Diários de não escrever

Trilogia dos "Diários" de Maria Gabriela Llansol marca a esperada estréia da escritora portuguesa no Brasil
Maria Gabriela Llansol por Fábio Abreu
01/09/2012

Quando, em 1943, Clarice Lispector espantou os leitores com seu primeiro livro, Perto do coração selvagem, o anonimato e a qualidade da escritora, somados à estranheza do sobrenome, levaram os resenhistas a explicitarem suas dúvidas ou pressuporem alguns dados. Assim é que Antonio Candido, cauteloso, considerou: “ao que parece uma jovem estreante”; para Álvaro Lins, tratava-se da “Sra.” Clarice Lispector — era recém-casada, de fato, aos 23 anos; mas foi Sérgio Milliet o mais contundente: “nome estranho e desagradável, pseudônimo sem dúvida”. Não se tratava de pseudônimo, mas o sobrenome destoava no conjunto em que predominavam sobrenomes de tradicionais famílias patriarcais dos interiores do Brasil, como na maioria dos escritores do Modernismo.

Algo de semelhante aconteceu no início da carreira de Maria Gabriela Llansol, escritora portuguesa que estreou em 1962 e, até o ano de seu falecimento, em 2008, produziu uma obra extremamente singular e grandiosa. Segundo nos conta o professor Jorge Fernandes da Silveira em livro dedicado à autora, “pensou-se até que ela fosse um homem. Louca”. Há mesmo algo de assustador nas escritas de Clarice e Llansol que, sem necessariamente narrarem eventos fantásticos, escrevem de um lugar que não pareceria, se não fosse escrito, alcançável pelas palavras.

Antonio Candido conseguiu dizê-lo na estréia de Clarice: “Soube transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêem mais do que sons ou sinais”. Aqui as diferenças entre as escritoras começarão a aparecer, pois dizem respeito ao modo como a escrita de ambas lida com esse território que extrapola a língua. Lê-se, por exemplo, em Um sopro de vida: pulsações, de 1978, o último livro que Clarice escreveu: “Eu não faço literatura: eu apenas vivo ao correr do tempo. O resultado fatal de eu viver é o ato de escrever”.

Ao que Llansol, em Um falcão no punho (Diário 1), em 1985, ecoa: “Não há literatura. Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros”. Enquanto o narrador de Clarice refere-se a um fazer, ao ato, ao resultado, termos de uma prática, Llansol, no diário, trata dos efeitos do escrever e, para efeitos, ao menos da própria obra, generaliza: “não há”. Além disso, os termos todos do fragmento da escritora portuguesa dão notícia de um problema da transmissão que se coloca ao escrever. Por isso mesmo, não se trata de conhecer o real da obra de Llansol; destituído de literatura, o leitor também se encontra em lugar próximo ao do escritor, quando se lê só importa saber em que real se entra; ao transmitir a leitura, numa aula, numa conversa, numa resenha, por mais lúcida ou isenta que seja uma crítica, parece que não se escapa dos fantasmas da lucidez nem dos afetos da razão.

Negativo da literatura
A trilogia dos Diários de Llansol, que agora chega ao Brasil acompanhada de um volume com as entrevistas da autora, é a estréia (póstuma) da portuguesa no país. Uma estréia importante, pois seus diários são, de fato, centrais no conjunto da obra, tendo sido publicados entre 1985 e 1996. E uma estréia tardia, penso que porque esta obra muitas vezes abre mão da narrativa para fazer, como afirma nestes diários, dos pensamentos seus personagens. Assim, ao contrário de seus contemporâneos José Saramago e António Lobo Antunes, houve um atraso muito maior na publicação brasileira de Llansol, e isso talvez se explique por a literatura brasileira, no âmbito inclusive editorial, pautar-se quase sempre por uma visão realista da literatura na leitura e na escolha das obras.

No caso de Portugal, a literatura — que, para Llansol, não há ao escrever — esteve sempre entre terra e mar, entre “um saber de experiências feito”, como o do personagem do Velho do Restelo, em Os Lusíadas, voz contrária à aventura marítima, e a revelação da máquina do mundo, dádiva concedida a Vasco da Gama, o herói do mar. Entre a voz da praça e a imagem ofertada pelos deuses, escreve Llansol no primeiro volume dos Diários: “Interrompo aqui o texto porque desliza para a metáfora. Queria desfazer o nó que liga, na literatura portuguesa, a água e os seus maiores textos. Mas esse nó é muito forte, um paradigma frontalmente inatacável”. Ao explicitar questões como esta, o diário constitui, neste caso, um espaço propício ao desvio, à obliquidade, à intersecção da escrita na lida com este nó de água.

