Contos do agora

As narrativas de "Enfim, Imperatriz" flertam com o fantástico e trabalham temas fundamentais ao nosso tempo
Maria Fernanda Elias Maglio, autora de “Enfim, Imperatriz”
30/07/2019

O sofrimento parece ser a matéria-prima dos contos de Enfim, Imperatriz — livro de estreia da paulista Maria Fernanda Elias Maglio, que levou o Prêmio Jabuti no ano passado. Suas 17 histórias investigam a fundo dores que não têm conserto, como a da rejeição e a do abandono, e, embora os textos não apresentem ligações entre si no que tange a tramas, personagens e ambientes, há um fio que os liga: uma sutil convergência de sentimentos tidos como universais a questões sociais amplamente discutidas nos dias de hoje, como machismo e homofobia.

Em Botões coloridos e soldadinhos de chumbo, por exemplo, a culpa de um menino homossexual, que até então nem se dera conta da sua homossexualidade, é perpassada pela sua relação com o pai que não o aceita como é. Na narrativa, o pai representa um problema estrutural da nossa cultura que interfere na maneira como o protagonista se reconhece.

Era o que o pai conhecia sobre mim? Isso que os vizinhos e as crianças da escola sabiam de mim antes de eu saber? Esse o segredo sobre mim que guardavam de mim?

Ainda sobre esse conto, pode-se notar no trecho destacado que, ao contar uma memória infantil, o narrador se vale de uma voz infantil. Mas o livro, apesar de falar de dores e lamentos, não infantiliza ninguém, não inocenta ninguém, nem constrói dualidades superficiais. Pelo contrário. Os personagens são fortes, as vozes são fortes, e, se questões subjetivas são entremeadas por questões políticas, econômicas e sociais, isso é mais um ganho do que uma perda.

É também o caso da narradora do conto que dá nome ao livro. Impossibilitada de ser mãe, ela inveja a outra esposa do marido pelo poder conferido a ela a partir da maternidade. Embora esteja submetida a um sistema machista que a coloca em disputa com outra mulher, a protagonista carrega na voz um tom humano e até perverso.

Conforme me falava, ia mostrando as erosões que os dias e os meses e os filhos promoveram em seu corpo. Subiu a camisola até a altura da cabeça, revelando a barriga malhada de estrias roxas, os seios frouxos, as coxas despencadas. A visão do corpo dela em barrancos provocou a alegria no meu.

Menciono essa relação do político-pessoal na literatura porque é comum haver entre os críticos ou mesmo entre os próprios escritores um imenso receio de tocar em questões políticas para não macular o teor literário da obra. Como se falar do sentimento do pobre permeando todos os entraves que ele enfrenta na sociedade fosse reduzi-lo a um estereótipo. Como se falar da sexualidade da mulher marginalizada colocando em xeque os papéis a ela estabelecidos desde a sua infância seja necessariamente se afogar em clichês. Não.

Vivemos um momento fértil, com a ascensão de vozes minoritárias nos mais diversos campos da arte; com discussões identitárias há muito tempo silenciadas e que, sobretudo graças à internet, esvoaçam por jornais, novelas, séries, filmes e textões de Facebook. É normal que os livros bebam dessa fonte. São os nossos dias. Portanto, toda essa atmosfera, queiram ou não, se refletirá com força, nas obras mais badaladas do nosso tempo.

O intenso fluxo de informações sobre a nossa condição social interfere nos livros e cria o ritmo de obras que não têm tempo a perder, de autores para quem a torre de marfim é pouco, é marasmo demais. Se nossa dor pode estar ligada à estrutura que nos oprime — e cada vez mais nos damos conta disso —, é, no mínimo, justo centrar nela parte considerável da nossa atenção. 

