Corredor vazio de hospital

“Don Juan”, de Peter Handke, é uma narrativa melancólica em que se fazem notar o medo, a tristeza e a permanente ameaça de solidão
Peter Handke por Ramon Muniz
01/05/2009

Madame Bovary é um exemplo de rompimento com o romantismo e opção pela objetividade, pelo realismo; não faltam violência, sexo e fortes doses de melodrama. Anna Kariênina não esconde sua paixão, seu encantamento pelo conde Vronski e desfaz seu casamento. Diferentemente de Bovary que escondia suas aventuras, Anna não perdeu tempo, coragem e honestidade a impulsionavam. São dois exemplos de amor, mas não fiquemos restritos a esses. Temos um outro tipo de amor em Morte em Veneza: o amor homossexual platônico de um escritor por um adolescente. O Marquês de Sade é o representante maior do sadismo, masoquismo e algumas bizarrices sexuais. E o que dizer da paixão de Humbert Humbert, “o coroa”, por uma menina de doze anos, em Lolita?

São formas de amar, são disfarces do amor. E o amor é terreno propício para permitir que medrem a hipocrisia e os falsos moralismos. Que cada um ame a seu jeito, de preferência com criatividade.

Don Juan (narrado por ele mesmo), do austríaco Peter Handke, embora o título nos leve a pensar dessa maneira, não é um livro sobre conquistas amorosas. Trata-se de uma narrativa melancólica em que se fazem notar o medo, a tristeza e a permanente ameaça de solidão. O Don Juan de Handke foi um conquistador, mas no momento não passa de uma vítima de si mesmo, um Don Juan insosso, melhor dizendo. Falta um tanto do sangue dos Don Juan do boliviano Juan Claudio Lechin, de A gula do beija-flor. Não que este seja um romance dos melhores, mas percebe-se personagens com vida, ainda com emoção, aspecto inexistente em Don Juan (narrado por ele mesmo).

Don Juan é um mito-sujeito a inúmeras interpretações, inclua-se nesse rol a que o apresenta como homossexual. Creio que não exista país de língua espanhola que não tenha produzido um Don Juan em sua história literária. Grande número de países europeus também tem seu Don Juan. Peter Handke criou o seu, ou melhor inventou um cozinheiro solitário para contar a história do famoso conquistador. A solidão, tema presente em grande parte da obra de Handke, agora aparece duplicada nas pessoas de Don Juan e do cozinheiro. Desconsidere o narrado por ele mesmo. A mesma solidão — personagem irretocável de Tarde de um escritor e assustadora em O medo do goleiro diante do pênalti —, em Don Juan, passou da conta e tornou a história tão emocionante quanto um corredor vazio de hospital.

Os libertinos e aqueles que não acreditam no amor fazem disso um jogo, um jogo de xadrez onde cada peça conquistada significa um sopro de vida a mais. Se o sopro é nobre ou medíocre, não me pergunte. No romance epistolar de Choderlos de Laclos, Ligações perigosas, os aristocratas se dedicam ao prazer, à intriga, à trapaça. A marquesa de Marteuil escreve ao visconde de Valmont, dizendo que “sentia uma necessidade de enganar tamanha que me reconciliava com o amor, na verdade não para senti-lo, mas para fingi-lo”. Planos traçados, estratégias escolhidas, o estraga-prazeres entra em cena: o amor. Está pronta a tragédia. O romance conduz o leitor a uma reflexão sobre o amor e a incapacidade de amar.

Como disse acima, o que não falta é Don Juan na literatura. Temos Don Juan Tenório, de José Zorrilla, o Don Juan de Tirso de Molina (El burlador de Sevilla), entre outros, e mais o Don Juan de O retorno de Casanova, de Arthur Schnitzler (austríaco como Handke). Dos citados, Handke conseguiu manter distância apesar da riqueza de todos, dos contrastes entre Don Juan Tenório e O burlador de Sevilla, ficamos com esses para não alongar o debate. O de Tirso de Molina é um sedutor, ateu, imoral, não acredita no amor, no seu entender as mulheres são tão egoístas quanto ele. O de Zorrilla é um demônio transformado em anjo graças ao amor.

Do Casanova, de Schnitzler, de quem o Don Juan de Handke poderia se aproximar, e não lhe faltariam motivos, mas isso também não acontece, pois o personagem de Schnitzler não se rende apesar de sua decadência física, se apaixona por Marcolina, jovem que não ficava devendo nada no quesito malandragem e visão de mundo. Tanto que para lograr seu intento Casanova apela a uma estratégia nada ortodoxa. O Don Juan de Schnitzler sofre ante ao amor não correspondido somado à consciência da proximidade de sua morte.

Mas vamos ao Don Juan de Handke, ao quase enredo.

No que sobrou de um monastério em Port-Royal-des-Champs, transformado em albergue, vive um solitário cozinheiro que até então gastava seus dias lendo Racine e Pascal. Um belo dia, decide dar um basta nesse hábito. Pois justamente nesse dia Don Juan aparece no jardim do cozinheiro. O Don Juan que fora de Tirso de Molina, de Zorrilla, de Moliére, Ortega y Gasset, Schnitzler e que dali em diante seria também de Handke.

Ele passa sete dias em Port-Royal, precisava descansar, até mesmo Don Juan cansa de tanto andar mundo afora.

Mas como gastar esse tempo? Don Juan tem a resposta: contando ao cozinheiro, que agora tem motivo para cozinhar, suas mais recentes aventuras. Sete dias, sete país e sete mulheres diferentes.

E Don Juan viaja acompanhado de um serviçal. O que move Don Juan não é o sabor da aventura, mas o luto provocado pela morte do filho único. De luto, entenda essa leitor, vê-se livre apesar da melancolia para viver o momento e “curtir” uma mulher aqui, outra acolá e assim nessa repetição levar a vida. Não se trata de um sedutor esse Don Juan, tampouco um objeto do desejo das mulheres. Ele vive a aventura como nós lemos nossos jornais, mas diferente dele por motivos outros. O que esperar de um ser movido pelo luto?

Cabe ressaltar a presença do tempo na narrativa, o duplo tempo; o tempo das histórias narradas pelo cozinheiro e a passagem do tempo pelos jardins do albergue em Port-Royal-des-Champs, ambos fazendo o papel de algozes de Don Juan. Tamanha perseguição não esmorece o mito movido pela melancolia e ele abandona albergue e cozinheiro. Na certa alguém estará a sua espera para reinventá-lo.

Don Juan (narrado por ele mesmo), excetuando-se a maestria com que Handke escreve e o brilhantismo da tradução, não pára em pé. É vazio, não passa de um delicado exercício estilístico. Querem ler Handke, pois busquem os títulos citados anteriormente, e ainda A mulher canhota, Ensaio sobre a fadiga, Numa noite escura, deixei minha casa silenciosa. Esta uma obra-prima.

Choderlos de Laclos assim justificava a existência As ligações perigosas: “Quis fazer uma obra que continuasse ecoando na Terra quando eu já a tivesse abandonado”. E Peter Handke almejava o quê? Não, não responda.

Don Juan (narrado por ele mesmo)
Peter Handke
Trad.: Simone Homem de Mello
Estação Liberdade
144 págs.
Peter Handke
Nascido em 1942 na Áustria, Peter Handke renovou a literatura de língua alemã do pós-guerra já com algumas de suas primeiras obras, como Insulto ao público (teatro, 1966) e O medo do goleiro diante do pênalti (romance, 1970). O experimentalismo da fase inicial se transformou — ao longo de sua extensa produção como romancista, dramaturgo, poeta e cineasta — em uma reflexão de poeticidade ímpar sobre o processo de escritura e sobre a linguagem como mediadora da percepção.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho