Uma entre tantas formas de reavivar a linguagem por meio da literatura é a composição de palavras acrescidas de sufixos e prefixos. Guimarães Rosa nos deu aula sobre isso em sua prosa ao fazer aumentar a potência de palavras desgastadas, inserindo, por exemplo, um diminutivo em algumas delas: sozinhozinho é um caso clássico e já foi explorado em sua fortuna crítica. Essa composição, já nos mostrou Eduardo Coutinho, reaviva a palavra sozinho, que, mesmo sendo uma intervenção na palavra “só”, para intensificar o sentido, já não bastava para fazer aparecer uma solidão profunda.
Algo semelhante se pode dizer do uso de prefixos em poetas como Manoel de Barros. Quando o poeta pantaneiro lança mão de composições como “desabrir” (“o que desabre o ser é ver e ver-se”) não está apenas evocando o sentido que a palavra fechar nos daria, está também reavivando a potência do próprio verbo abrir, ou melhor, induzindo-nos a ler essa ação, abrir, de forma diferente. Não se trata de fechar, antes, trata-se de abrir diferente.
É nessa chave que o livro Modo de falar às coisas (Confraria do Vento, 2019), do poeta sergipano Francisco Pippio, opera na composição de uma despoesia.
Inúmeras são as ocorrências de palavras compostas com esse prefixo no livro: “despintava”, “desinventada”, “despertencentes”, “desassombrado”, “desvenceram”, “desvoar”. Nos ocupemos um pouco desta última, desvoar. Ela ocorre num poema chamado o galo mágico:
voar, o galo até sabia. como se
jugava soberano com seu sol
avermelhado no cocuruto, ele
queria aprender a desvoar.
desvoar (ele presumia): só um
galo mágico pretenderia!
Importante ressaltar que esse poema dialoga com a epígrafe escolhida por Francisco Pippio, “Um galo sozinho não tece uma manhã…” (verso de João Cabral de Melo Neto). A magia do galo, para o poeta sergipano, estaria em querer um desvoo. E este, por sua vez, não consiste em um desejo de não voar, antes, consiste numa vontade de voo distinto dos demais galos. Um voo desigual, talvez sem plano de voo. Nesse outro jeito de voar fica sugerido, talvez, que se busque contribuir diferentemente no tecido da manhã cabralina, que é uma manhã composta de muitos outros galos. Ou seja, nesse Modo de falar às coisas, vejamos, não de falar das coisas, o tecido do horizonte ensolarando-se deve ser composto por diferentes formas de ser, diferentes formas de significar, de palavrar. Essa ideia, sabemos, reforça o espírito coletivo de João Cabral, além de oferecer uma entrada no livro de Pippio.
Uma vez dentro desse universo poético onde se fala às coisas, e eu acrescentaria, se fala com as coisas, percebemos outra forte influência de Manoel de Barros, a de investir num personagem menino para rearticular os significados da linguagem e do mundo. E ainda, investir também numa paisagem que se modifica conforme gestos de observação desse menino. À medida que essa presença infantil vai tateando o mundo de beira de rio, entre sapos e borboletas, tentando arranjar as margens e a ecologia em outras formas e funções, é a própria linguagem que se vai reorganizando, desobjetificando e ressignificando. É a palavra dizendo de novo, mas dizendo outra coisa. A própria palavra desobjeto, que aparece em Manoel de Barros, vem participar nessa beira de rio poético que Pippio elabora.
A força contida na provocação do desobjeto se liga ao efeito que esses dois poetas buscam, a saber, desfuncionalizar a palavra. É uma operação para destituir a palavra de seu significado já gasto (tanta tenha sido sua utilidade e serventia) para impeli-la novamente ao nível das coisas; que seria um nível anterior ao dos objetos, já que objeto tem função e coisa não. O desobjeto, nesses casos, de Barros e Pippio, é o objeto esquecido, sobrado, tornado resto. Inutensílio que o menino pega e faz dele outra coisa, feito um brinquedo.
Artista e artesão
O metapoema mais bonito do livro, que traz a imagem da carpintaria, evidencia a desfuncionalização da linguagem por meio da observação de algo mais funcional, como quem diz que é das coisas que a poesia tem de sair.
[…] o carpinteiro
desbastava madeira bruta para entalhar
portas. a linguagem das palavras não se
põe em pé feito portas […]
[…]
o menino […]
[…]
Preferia deslindar verbos da gramática […]
[…]
por derradeiro o carpinteiro e o menino sempre
concluíam por não terem ofícios dessemelhantes.
Notemos que a proposta do poema é aproximar o trabalho do carpinteiro (que faz coisas úteis e funcionais) ao gesto do menino (que inventa frases desarticulando a gramática). Entretanto, não é difícil perceber, trata-se de uma aproximação para apontar diferenças. Porém, o poema termina com a palavra “dessemelhantes”, de modo a conotar que ambos, menino e carpinteiro, não viam semelhanças (rearticuladas) em seus ofícios. O que pode consistir em um perigo ao próprio autor do poema.
Se nem menino nem carpinteiro percebem que há semelhança em seus fazeres, acabam consolidando a visada moderna que afastou o artista do artesão, o que é um problema não apenas para os personagens do poema, mas também para a própria poética com que vimos lendo esse bonito Modo de falar às coisas. Se o tatear do menino em beira de rio é o que nos destitui das palavras objetificadas, com funções já gastas, para nos fazer entender que é com as coisas e para as coisas que a poesia está falando, não para uma metafísica ou qualquer tipo de servilismo, como afastar as consciências do artesão e do artista? Melhor seria se ambos concluíssem terem, sim, ofícios dessemelhantes.
Esse possível deslize não depõe contra o livro. Ele apenas revela o quão movediço pode ser o investimento numa poética do “des”.
Mas seguindo com a elaboração do poeta sergipano, tão orientada, em princípio, pela escrita do poeta sul-mato-grossense, podemos nos perguntar: o que de diferente Pippio nos revela que já não tenhamos visto em Manoel de Barros, ou mesmo em Guimarães Rosa, conforme mencionado no início? É mera repetição? Mais do mesmo?
Diria que não. As articulações que Francisco Pippio prefixou com “des” nos permitem rever a potência de outras palavras também iniciadas com o prefixo “des”, mas que não tiveram seu significado gastados em demasia ainda. Exemplos são as palavras “deserdados”, “desocupadas, “destino”, “desobrigadas”, “desempatadas”, “destaparem”, “desgrudadas”, entre outras tantas.
Arranjos como “desvoar”, que ficam no grupo de palavras rearticuladas, conforme exemplo acima, podem nos fazer ler palavras ainda muito usadas e não tão desgastadas, como “desgrudadas”, de maneira mais viva, dizendo mais do que diziam até lermos esse livro.
borboletas tentaram alcançar
no horizonte palavras desgrudadas
dos silêncios para emprestar à língua
dos desletrados. […]
Depois de confrontado com tantas composições rearticuladas em “des”, o leitor não passa pela palavra “desgrudadas”, no poema acima, sem perceber outra possibilidade. E nessa outra possibilidade vemos que as palavras não formam pares de opostos ao silêncio. Antes, vemos que elas são formas grudadas de silêncio. São espécies diferentes de silêncios. E estes outros silêncios, por sua vez, são emprestados aos que são versados em outras letras. Aos que talvez não tenham estudado formalmente, mas que sabem da vida, das coisas. Por isso o livro de Francisco Pippio quer falar às coisas e com as coisas. Por isso o ofício do menino e o do carpinteiro não poderiam estar tão distanciados.
Não obstante, para além desse efeito semântico que as palavras do livro provocam, e que é inerente ao trabalho poético, o de revigorar sentidos e formas de ver, em Modos de falar às coisas nos deparamos também com bonitos momentos líricos. É o caso do poema Amanhar:
desescureço-me todo santo dia
quando borboletas desvencidas
dos casulos anunciam a manhã madura
nas ibuzeiras. aligeiro-me para plantar
sementes novas de palavras no chão árido
de minha fala antes que eu seja a tarde.
O chão árido aqui é o da própria fala do poeta. E só se colhe algo verdadeiro e vivo nessa lida diária com a paisagem se fizermos da convivência com as palavras um plantio de coisas desabertas para as coisas do mundo. Do contrário, resta não ser mais que o simples escurecer. Poesia, na pena desse escritor do Brasil contemporâneo, é uma forma de fissurar conceitos estáticos de paisagens. Neste sentido, o livro nos convida ao desaprender diário da vida em sua complexa ecologia.