Ainda assim, não há como negar a força que as visões hegemônicas exercem sobre as personagens da obra. A libertação e as transgressões sexuais, com uma amostra de relações diversas, mantêm parentesco com a poligamia, mirada pela ótica do primitivismo branco. Não por acaso, a cisão da amizade entre Nel e Sula tem como causa um homem — Jude, marido da primeira. Mas o elo não se rompe. Mesmo diante da traição, Nel busca na memórias as palavras de Sula — e admite: sente mais falta dela do que de Jude.

Temas espinhosos
Com acurado olhar, Morrison compõe o panorama de subjetividades negras. Em uma viagem de trem na infância, Nel se reconhece pela primeira vez enquanto sujeito, um ser vivente. Logo, ela e a vanguardista Sula se percebem limitadas pois “ambas tinham descoberto anos antes que não eram nem brancas nem do sexo masculino, e que toda liberdade e triunfo lhes eram proibidos”.

A magia de Sula está na reinvenção proposta pelas meninas, ao jogar conforme suas próprias regras, ou seja, abrir espaço para novos modos de ser. Contudo, o mundo branco e seu olhar subjugador ainda permeiam a nova ordem, de modo que figuras transgressivas como Sula acabam por sucumbir. “Agarrar a liberdade parecia irresistível. Algumas de nós prosperaram; outras morreram. Todas tivemos um gostinho”, escreve Morrison.

A semente está, de qualquer modo, lançada. Sula é também uma fábula de resistência. A obra perscruta a liberdade feminina e o olhar sobre as discriminações raciais, sendo composta por uma miríade de temas espinhosos. Se o espectro da literatura politizada ronda os escritores do século 20, ele é incapaz de assustar a genialidade de Morrison, primeira mulher negra a ser laureada com o Nobel. Acima de tudo, Sula segue o curso do rio que rodeia o Fundão, cortante e em trânsito.

Sula
Toni Morrison
Trad.: Débora Landsberg
Companhia das Letras
176 págs.
Toni Morrison
Nasceu em Ohio, nos Estados Unidos, em 1931. Estreou no romance com O olho mais azul, de 1970. Venceu alguns dos principais prêmios literários do país, como o Pulitzer e o National Book Critics Circle Award, e foi a primeira escritora negra a receber o Nobel de Literatura (1993). Morreu em 2019.
Giovana Proença

É pesquisadora na área de Teoria Literária da USP.

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