Da arte da palavra ao prazer da leitura

Sobre a capacidade de ver o que todo mundo vê e pensar o que ninguém pensou
Ilustração: Tereza Yamashita
01/12/2009

Com tempo ruim,
todo mundo também dá bom dia.
Gonzaguinha

1.
O primeiro alimento é a palavra. Da concepção ao nascimento ela agasalha, reconforta, acarinha: conta do frio e do calor, do inverno e do verão, do medo e da alegria. Diariamente relata, passo a passo, músculo a músculo, o transcorrer da vida.

A primeira palavra balbuciada é alimento para os que nos cercam. Há quem a grave, quem a escreva, quem a conserve ao longo de todos os tempos. É como se fosse um aviso, um prenúncio, a suprema revelação.

Cada palavra é única. Ninguém há de sabê-la melhor que nós. Pede abrigo, pede pouso, comida e roupa lavada. E, se não nos precavermos, água Perrier.

Toda palavra nos ferra. Com sua marca indelével nos lembra o silêncio dos entardeceres. Destino, punhal suspenso na esquina do coração. Estrela que se esqueceu de nascer.

Por vezes perdemos o rumo, tantas são as palavras nas terras em que se lavra o duro ofício de ser. Então é preciso vigiar dia e noite em busca das que nos revelem: como se quebra o gelo dos homens, como se sangram novos caminhos, como se aprende a crescer?

Palavras são brinquedos de armar.

Vejamos uma que indique sentimento, dor; e outra, que passe a idéia de vento, de alento, ventilar. Da mistura das duas pode-se ter ventilador. O ventilador ventila a dor? A dor que o ventilador ventila é a dor do calor? Não seria ventilacalor? E o que dizer do espanador? Ou do ralador?

Todos conhecem e cantam

O meu boi morreu
que será de mim…

mas, e se alguém trocar uma única letra, criando uma nova palavra,

O meu boy morreu
que será de mim…,

quantas leituras faremos a partir de então?

A palavra é pulsante, ardilosa em suas teias de horizonte, difícil domá-la na arena do papel.

Cabe dissecá-las, acariciá-las. Cabe imaginá-las, aqui e ali, dependuradas à frase.

Pode-se escrever no colo da vida? É confortável? Ou estará coberto de espinhos…

Doce de chuchu lambuza a alma? Um bule esmaltado fareja as manhãs? Lâminas de sal ferem? A pele do tempo sufoca? Que pássaros migram dos olhos da amada? Um céu de infinitos possui tímpanos de prazer? E as roupas sonolentas nos varais, quem as terá colocado? Os dardos da angústia prevalecem? Quem fez o laço dos moinhos e deitou-se no ventre das pedras? A tarde é uma interrogação?

O grão se faz à medida para que a palavra exploda e o menor de seus fragmentos é vida.

Que pode oferecer o que trabalha a palavra, a não ser a própria palavra retransformada em casa, beijo, prego, anzol ou pedra de rio?

A palavra arde; a palavra fere, mastiga, tritura; a palavra brota; a palavra é grão; a palavra explode em veludo.

Carpir silencioso onde sequer a voz alcança, ventre onde o som debulha notas de trigo, a palavra gera.

Seremos dignos dela?

2.
Dos 69 anos que carrego, com certa facilidade, 60 deles, por certo, dediquei, entre milhares de outras coisas, à arte de catar palavras. Parece-me que trabalho com as palavras desde sempre ou, pelo menos, desde o primeiro ano do primeiro grau (naquele tempo, primário). E não julgo que tenha sido em vão.

O primeiro jogo de cartas a dinheiro; a perda do mesmo e o medo em contar para o pai. A primeira dança com a menina que, mais tarde, voltaria a encontrar em outras circunstâncias. As brincadeiras com os amigos conquistados na ocasião, as correrias pelos caminhos desvendados. Enfim, um pedaço da infância que se perdeu no tempo. E daquele território, livre de qualquer restrição, a primeira palavra descoberta que lembro. Digo a primeira porque é a que a memória registra neste momento em que cato as palavras para escrever esta crônica.

Desbordar. Isso mesmo, desbordar era a palavra encantada que me trazia um som diferente e um sentido que não percebia muito bem. Claro que a empreguei na primeira redação daquele ano que se iniciava. E causou espanto. Por este espanto, dediquei-me a outras. E outras. Procurar palavras desconhecidas ou cujo sentido fosse, ao menos, estranho passou a ser meu secreto desejo.

Dou-me conta disso tudo ao falar para um grupo de estudantes noite dessas. Dou-me conta, agora conscientemente, que em grande parte da minha vida fui um trabalhador da palavra. Um palavrador. E tem sido uma experiência incrível!

Surgem, as palavras, nas horas mais estranhas. Numa fria madrugada me acordam, me sacodem e dizem: Levanta-te e anda! E que faço senão obedecê-las? Tiritando, saio atrás de caneta e papel para registrá-las. No ônibus, na fila do Detran, na corrida no parque. Quando menos prevenido me encontro elas me encontram. Numa reunião com amigos, no momento em que me preparo para um comentário qualquer, ela surge. Suspendo o gesto para recebê-la e brindo intimamente sua aparição. Os amigos não entendem. Que pode uma palavra, uma simples palavra, para perturbar um discurso? Ah, os amigos nunca entenderão, mas ela pode tudo.

Em outros momentos eu a procuro em desatino e ela não se revela. Busco a palavra certa para completar a frase perfeita e ela se esconde. Então não durmo, quase não converso, me disperso entre dicionários e pesquisas na internet, que o objetivo é um só: a tal palavra. E ela, feito mulher bonita e desejada, se enche de brios, se faz de gostosa, de difícil, e não cede. Sofrer por ela é quase como sofrer por um amor impossível.

Eu, palavrador, tenho feito delas uma companhia de muitas e muitas horas, entre um cálice de vinho e um concerto de Bach. Tenho, com elas, uma luta cotidiana. Com várias derrotas e algumas vitórias. Que as palavras, caros leitores, não se rendem por qualquer elogio. Não se entregam a um simples toque de dedos. São orgulhosas, as palavras. Conhecem o seu valor. Maravilhosamente carinhosas, as palavras, quando sabemos conquistá-las.

Elas se divertem com os escritores que pensam que as têm em seu poder. Riem daqueles que imaginam que elas estão a sua disposição em qualquer circunstância. Mas se deliciam com os que entendem que uma palavra não é feita tão somente de símbolos e caracteres, mas que elas contêm segredos e artimanhas. Uma palavra, caros amigos, possui alma. Perversa com quem a desdenha; generosa com quem desvenda sua intimidade.

Eu, no meu ofício a respeito. Essa que se entrega e se deixa burilar, diamantemente esplendida e luminosa, por tantos escritores, o que me causa inveja. Essa que, de vez em quando, pousa em mim cheia de encantamento.

3.
Cena 1 – Sigo, apressado, pela Rua dos Andradas em direção à Casa de Cultura Mario Quintana quando cruzo pelo jovem casal; nada lembro de suas características físicas, apenas a frase que me acompanha desde então? Ah, meu amor, me deixa empenhar o anel na Caixa, isso resolveria nossos problemas!

Cena 2 – Moro, há mais de 30 anos, em uma região onde convivo com diversos flamboyants: nunca, desde então, me pareceram tão vermelhos, de um vermelho intenso e resplandecente. Os flamboyants se dissolvem em pétalas de sangue, penso. Depois sorrio.

Cena 3 – Subo a Borges de Medeiros numa tarde qualquer de muito calor. Ao atravessar a Demétrio Ribeiro, a frase salta num repente e me toma, toda métrica e ritmo: Levantar-se a tempo de acordar o sol. Caminha até o banco e comigo retorna, grudenta sanguessuga, até que a faço repousar em um bloco.

O que há em comum entre essas cenas desconexas? Nada, dirá a maioria. Muito responderão alguns. Em verdade vos digo, homens de pouca fé, um bom ficcionista as transformaria em um conto ou novela. Excelentes, por certo.

É assim que se faz. Nada de magia, fórmulas milagrosas, inspiração divina, yoga, mentalização ou similar. Apenas, sensibilidade, imaginação e trabalho, muito trabalho.

A diferença entre uma pessoa dita normal e outra criativa é que esta possui, de forma pura e simples, percepção mais acurada, ou, conforme as palavras de Szent-Gyorgyi, essa pessoa possui a capacidade de ver o que todo mundo vê e pensar o que ninguém pensou.

Vamos ao processo. Primeiro, coloque-se que o ato criativo é individual. E, portanto, único. Depreende-se, então, a angústia de se estar frente ao computador, ou da clássica folha em branco, em busca da chamada inspiração, a qual deveria, obrigatoriamente, nos surgir a qualquer momento e proporcionar a nós, privilegiadas criaturas, a suficiente revelação que nos permitisse preencher páginas e páginas com um texto brilhante. Não é assim o desenrolar do citado processo.

Um gesto, uma palavra, uma frase, um olhar, o vento, e eis que se desarma a caixa preta interior (caixa que todos possuem, diga-se de passagem, mas que poucos, pouquíssimos têm a capacidade de desentranhar, dela, seus mistérios e segredos) e surge a idéia. É verão, com certeza, e o entusiasmo nos penetra poro a poro e perdemos o sono: gesta em nós a grande obra. Mas entre a idéia e o texto há um longo, longo inverno marcado por consultas, esboços de personagens, visualização de cenas, tentativas de diálogos, rascunhos. Ultrapassado esse tempo, armazenados até os olhos de emoções desencontradas e frágeis, eis que estamos prontos para o primeiro embate: dar corpo e forma à idéia. Não sem antes questionar: valerá a pena? Como a resposta jamais nos satisfará, seguimos, marinheiros perdidos num mar revolto em busca de um porto ao qual, talvez, nunca cheguemos. Finalmente o outono: o texto, em sua forma primeva, está pronto. Quase não acreditamos, mas ali está: no computador, datilografado, em folhas avulsas ou rabiscado num caderno. Eu disse pronto? Quanta ilusão! É tempo de reescrevê-lo uma, três, cinco vezes (mais consultas, corte de personagens ou diálogos, criação de outros personagens e diálogos, novos cortes, outros acréscimos) durante semanas, meses, anos, para, enfim, pensá-lo acabado. Tê-lo em mãos, aspirar seu hipotético perfume, murmurando, para que ninguém nos ouça, ah, meu filho…, que sensação! É quase outro texto tal a diversidade em relação ao que iniciamos. Melhor ou pior? Não cabe julgar. Eu disse pronto? A primavera é uma estação de difícil acesso.

O texto, entenda-se, é matéria-prima que não se revela de pronto. Urge lapidá-lo diuturnamente para que se obtenha, nele, o contorno esperado, a retransformação necessária. E, para tanto, indispensável se faz que nos armemos de paciência, dedicação, disciplina e suor. Ah, e também, por fundamental, de paixão.

Se de tudo resultar um livro, uma página ou frase que seja, agradeçamos e exultemos. Valeu o esforço.

4.
Imaginemos que você seja um desses apaixonados pela boa mesa. E que tenha habilidades suficientes para enfrentar a cozinha. Próximo a você os recipientes, os condimentos, os produtos, enfim o necessário para um daqueles pratos de dar água na boca. Em suas mãos a receita. Mas lembre-se, a receita é como se fosse a fórmula de um alquimista: tudo depende dela e de sua capacidade de interpretá-la e misturar convenientemente os elementos. O mínimo deslize e o feitiço pode virar contra o feiticeiro. Enfim, a receita está em suas mãos. E você possui duas alternativas frente a ela (se isto o assusta pare por aqui). Primeira: você a segue minuciosa e burocraticamente, todos os itens, passo a passo. Ao fim terá, provavelmente, um prato delicioso e elogiado. Segunda: você segue, rigorosamente, o que foi colocado na primeira alternativa. MAS (e como é importante este mas) a ela você acrescenta uma dose de criatividade, uma porção de talento, um tanto de ousadia e sem querer transformá-la, você a transforma em algo único. Os aplausos e os olhares lúbricos o consagrarão. (Um aparte: talvez na primeira tentativa o sucesso não ocorra, mas você é um desses teimosos, inquietos e persistentes. Com certeza, tentará tantas vezes quantas sejam necessárias até acertar. Em verdade, garanto, você conseguirá).

Assim se escreve. Você lê, e muito; é imaginativo, observador; freqüenta ou não oficinas de literatura. Não mais que de repente, surge-lhe a idéia, o desenho dos personagens, o desenrolar da ação, o clímax. A sua frente o computador, a máquina datilográfica ou, simplesmente, o papel em branco e a esferográfica. Em você, a receita e a técnica se complementam. E você as segue, minuciosamente, livro a livro. O resultado, claro, é encantador e merece aplausos. Mas (e como é importante este mas) se além de tudo você for um transgressor e possuir impetuosidade, destempero, ousadia, indignação, ao agregá-los à técnica atinge o nirvana. Se definir o seu próprio idioma, haverá de transformar peixes em estrelas. E quando decifrar a alquimia das palavras, sem se preocupar em transformá-las, as transformará de forma tal e tão brilhante que haverá de se perpetuar. (Talvez o sucesso não aconteça de imediato. Normal. Mas você é daqueles a quem o vento não dobra, vaso que não se quebra à primeira queda; você tem consciência de seu talento e, por isso, e por outros tantos motivos, há de perseverar. Bravos! Com toda a certeza que a vida permite, você o alcançará).

Escrever é um dom, segundo Domingos Pellegrini; não é mérito pessoal, mas herança humanitária. Honrar este dom com trabalho e ética, como em qualquer atividade humana, é o grande mérito.

Alguns o conseguem, outros não. Àqueles, seja qual for o grau, é dado olhar o pôr-do-sol através da tempestade. Meter as mãos no barro e transformá-lo em tulipas. Redescobrir a vida e sua melodia. Perceber a sutileza do espanto e empalmá-lo. Destravar o carro e deixá-lo ao sabor das correntezas sentindo o vento cortar a pele, certos de que, ao fim e ao cabo, haverá, sempre haverá, a magia das palavras e o deslumbre de quem prova e sente o maravilhoso sabor de cada um de todos os dias.

Alguém se habilita?

5.
Fico me perguntando se existe, ainda, alguma coisa a dizer sobre livros. Ou sobre leitura. Ou sobre qualquer coisa que se coloque sobre a face da terra. E me respondo, há. E assim não tenho saída, a não ser escrever sobre. Com uma ressalva: cuidado, ler pode ser perigoso.

Ler desperta sentimentos, às vezes, estranhos. E pode nos transformar. E pode nos alertar para problemas até então não percebidos. E nos despertar para realidades nunca imaginadas. Portanto, todo cuidado é pouco. Vá devagar. Não pegue pesado. Nada de começar com Cidade de Deus, do Paulo Lins; ou Vinhas da ira, do Steinbeck; ou com a poesia do Carlos Drummond de Andrade ou do João Cabral de Melo Neto. Pode-se quebrar o andor. Porque se resolver ler pra valer você é capaz de descobrir o que existe para além do horizonte da nossa vidinha quotidiana. E pode doer, amigo, pode doer. Pode provocar gastrite, provocar úlcera. E arroubos de cólera. Ao mesmo tempo, você descobrirá um bem inimaginável, mas que irá adentrar sua alma e corroê-la: a cidadania.

Talvez seja melhor, portanto, você aguardar um pouco mais e continuar assistindo ao Faustão, ao Gugu, ao Luciano, ao Ratinho e tantos outros. Daí, você continuará pensando que a vida é isso mesmo e aquilo também. Poderá dormir tranqüilo. Tomar café calmamente, sair a bordo de seu carro com ar-condicionado e som estéreo, chegar ao serviço sorrindo. Sem ver os meninos maltrapilhos nas sinaleiras; sem tomar conhecimento dos mensalões ou das últimas ações de nossos esforçados, compenetrados e bem-intencionados representantes públicos. Que você ajudou a eleger, lembra?

Talvez você se horrorize com os últimos acontecimentos ocorridos em São Paulo, mas, e daí? São Paulo está a centenas de quilômetros e nós, bem, nós estamos ao sul de outro mundo onde se tem a melhor qualidade de vida, os melhores quadros políticos, o mais belo pôr-do-sol, os melhores índices de educação. E outras tantas regalias e atributos. Para que preocupações? Tudo se resolve com mais uma grade na porta, um vigilante na calçada, um reforço no alarme. Coisas banais.

Ler, amigo, irá lhe abrir os horizontes além do trivial futebol-cerveja-carro-mulher; desenvolver o raciocínio sem prendê-lo ao feijão-e-arroz do dois mais dois são quatro; levá-lo a outros patamares de compreensão e não apenas discutir o inútil problema do Código Da Vinci; fazê-lo discernir entre tantas opções que a todo o momento se nos apresentam. Ler, amigo, irá arejar sua alma e fazê-lo entender o que se passa por trás dos acontecimentos, seja de São Paulo ou do Iraque; porque somos o que somos e porque este país é o país em que o transformamos. Talvez cause calafrios, dores nas articulações, noites mal-dormidas, taquicardia. Não importa. Leia. É absolutamente necessário para o mundo, para benefício dos que lhe cercam, para melhorar as relações interfamiliares, para desobstruir os canais incompetentes, para resolver os insolúveis problemas celulares. Leia. Seu café, a ida ao serviço, o som estéreo, o jogo de tênis nas noites de terça, o encontro com os amigos nos finais de tarde nunca mais serão os mesmos. Mas vocês, finalmente, terão se transformado em seres humanos.

Sérgio Napp

É poeta, escritor e compositor. Autor de Quintais da madrugada e Estranhos sentimentos, entre outros.

Rascunho