🔓 Contos do inferno

Nas histórias absurdas de "Friday Black", Nana Kwame Adjei-Brenyah elege demônios e zumbis para descrever o consumo exacerbado e o racismo americano
Nana Kwame Adjei-Brenyah, autor de “Friday Black”
01/04/2023

Os contistas não me levem a mal, mas é mais fácil encontrar bons romances do que bons livros de contos. Primeiro, pelo óbvio, porque há mais romances sendo editados desde sempre, é uma preferência do mercado editorial (e dos leitores?). Segundo, é bem difícil achar certa unidade em um livro com várias narrativas, às vezes com histórias e formatos bem diferentes — o que também pode ser um trunfo, mas apenas em exceções.

Por isso, quando encontro um grande livro de contos, faço questão de espalhar a notícia. Friday Black, estreia do norte-americano Nana Kwame Adjei-Brenyah, é uma reunião de narrativas curtas que empolga como os melhores romances. Publicado nos Estados Unidos em 2018, foi editado por aqui no final de 2022. E saiu por conta do esforço do tradutor Rogério Galindo, que apresentou o livro a várias editoras até que fosse publicado pela Fósforo.

Poderia começar falando de qualquer uma das 12 histórias (todas excelentes), que são diferentes entre si, mas ainda assim possuem a tal unidade que faz tão bem (na maioria das vezes) aos livros de contos. Então começo pelo começo. A primeira história, Os cinco de Finkelstein, é certamente uma das melhores do livro. É um conto forte, contestador e com uma fabulação incrível. Ainda assim, é narrado de uma forma muito sóbria. Tanto é que dei uma googleada para saber se a história não havia mesmo acontecido — porque parece e poderia ser real.

Nana (vou chamar o escritor assim, porque é o nome mais fácil que ele tem) relata o assassinato de cinco crianças perto de uma biblioteca por um homem branco chamado George Wilson Dunn. Ele decapitou as crianças com uma (pasmem!) motosserra porque “se sentiu ameaçado por jovens negros”, que ao invés de estarem lendo, estavam à toa fora da biblioteca.

Quem narra a história é Emmanuel, jovem e igualmente negro que busca um emprego e luta para driblar o preconceito diário a que é submetido — como ser seguido por seguranças no shopping, algo bem rotineiro no nosso Brasa também.

Todas essas histórias são permeadas por um espectro chamado racismo. Mas a habilidade de Nana é tamanha, que esse elemento de crítica social é incorporado à narrativa de tal forma que é impossível chamar Friday Black de panfletário, na pior acepção da palavra. Ainda que o seja, na melhor acepção do termo.

O conto é o mais longo do livro e cheio de nuances. Como a “escala de negritude” que Emmanuel cria para cada situação vexatória que passa por causa da cor. Se está vestido como um rapper, o índice aumenta, assim como quando entra em algum comércio sozinho e de gorro. O desfecho injusto do julgamento do branco decapitador de crianças negras causa uma onda de revolta, e Emmanuel entra nessa e não se dá nada bem.

Ambiente opressivo
A questão racial perpassa também O hospital onde, em que um jovem negro tenta dar conta das idas e vindas a um hospital onde o pai está internado. O que guia a história é o pacto que o narrador, um aspirante a escritor, faz com uma entidade chamada “Deus de Doze Línguas”. “Ele tinha prometido que eu melhoraria nossa vida. Que eu poderia usar o poder que ele tinha me concedido para mudar as coisas.” “As coisas” não saem tão bem como o planejado e o conto termina de forma surpreendente, em uma espécie de dia de fúria do narrador.

Nana volta ao “sobrenatural” em uma história ao mesmo tempo divertida e deprimente. Cuspindo luz narra como Superbalofo, um “solitário desagradável” que sofre bullying na universidade, mata uma colega com um tiro na cabeça e depois se suicida.

Os dois se reencontram no purgatório e o conto todo é um cabo de guerra entre Deirdra, a garota assassinada, e seu algoz. Ela acha que vai para um “bom lugar”, enquanto ele, que vai aos poucos se desintegrando, luta para não virar “um nada”. Os diálogos, mais uma vez de forma indireta, dão o tom do ambiente escolar opressivo nos Estados Unidos.

O conto-título, Friday black, é hilário, amedrontador e uma paulada no consumismo desenfreado dos Estados Unidos. A história se passa em uma loja de roupas no dia da maior promoção do comércio americano, a Black Friday.

Quem narra é o melhor vendedor da loja, que segue firme tentando bater “as metas” e se manter como o primeiro da equipe. Com um toque surrealista, os clientes são descritos como verdadeiros zumbis sedentos por calças, jaquetas e acessórios, que arrancam membros uns dos outros para conseguir os melhores produtos. É um ótimo conto, que tem a cara dos filmes de George Romero.

Os contos No varejo e Como vender uma jaqueta, segundo o Rei do Gelo têm a mesma temática. No geral, mostram como o capitalismo gera demandas e necessidades ilusórias e como isso afeta a mente das pessoas, que veem no consumo uma razão para viver. Tudo isso torna ainda mais impressionante o fato de Friday Black ter se transformado em um best-seller da famosa lista do New York Times.

Nana acaba de publicar nos Estados Unidos seu primeiro romance, Chain-gang all-stars, sobre duas mulheres negras tentando sobreviver no sistema carcerário privado. Torço, sinceramente, para que o romance seja tão bom quanto o grande livro de contos que ele escreveu.

Friday Black
Nana Kwame Adjei-Brenyah
Trad.: Rogério W. Galindo
Fósforo
224 págs.
Nana Kwame Adjei-Brenyah
Nasceu em Spring Valley, Nova York (EUA). Já publicou em veículos como New York Times Book Review, Esquire e Paris Review. Selecionado por Colson Whitehead como um dos laureados da National Book Foundation “5 abaixo dos 35”, venceu também o prêmio PEN/Jean Stein Book.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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