De envergonhar o mago

"Longe daqui", da norte-americana Amy Bloom, é um melodrama, recheado de clichês e desgraças
Amy Bloom, autora de “Longe daqui”
01/04/2009

Paciente leitor. Quantas vezes você já se deparou com a história de personagem que empreende determinada jornada, pouco importa o motivo, e nessa caminhada encontra uma miríade de tipos esquisitos, exóticos, estranhos, bizarros? Quantas? Tudo isso! Não, cinema não vale, fiquemos apenas com a literatura. Pois é, mesmo assim é uma fartura e tanto.

Longe daqui, livro da norte-americana Amy Bloom, grosso modo, é isso. Ao examinarmos detidamente, duvido que você, criterioso leitor, não chegue a essa mesma conclusão.

Cenário: Estados Unidos, década de 1920.

Trama: Lilian Leyb abandona a Rússia depois de ver sua família — pai, marido e filha — massacrada. Parte em direção à América, de onde sempre lhe chegaram histórias livres de miséria; desembarca em Nova York e percebe que a realidade não tem muito a ver com o que escutara. O paraíso ainda estava um pouco além. Afora as dificuldades para conseguir emprego decente e os obstáculos da estranheza da língua, Lilian era constantemente atormentada pelas lembranças da filha Sophie. Até o dia em que recebe a visita da prima Raisele trazendo a notícia de que sua filha não está morta. Fora salva por um casal vizinho e levada para a Sibéria. Lilian decidi partir ao encontro de Sophie. Reencontra a realidade de sofrimentos, com a qual já tinha considerável intimidade.

O paraíso mudara de endereço, Sibéria.

Antes de iniciar a viagem de volta, Lilian passa por situações trágicas, patéticas, engraçadas, experimenta de tudo. Tais episódios são na verdade protagonizados pelos coadjuvantes que no transcorrer da trama invertem os papéis e o leitor, avesso à monotonia, aguarda a aparição dos personagens “esquisitos” que manterão o insistente Morfeu longe de sua poltrona, persistente leitor.

A cena inicial lembra o começo de um sem números de filmes de faroeste nos quais malfeitores atacam a propriedade, o rancho, de pacato cidadão, antes de matar sua mulher e filha, abusam sexualmente de ambas, em seguida queimam tudo. Quando o homem retorna, geralmente ele está consertando uma cerca, se depara com a desgraceira. Pronto: nasce um justiceiro. Sai então à caça dos facínoras.

Pois bem, cinéfilo leitor, Longe daqui é o mais puro déjà vu literário, cinematográfico, o que preferirem.

Trata-se de uma singela literatura popular e não há nada de nobre nisso, nós que costumamos massacrar Paulo Coelho, devíamos prestar a devida atenção ao que nos chega de além oceano.

E perdida ali, uma pena dourada numa terra muito, muito estrangeira. Sempre foi assim: os melhores grupos são constituídos por pessoas cheias de problemas.

Você acabou de ler a abertura de Longe daqui. Pena dourada! Nem nosso mago mor alcançou tamanho requinte. Além de não acrescentar a mais módica pitada de consistência ao nosso panorama literário ainda impedem a edição de autores tupiniquins. É de chorar.

Mas não desanime, caro leitor, pegue seu exemplar e continue em busca de argumentos que “me derrubem”. Tentarei dar uma mão.

Voltando à trama. Lilian chega a Nova York, traz algumas frases decoradas em inglês, que utiliza conforme a situação. “Muito bem, obrigada”, em caso de a pergunta contemplar sua saúde. Ao perceber na indagação as palavras costurar, traje ou trabalho, a resposta memorizada será: “Sou costureira — meu pai era alfaiate”. Em situações em que não entende o questionamento, apela para “Freqüento a escola à noite”.

Sem muito esforço, Lilian consegue a vaga. Passa a trabalhar como costureira num pequeno teatro. Acaba se envolvendo com o ator principal da companhia, Meyer Burstein. O rapaz, no entanto, se amarra em rapazes e costuma freqüentar ambientes pouco recomendáveis onde deixa fluir seus anseios homossexuais; “buracos” entre bancos e arbustos de parques são os cenários preferidos. Lilian também divide sua cama com o pai de Meyer, o senhor Reuben.

Mas permitam voltar à fila do emprego, antes de Lilian conseguir o trabalho de costureira.