Foi Fernando Pessoa quem inscreveu uma obra que, sem abrir mão da viagem, refaz a relação com as águas, como o refez Álvaro de Campos, por exemplo: “Meu coração é um almirante louco/ Que abandonou a profissão do mar/ E que a vai relembrando pouco a pouco/ Em casa a passear, a passear…”. Não é exatamente uma rememoração do mar, antes, trata-se de um engano da história, pois esta deixa o poeta, segundo o último verso do mesmo poema, com a metáfora do “almirante em vez de sensação”, portanto, com a metáfora que é a história (das navegações), com o deslize da metáfora, em vez de com o coração e a sensação. O poema se inscreve entre um e outro, legando-nos a disjunção entre sujeito e metáfora para, daí, trazer à tona a língua, a língua pátria. No Livro do desassossego, composto por Bernardo Soares e publicado em 1982 (três anos antes do primeiro diário de Llansol), a língua portuguesa como pátria — sendo a língua mãe — é o território entre a terra (porque a língua é um território político) e o mar (porque a língua é uma instituição simbólica) a ser habitado durante a escrita, a leitura, a fala: “Minha pátria é a língua portuguesa”.

Llansol lida precisamente com esta herança e atribui-lhe uma dimensão política um pouco diferente de Pessoa (vulgo Bernardo Soares). Anota em janeiro de 1983: “parto escrevendo através da língua portuguesa”; “aqui imaginei, sob a forma de Pessoa, um único rio cósmico que não se quebra em fronteiras e vi-o, sem perplexidade, advir ao real; por essa ocasião, lembro-me de ter sentido o desejo de que não haja países que sejam como guardas de matilhas”. Interessa apontar como esse atravessamento da língua dará aos textos de Llansol um aspecto a um só tempo místico e político que não raro se mistura a uma crise do sujeito que escreve. É que a literatura não existe e as palavras, que existem, grafam-se com toda a potência de um “falcão no punho”, pronto ao vôo e à caça do país improvável, planejado entre metáfora e sujeito, e para além da língua portuguesa.

Isso parece ficar claro na abertura do segundo volume da trilogia, Finita, que, embora tenha sido publicado em 1987, a confiar nas datas dos fragmentos, foi escrito entre novembro de 1974 e agosto de 1977. À exceção, porém, do primeiro fragmento, de 1939: uma coletânea de frases anotadas num caderno de infância, “com um coração desenhado na capa”, quando a escritora tinha 8 anos de idade. Anotações que, por mais singelas, são uma imagem da obra: “Além, depois de duas páginas em branco: Deus. Mais algumas páginas em branco: a bandeira portuguesa desenhada”. Entre a voz da praça e a voz dos deuses, os diários se escrevem como um negativo da literatura, são os bastidores da escrita de seus outros livros, o intervalo: “Quando não escrever em A restante vida, que comecei hoje, escreverei aqui”, anota em novembro de 1974.

São diários de não escrever. Escritos à mão, em cadernos. (Os livros poderiam se dividir entre aqueles que foram escritos à mão, à máquina de escrever e em computador.) Cada volume da edição brasileira da trilogia traz uma página em facsímile do diário, cujo negativo ainda aparece em detalhe no corte da capa. Ainda que leiamos o texto em fonte tipográfica, a memória da caligrafia comparece no ritmo do diário:

Escrevo nestes cadernos para que, de facto, a experiência do tempo possa ser absorvida. Pensei que, um dia, ler estes textos, provenientes da minha tensão de esvair-me e cumular-me em metamorfoses poderia proporcionar-me indícios do eterno retorno do mútuo.

É esta imagem, destacada pela própria escritora, que, somada ao que ficou dito, dá a dimensão da relação que o texto de Llansol estabelece com o leitor. Pois sua escrita aponta para o infinito — através da língua portuguesa —, o espaço do encontro, que é, portanto, sempre adiado — e, por isso mesmo, sempre retorna.

No Brasil, há dois principais leitores e divulgadores da obra de Llansol. Em Belo Horizonte, a professora Lucia Castello Branco tem publicado inúmeros trabalhos com a obra de Llansol, dos quais se destaca o livro Maria Gabriela Llansol: Caderno II, além de ter sido a responsável por esta edição dos Diários.

No Rio de Janeiro, há Jorge Fernandes da Silveira, que em 2004 publicou um livro dedicado a ler Llansol, O beijo partido, projeto que incluía a estréia da portuguesa no Brasil, o que acabou não acontecendo. Para corrigir o atraso, permitimo-nos tomar as palavras do professor e, agora sim, inscrever seu gesto de boas-vindas, desta vez realizada, numa aproximação com a escritora brasileira que, apesar de toda a cautela, insiste em se fazer: “E a claridade que há no nome Clarice (…) vem juntar-se ao sol que há no nome Llansol”.

Diários
Maria Gabriela Llansol
Autêntica
512 págs. (três volumes)
Maria Gabriela Llansol
Nasceu em 1931, em Lisboa, e faleceu em 2008, em Sintra, onde hoje funciona o Espaço Llansol. Publicou 26 livros entre 1962 e 2007, dos quais se destaca Um beijo dado mais tarde, de 1990.
Luiz Guilherme Barbosa

É especialista em literatura.

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