Fugindo do óbvio
Maria Fernanda Elias Maglio mostra em seu livro que falar de opressão não precisa ser clichê. A escritora de Cajuru, interior de São Paulo, é promotora de justiça e deve ter convivido com as mais diversas contradições humanas nos casos em que atuou. Deve ter notado também que bem e mal não são lados tão fáceis de se distinguir. Que os sentimentos que sufocam todo mundo — incluindo os daqueles que vivem à margem da cidade e das estruturas tradicionais — raramente têm nome, jamais terão uma só causa e muitas vezes não se curam. Não por acaso, Enfim, Imperatriz tem um quê de pergunta, de angústia, aparentemente nascido para nomear, buscar explicações e tentar cicatrizar o desespero do não explicado.

Foi fugindo da rota do óbvio, sem tirar os pés do chão enlameado que é a vida, que Maria Fernanda conseguiu fazer literatura. Sem respostas fáceis, o livro vencedor do Jabuti destrincha a vida em camadas. Vários trechos nos mostram que a obra busca sempre fugir de perspectivas rasas. Aqui, destaco um deles, do conto Olhos executados:

É mais fácil acreditar que a loucura explica a barbárie. Não sabia? Pois eu digo: o povo gosta de explicações que os deixem dormir. Se acreditarem que a maldade está na sandice, dormem o sono pesado dos sãos, confiando que são bons, que serão bons para sempre.

Figuras
Pelo trecho destacado, já é possível perceber que Enfim, Imperatriz ganha um tom de ensaio com frequência. Por meio de uma prosa rica em ritmo, metáforas e comparações, a autora traça reflexões valiosas para a compreensão do contexto da narrativa. Em alguns momentos, a presença desses recursos chega a ser exagerada. Mas, afinal, não é fácil fazer poesia o tempo todo com um equilíbrio que não encharque certos trechos com figuras dispensáveis. Então, se há algo que poderia ser melhor, é essa leveza no estilo.

De volta aos pontos fortes dos contos, uma das coisas mais bonitas é a maneira como eles encerram. Em geral, não há surpresa ao fim das tramas, a conclusão não se dá pelos rumos que elas tomam, mas pelo ritmo ou figura que as conclui. O que está em destaque é a ideia central, que fecha o texto como um “verso chave de ouro” e sintetiza o direcionamento que a narrativa se propõe a dar o tempo todo.

Fantasia
A construção de universos fantasiosos é outro ponto interessante. É na linguagem poética que essa fantasia se estrutura. Tal como acontece em contos e romances de Gabriel García Márquez, em que histórias inacreditáveis são contadas com um incrível tom de trivialidade, em alguns textos de Enfim, Imperatriz uma linguagem ressignificada coincide com a concepção de um universo exótico. É o que acontece em Terra alagada de sangue, que fala de um povoado em que todos deveriam ser mortos após os 45 anos. Unindo misticismo, fantasia e figuras de linguagem, os textos passam ainda mais longe do lugar-comum:

Instruções diretamente do céu diziam que a pessoa deveria ser morta às doze horas do dia em que completasse a idade limite. Deveria sair de sua casa nua, para demonstrar que da vida não se levava nada, ajoelhar-se nas raízes da mangueira e, de pescoço esticado, aguardar o golpe de misericórdia.

Da mesma maneira que as palavras são reinventadas para explicar o fantástico, elas também se esticam tentando falar da nossa vida real, mas igualmente mágica, intrigante e controversa. Da vida na qual “o bebê atravessa a barreira que aparta o mundo, revestido de um sangue que não é o dele”. Da vida na qual “homens e mulheres renunciam ao nosso próprio reflexo”. E você há de convir que essa elasticidade poética não é coisa que a gente encontra facilmente.

Enfim, Imperatriz
Maria Fernanda Elias Maglio
Patuá
156 págs.
Maria Fernanda Elias Maglio
Nasceu em Cajuru (SP) e mora na capital paulista há dezoito anos. É defensora pública. Seu livro de estreia, Enfim, Imperatriz (2017), levou o Prêmio Jabuti.
Lívia Inácio

É jornalista e já trabalhou em jornal, revista, TV e assessoria de imprensa. Publicou um livro de contos infantis e coordenou um projeto de incentivo à leitura para crianças durante três anos. Natural de Franca (SP). Mantém o blog Rodapé, na Gazeta do Povo, onde escreve sobre literatura.

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