Diário mínimo é o título do conto inicial de Aconselho-te crueldade, de Fernando Fiorese. Diário seria uma remissão simultânea a duas realizações. O conto é dividido em oito seções, todas encimadas por notações temporais (“21 de março de 2001”, “Nove horas da noite”, “Meia-Noite”) que fazem supor a elaboração de um diário. Além desse, outro diário percorre as páginas: o de uma mulher cuja morte (mais provavelmente um suicídio) antecede a ação narrativa.
No final, o diário que constitui o conto revela, nas páginas iniciais do diário legado pela personagem morta, a frase que emprestará título ao volume: “Aconselho-te crueldade. Sei o que é, como reconhecê-la e acolhê-la, submetê-la e produzi-la”.
O narrador e protagonista é poeta e tradutor; sua mulher, já morta, poeta. Vivenciando um luto incapacitante, o personagem aparece trancado em um escritório, cercado por livros seus e dela e por um denso emaranhado de citações, referências, alusões — a esposa morta caracterizada basicamente em função de seus livros e suas leituras. A epígrafe de Clarice Lispector (“…toda morte é secreta”) é apenas o primeiro dos movimentos por meio dos quais se encena o desastre doméstico convertido em questão editorial e debate literário:
À direita, os meus livros. Os dela, à esquerda. Poucos. De acordo com a classificação de Barthes, ela pertencia ao segundo grupo de leitores atentos: os que não costumam sublinhar o que lêem. Livros sem marginalia, intactos, sem indícios de leitura. Sequer uma pétala seca de rosa ou uma tira de papel, sequer a rubrica e a data na folha de rosto. Nerval, Sylvia Plath, Rimbaud, Bandeira, Clarice, Poe, Augusto dos Anjos, Sá-Carneiro, Pedro Nava, Kafka, Hilda Hilst, José Régio, Baudelaire, Florbela Espanca, Emily Dickinson, Raul Pompéia, Sá de Miranda, Drummond, Proust, Dostoievski, Machado…
Nesse sentido, o conto que abre a coletânea parece funcionar como um dos momentos mais fortes do conjunto, mas também como um indicador de alguns de seus limites. O vezo (recorrente no livro) de multiplicar as referências nasce, neste caso, do próprio enredo, que justifica e fundamenta o que se seguirá. Um vezo que permanece soando incômodo, mas que pode ser lido, ainda neste caso, como uma paródia ao academicismo dos ambientes literários. Pode ser lido também como um mecanismo de defesa do personagem que escreve. De ambas as possibilidades o narrador revela-se consciente:
E você, que pensava o diário como escrever desarmado, não consegue senão engatilhar o revólver, afiar a faca, estirar a corda. Procura se aproximar de uma escrita que tanto ridicularizou, mas falta-lhe coragem para perder-se na sua ficção, para enfrentar as suas próprias palavras. Por isso as muletas das citações e paráfrases, o desejo daquele livro de cabeceira, o uso excessivo do advérbio “não”, a imitação tosca das apóstrofes de Machado e, por fim, este desdobramento abrupto e inexplicável do narrador.
Ou ainda:
Mas repetir tinha para o poeta propósitos menos ordinários e mais farmacêuticos: manter o medo sob controle, aferrar-se à ordem tranqüilizadora das coisas, degustar a fantasia de que seja possível endireitar as linhas do destino conforme as ficções do passado. E principalmente, tal uma caricatura da obra do Verbo divino, arrancar daquelas palavras — sempre iguais, sempre as mesmas, mas repetidas até encontrar um sal de diferença —, arrancar delas um corpo, aquele corpo anterior ao desastre, capaz de dizer-se sem paráfrases ou citações.
Sem paráfrases evidentes ou citações diretas, erguem-se os contos mais sólidos do volume, entre os quais se destaca o impecável Um terno para K. Contudo, o que soa caricatural em Diário mínimo (com seus personagens incapazes de falas que não sejam sofisticados projetos de erudição) acaba por turvar outros aspectos menores de todo o conjunto, como, para mencionar apenas um, o gosto evidente por epígrafes (ausentes em apenas uma das narrativas, com grande proveito para o resultado ficcional desta mesma narrativa, o conto Era uma boneca) e que, em diversos dos casos, prestam o desserviço de apontar (ou determinar, caso prefiram) uma direção de leitura para um texto que se beneficiaria da amplitude maior proporcionada pela ausência do apadrinhamento instruído.
O trabalho da citação
Um livro de Antoine Compagnon de que se publicaram no Brasil excertos ou tópicos escolhidos (O trabalho da citação, Editora da UFMG, 1996), traz uma epígrafe de Maurice Blanchot:
Primeiro, ninguém pensa que as obras e os cantos poderiam ser criados do nada. Eles estão sempre ali, no presente imóvel da memória. Quem se interessaria por uma palavra nova, não transmitida? O que importa não é dizer, mas redizer e, nesse redito, dizer a cada vez, ainda, uma primeira vez. (Maurice Blanchot – Conversação infinita)
Compagnon, Blanchot e a autora da orelha que acompanha o volume datado de 1996 (Eneida Maria de Souza) sinalizam, nesse entrecruzamento, uma concepção da literatura enquanto prática intertextual e do livro enquanto objeto híbrido: “a citação como cirurgia estética realizada no coração da escrita, epígrafes como medalhas sobre o peito do autor e as aspas como cicatrizes” (diz a orelha de Eneida).
Resistindo à oposição moderno/pós-moderno defendida na orelha (reabilitadora, de resto, da convicção de que estabelecer o período literário a que pertencem autor e obra seja o primeiro passo para a leitura funcionar), chamo ao diálogo outra das epígrafes de Compagnon: “Copiar como antigamente” (Gustave Flaubert).
Enfim, em entrevista concedida por Fernando Fiorese a Raphaela Ramos, em 11 de setembro de 2010 e publicada na Tribuna de Minas, lemos: “Sabe-se que, para a formação de um artista, há a necessidade de acesso a uma determinada tradição”.
Essa proliferante coletânea de considerações e citações seria muito desnecessária e apenas atordoante, se não me levasse diretamente ao principal aspecto a merecer discussão em Aconselho-te crueldade. A qual aspecto me refiro? A um empenho algo exibicionista que rouba ao trabalho da citação, tal como aparece nessas páginas, o gosto de um redizer que possa vir a soar como uma voz ainda não ouvida. A primeira vez de um arranjo em que o anterior é submetido à novidade de uma atualização singular.
Em se tratando de uma prosa vigorosamente bem concatenada, com alguns enredos muito instigantes (Quase eternidade) e achados narrativos muito bem estruturados (A palavra em torno), algo se desencaminha. O excesso ofusca o brilho do que, enquanto conjunto, revela um criador consciente dos recursos do gênero, da tradição que o antecede, mas, enfim, ostensivamente preocupado em se mostrar senhor de seu métier. Uma revisão mais rigorosa não teria dificuldades em eliminar do conjunto um acúmulo daquilo que, sendo compreensível (para quem escreve a esta altura e sabe que sentidos se atribuem ao fazer literário por agora), acaba por se tornar, em algumas dessas páginas, desmedido, demasia, exagero.
Kafka, Clarice, Rubem Fonseca
Assim, os sete títulos propostos para o conto que se inicia na página 99 são abusivamente clariceanos, de um modo que beira o mau gosto, pelo arremedo kitsch de uma obra como A hora da estrela, em que a estética do kitsch já fizera render tanta densidade e complexidade de sentidos. Acresça-se a isso uma dedicatória e uma epígrafe de Cecília Meireles (que, aliás, reaparecerá em outro dos contos) para que se tenha a medida da desmedida a que me refiro.
Como a epígrafe proustiana desperdiçada em As duas irmãs: Nous tenons de notre famille aussi bien les idées dont nous vivons que la maladie dont nous mourrons. O que ler, a seguir? Resta mesmo algo que o conto possa acrescentar? Ou a epifania de Peri Thaumazém… em que um clone piorado de G. H. lê Rubem Fonseca e se perde em intermináveis elucubrações mentais (citações, citações, citações) para, enfim, devorar uma banana podre.
No entanto, a sutil presença kafkiana dispersa em algumas narrativas que temperam certa dose de absurdo e um tom absolutamente corriqueiro (como em Ulisses depois da barriga e A viagem, talvez mesmo Um lugar, seus visitantes) é um presente que remete a O arquivo, de Victor Giudice e que, sem dúvida encontra em Um terno para K. uma realização superlativa:
“Merda! Merda! Merda!” As únicas palavras que ocorriam ao alfaiate por pudor não foram pronunciadas, transformaram-se num ruído que só sem pulmões se produz, um soluço, talvez uma risada nervosa; lentamente empurrou o espelho para um canto escuro, lentamente dirigiu-se para a bancada, lentamente manuseou os instrumentos do seu ofício à procura de amparo, lentamente os olhos atônitos percorreram os objetos do atelier até encontrar o cliente, quase um espectro, a cabeça inclinada para trás, o corpo completamente rijo. O alfaiate era agora como um ator solitário que, sob a luz do proscênio, esquece o texto do monólogo — o ponto adormeceu na primeira cena do segundo ato, a platéia já demonstra certa inquietação e sequer lhe ocorre improvisar, apenas espera por um blackout ou que desça a cortina. Acta est fabula!
Há, aí, algo ainda do Guimarães Rosa de Pirlimpsiquice, mas a tradição que o conto aciona engendra uma carne textual que o leitor terá desejo de percorrer e explorar: não Frankenstein, apesar dos hibridismos. Diário mínimo, conto cujas seções inicial e final são memoráveis, aconselha uma crueldade que evoca o Arquíloco de Paros cuja grande arte repaginou-se, certa vez, em um romance de Rubem Fonseca (“Tenho uma grande arte: eu firo duramente aqueles que me ferem”).
Ao aceitar estender a todo o projeto do livro essa mesma crueldade cuja artífice é tão econômica e dura que culmina no ato simbólico do suicídio, Fiorese enunciou uma opção ousada. Diversos aspectos, no entanto, tornam verossímil a hipótese de que o tenha feito sem conhecê-la tão bem quanto sua Ana C.