Em uma entrevista antiga, o poeta Emílio Moura lembra uma conversa entre Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, isso na Belo Horizonte dos anos 1920. Depois de ler uns versos de Drummond, Nava sentenciou que estavam bons, mas a vocação do poeta era mesmo a prosa. Drummond reafirmou sua condição de poeta e Emílio conclui que os dois estavam errados. Carlos Drummond de Andrade jogava muito bem nas duas posições.
Curiosamente, apesar da intensa beleza de suas crônicas, Drummond não foi muito pródigo no exercício do que se convencionou chamar de prosa-poética. Convencionou-se trabalhar o estilo com excessos de metáforas e imagens beirando ao fantástico, tudo em favor de uma linguagem rebuscada e profundamente lírica. Ou seja, é uma prosa para ser lida com sentimentalidade e ritmo novos.
Em seus romances, sobretudo em O selo da agonia: o livro dos cavalos, Carlos Nejar intensifica seu trabalho com a prosa-poética. Há, na verdade, toda uma ligação entre o poeta e o prosador. Até mesmo nos ensaios críticos Nejar não esquece as nuances da poesia. Na monumental História da literatura brasileira, ao falar de Gilberto Freyre, escreve: “Nas peculiaridades que Gilberto se faz regional e nos elementos combináveis, universal. Pois é universal o traduzível aos idiomas do inconsciente coletivo. De um povo, todos os povos”.
Nesta linha, o surgimento de um novo livro de Carlos Nejar, como este Contos inefáveis, remete o leitor à prosa-poética, no entanto aqui ele está bem mais contido. Não que tenha renunciado de todo o estilo que tanto o marcou. As metáforas, os jogos com o fantástico, os elementos ilusórios, as palavras rebuscadas, as frases metrificadas, tudo se encontra nas linhas de quase todos estes contos. “Montei no meu cavalo, depois de encilhá-lo e o animal me entendeu. Não quis lhe dar nome algum ainda que fosse impetuoso e tivesse algo de tempestade.”
O título do livro, Contos inefáveis, termina por traduzir este espírito absurdo que paira sobre as palavras. Primeiro são os contos que, a rigor, não se prendem aos estreitos limites do gênero, mas dançam também em ambientes filosóficos, poéticos, reflexivos. Depois vem sua condição de inefável, indizível, esbanjador de beleza, comovedor. Como “a criação se estabelece no sonho”, estes textos brincam com dialéticas, afinal, “no mundo, as diferenças é que se completam”, e fatalidades — “Morrer era fácil. Só bastava cair”.
O metabolismo deste estranho e fascinante caldeirão humano se processa num único ambiente, Assombro, uma cidade encravada em um lugar qualquer do mundo. Claro que todo ambiente aponta para o universo pampiano de Carlos. Ali toda sua imaginação se espraia com universal reflexão sobre qual o sentido humano de se estar na Terra. No entanto, neste livro a vastidão do planalto se ondula diante de suas mais simples necessidades. Em outras palavras, tudo se traduz no sentido das metáforas, até esta cidade construída com todas as possibilidades legadas à imaginação.
Neste balé, Assombro ganha e perde características, como seus habitantes se fazem de carne, osso e sangue ou meramente de matéria onírica. Todos os gestos de Nejar, ao escrever estes contos, estavam voltados para o imponderável da narrativa, e somente a ela serviu e se curvou. Daí esta cidade estranha, que pode ter cores de metrópole e cheiros de estâncias, ou mesmo se fazer no limite daquelas comunidades que Gilberto Freyre chamou de “rurbana”.
Sobre ela sopra o vento dual de Carlos Nejar. É um vento que, ao mesmo tempo, traz bonança e desgraça, refresca e abrasa — imprevisível em sua essência. E dentro dele, os cavalos — seres indômitos. Mesmo aqueles domesticados, conduzidos, cavalgados, se rebelam constantemente, têm alma de liberdade. E aqui o escritor privilegia outros animais de todos os portes. Vai dos corvos aos tigres sempre estabelecendo a dimensão humana de tudo que corre sobre a terra, e aí entram de bom grado os minerais.
Esta conexão entre todas as vidas tem um sentido quase religioso na literatura de Carlos Nejar. Ele carece de oferecer sentimento para todas as coisas para espraiar uma sensibilidade indispensável para a leitura de sua obra.
E aí entra a função primordial das palavras. Nelas não repousa o sentido meramente lato, formal, que dizem todos os dicionários. Ao contrário, se reinventam permanentemente. Na verdade trata-se de um jogo com o próprio leitor. Cada um vai dar às palavras o sentido que elas podem ter na visão de cada um. E isso vai além da metáfora, antes deságua na amplíssima e inesgotável capacidade de transmutação da língua portuguesa.
Embora este texto termine falando do sentido das palavras, na prosa e na poesia de Carlos Nejar é ela, a palavra, quem dá o tiro de largada. Sobretudo nestes Contos inefáveis, embora eles tragam uma razão de ser, são as palavras quem constroem o caminho por onde devem correr as ações. Mais que contar, Nejar trabalha a forma do dizer. E o uso formal da língua unido ao senso poético resulta numa obra de cunho universal.