A autora descreve o ambiente e uma gama de personagens “estranhos” que se você, detalhista leitor, antever um circo, não se condene. Lilian sorri para umas crianças e ao passar pelas mulheres que as acompanham sente que “elas fedem a azar”.

A seguir, de enrubescer o nosso mago.

Lilian tem sorte. Foi o que seu pai lhe disse; disse isso a todo mundo, depois que ela caiu no Pripiat duas vezes e não se afogou nem morreu de pneumonia. Disse que ser inteligente era bom (e Lilian era inteligente, afirmou ele), que ser bonita era útil (e Lilian era bastante bonita), mas ter sorte era melhor do que as duas coisas juntas. Esperava que ela tivesse sorte a vida inteira, e ela vinha tendo, até então. Ele também disse, você cria a sua própria sorte, e Lilian pega a mão de Judith, a única moça que conhece, abre caminho bem no meio da multidão e vai até a frente.

Não estou a defender Paulo Coelho, mas a vilania deve ser devidamente fatiada.

Pois bem, enquanto o tempo de Lilian é dividido entre máquinas de costura e a cama que a acolhe os Burstein, ora o papai, ora o filho; e alguns pesadelos com a filha Sophie.

Transcorria nessa toada a vida da “sortuda” Lilian até que um belo dia, sem avisar, sua prima Raisele aparece trazendo a noticia de que Sophie vive.

Amy Bloom carrega a mão na descrição, a mesma mão pesada preenche com tintas graves os contornos do sentimentalismo; não bastasse o fato de colocar o leitor diante de uma mãe em desesperado ir e vir, num primeiro momento à procura de um sentido para refazer sua vida e a na seqüência a partida na tentativa de reencontrar a filha.

Pai e filho não dão a mínima importância a sua decisão, apenas Yaakov Shimmelman, ator e dramaturgo que acumula a função de alfaiate, lhe concede ajuda. Ela, costureira; ele alfaiate, se unem, costuram. Psicanalistas, o prato está cheio.

Frase de Yaakov, sua mulher e seus filhos estão mortos: “— Antes — diz ele —, quando estava vivo, eu era um idiota. Agora sou o belo cadáver. Sou o cadáver que valsa. Você sabe”.

Ajudar Lilian será a última boa ação de Yaakov.

Depois que ela parte, ele pára de cantar no Royale, pára de cantar de implicar com Reuben, pára de debochar de Meyer. O cansaço de Reuben é o seu próprio, as mentiras de Meyer são as suas próprias, os crimes e os erros de julgamento do mundo são os seus próprios também. Ele estende toalhas na beirada da banheira, para o caso de espalhar água. Empurra a poltrona pesada, imprensando-a contra a porta da frente. Entra na banheira quente, tudo arrumado no tapete ao seu lado, e desta vez não há Reuben algum para pescá-lo dali.

Atento leitor, está lembrado que falei de certos coadjuvantes que roubavam a cena?

Desse modo, sempre com bastante espaço ao melodrama, Lilian vai de trem até Chicago, com direito ao mundo cão de Seattle até alcançar o Alasca. Percebe-se a partir desse momento resquícios de tensão psicológica nesse vaudeville travestido de drama. Mas não se entusiasme, desgraças outras virão à tona, Amy exagera, torna a viagem de Lilian um pesadelo para o leitor. Recomenda-se não ler em viagens aéreas, aqueles saquinhos plásticos não darão conta do enjôo causado.

E Sophie (“que jamais saberá que foi adotada que sempre vai se lembrar de Lilian como a prima sorridente de cabelos escuros que lhe deu um cachecol de lã azul”) estava lá.

Sophie é o coração da vida de Rivka Pinsky; ela é a jóia de sua mãe, escondida e imerecida. Cresce como Tatiana Bugayenko, uma atéia, uma Pioneira Vermelha…..

Paciente leitor, você tem em mãos Longe daqui — uma salada russa, temperada com homossexualismo, desgraça, judaísmo, ateísmo, perseverança, uma personalidade opaca, sonhos, pesadelos. Decida-se pelo tema, ande até sua estante, escolha um outro livro.

Aproveite seu tempo.

Longe daqui
Amy Bloom
Trad.: Adriana Lisboa
Nova Fronteira
224 págs.
Amy Bloom
Autora de dois romances e dois livros de contos. Foi indicada ao National Book Award e ao National Book Critic Award e teve contos publicados em diversas antologias. Colaborou com revistas como a New York Times Magazine e a Atlantic Monthly, entre outras. Vive em Connecticut e leciona na Universidade de Yale.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho