Considerações fluviais

Todo escritor que busca o mar deve ser forte; seus textos precisam ter a força necessária para ultrapassar rios e riachos
Ilustração: Olavo Tenório
01/04/2009

Romance, conto, novela, crônica. Todos textos em prosa, denominações que alguém inventou para classificá-los, enquadrá-los na estante dos conhecimentos humanos. Na certa, elaboradas por estudiosos que julgavam necessário pôr ordem na bagunça. Como a classificação de insetos apanhados e espetados contra o painel de isopor por um cientista de avental branco que precisa separar para entender. Ainda que o próprio bicho não o saiba, cada qual ganha um nome científico e um mais popular, nomes pelos quais passam à categoria de ser. Entre um ser e outro existem diferenças. Algumas ululantes, como entre uma mosca e um louva-deus. Outras mais sutis, como as que separam os mosquitos que transmitem dengue daqueles que só fazem coçar. E entre as formas com que as palavras em prosa se juntam e se entrelaçam, como poderíamos estabelecer suas singularidades?

Não sou estudioso, não uso avental branco, não sei fazer análise sintática em uma frase que migra dos meus dedos para a tela do computador. A palavra é uma ferramenta que utilizo no dia-a-dia, qual o marceneiro usa plaina, formão. E todo marceneiro sabe que a qualidade do seu instrumental é importante para o móvel que fará, mas não é o fundamental. Se sua concepção de mobiliário não for boa, não for sólida, mesmo um instrumental poderoso não dá jeito. E todo escritor procura na palavra o móvel que quer construir, ainda que, por vezes, fique tão maravilhado com as ferramentas que esqueça do objeto. Mas não queria falar de madeira, e sim de água, serve mais ao propósito deste pequeno ensaio. Não da água em si, que pode ser classificada por inúmeras qualidades, e sim das fôrmas que dão forma à água, como textos que dão forma ao aglutinamento de palavras.

Rios, riachos e lagos. Romance, conto, novela e crônica. Textos longos e fartos qual o rio Amazonas, textos curtos e econômicos qual os riachos que se espalham feito vasos capilares pela terra. Tanto uns quanto outros são alimento e fonte de vida. Romance, novela e conto. Textos ficcionais em prosa com começo, meio e fim. E isso é um conceito fechado de linhas abertas. É engano achar que a não linearidade do tempo em uma história destrua o começo, meio e fim dela, ou que uma história começada depois de um começo e terminada antes de um fim seja outra coisa. São apenas variações, dentro de uma mesma lei. O encadeamento, dentro das variações todas, dentro de todas as limitações que isso implica — de personagens, lugar, a tal da verossimilhança, etc. — garante a unidade ao trabalho literário. É mesmo uma lei, não uma regra. Não há exceção. O que pode ser contestado é nossa noção de unidade, esta sim, em constante transformação.

Ordem na bagunça
Das tantas definições espetadas no painel, gosto da mais simples, o tamanho. Romance é longo, novela é médio, conto é curto. As fronteiras entre eles dependem tanto do número de páginas quanto da estrutura e da pegada do nadador. Cinqüenta páginas é uma novela ou um conto? Cem, é uma novela ou um romance? Não que a definição seja suficiente ou necessária, mas às vezes nos sentimos tentados a pôr ordem na bagunça.

O romance é um rio largo a que nos propomos atravessar a nado. Visualizamos nosso plano de ação enquanto fazemos alongamento, estralamos os dedos, movimentamos o pescoço e os ombros, e encaramos a tarefa a ser cumprida. O objetivo é um ponto na margem oposta, vislumbra-se um caminho no meio da água construído pela imaginação — e imaginação não é invenção, é apenas o rearranjo de tudo que já foi e tudo o que se viveu, com alguma esperança, ou algum pavor. Se a gente der um pau no começo, quebra, e o rio nos leva, o mesmo acontecendo se as braçadas forem lentas demais. Um ritmo que nos faça avançar com firmeza sem nos exaurir. No meio do caminho, um redemoinho, uma corrente inesperada, uma tempestade, o canto de uma sereia de água doce, ou mesmo um jacaré — que pode ser invisível e ter nascido do medo e da insegurança do nadador — podem nos desviar. Comum, às vezes, boiar um pouco, olhar em volta, recompor as energias para continuar a travessia, ou então, em alguns momentos, dar um gás e pôr para fora a ansiedade de pernas e braços por velocidade. Em regra não se chega ao ponto que se vislumbrou no começo da empreitada. Temos curiosidades pelo caminho. Experimentamos diferentes direções, diferentes ritmos de braçadas. E a correnteza, ainda que imperceptível, nos leva metros e metros abaixo. Por fim atracamos em um pedaço de terra que não tínhamos sequer enxergado do outro lado. E ainda que o tenhamos visto, aquele chão é mesmo outra coisa. Ele passa a existir, é sólido, deixa de ser apenas uma miragem.

O conto é um rio estreito, porém de corredeira. Os músculos estão contraídos, uma explosão iminente, uma urgência que até dói. Sabe-se bem onde se quer chegar, é nítido. As águas que correm à frente são o obstáculo em movimento a ser enfrentado. Um estrondo lança à água o corpo finalmente liberto. Mergulha-se de ponta, de maneira temerária, corre-se risco de meter a cabeça numa pedra e ficar por ali mesmo. Nada-se com braçadas precisas, decididas, rápidas, uma braçada em falso pode destruir o projeto do nadador. Chega-se quase sempre perto da meta previamente traçada. O coração e a respiração aos pulos, porque não se pôde descansar durante a travessia. Mal deu para respirar. Nadasse mais devagar, o rio teria levado e acabou, melhor começar de novo, outro ponto de partida e de chegada. A urgência é a marca principal do conto, ainda que esteja envolta em delicadeza, ou escondida atrás da brutalidade.

Ritmo e tamanho
A definição de novela depende tanto do ritmo do nadador quanto do tamanho do rio. É, em princípio, um rio de correnteza e tamanhos médios. Alguns o atravessarão como se atravessa um rio pequeno, outros como o Paranazão. Mas se tentar cruzar um rio médio-pequeno como se cruza um rio largo, ele perde o foco, a urgência, a correnteza leva, e o caminho percorrido não justificou a travessia porque simplesmente ele não existe. É tortuoso demais. Já se for um médio-grande e ele tentar a empreitada apostando na urgência de chegar, quase certo que sucumbirá quando o corpo não mais responder, prostrado de cansaço que estará. Aí sentirá o desgosto de ver a margem se afastar enquanto a correnteza o leva sem que ele consiga reagir.

A crônica é um lago. Nele o nadador se lança sem objetivo pré-determinado. Nada-se pra lá, pra cá, e tudo ao redor é estranho, não há píer, não há mais portos, enxerga-se as margens, por vezes repletas de alegrias em piqueniques, ou apenas um menino que puxa um jumento, ou um casal de namorados, ou menina linda que parece alguém do seu passado, ou um pescador com seu olhar melancólico. Por vezes a margem é deserta. Todas elas parecem inóspitas para o nadador. A estranheza é o que se põe no papel. A crônica é o retrato do dia-a-dia, sim, mas feito por alguém que não sabe se a realidade é desfocada ou se ele é que é vesgo. Dessa dissintonia nasce o texto. E ele fica ali, a nadar, perdido. É a prosa que mais chega perto da poesia. Existem aqueles que encaram a desolação com humor, mais que com humor — pois o humor, ao lado da opinião, é o grande assassino da crônica —, com graça. Outros conseguem extrair beleza. Outros, apenas dor. Enfim, cada qual com sua tragédia pessoal, nadando de lá pra cá, daqui pra lá.

Economizei a palavra força, que agora aparece. Todos os nadadores aqui descritos devem ser fortes. Todos os textos devem ter força. A força é a motriz primeira. O cara tem de ter pegada para encarar qualquer destas jornadas. Sem força não se atravessa rio algum, não se suporta horas, semanas, anos em um lago sem portos. Sem força, não vale a pena ler nem escrever. Como identificar a força no texto? Acredite, você sabe, você já sentiu no fígado, ela gruda nos ossos e passa a fazer parte da sua estrutura, você reconhece pelo cheiro de maresia que ela exala.

Se existe algum deles que é superior? Sim, o romance. Porque, como o rio grande é formado por riachos e rios menores, o romance é recheado de histórias menores com seus começos, meios e fins, que muito bem poderiam responder pelo nome de contos, se lidos em trecho. O nadador atravessa muitos rios que se misturaram no leito grande. E se ele pára para boiar e se sente desolado no mundo de água ao seu redor, são páginas de crônicas, mascaradas sob o devaneio de um personagem ou do narrador. O romance é um desafio maior. Lá existe um pouco de tudo. Sei que grandes escritores de tiro curto equiparam-se aos grandes de tiro longo, de igual para igual. Mas são em número bem menor. Talvez porque seja difícil encontrar livros em que os textos não sejam tão desiguais entre si. Talvez porque seja possível construir um romance sobre uma única rocha, e para cada história curta é preciso um pilar diferente. Um único romance ou novela pode definir alguém como grande escritor. Um conto, uma crônica, não, por melhor que seja. Como se a medida para definir uma grande obra fosse também o tempo. O tempo que se levou para produzir, o tempo que o leitor demora para absorver.

E tudo tem por fim o mar, que é o fim de toda água que se preze, ainda que por lá chegue depois da evaporação e da chuva, depois de ter passado por rins de aves migratórias ou por aquedutos gigantes, depois de algumas horas ou de milhões e milhões de anos. O mar, que é o fim de todo nadador que se preze. Ele sabe que jamais o atravessará, quer apenas sentir-se parte daquela que é maior força do planeta. E o mar, neste ensaio aquático, é a literatura.

Carlos Eduardo de Magalhaes

Nasceu em São Paulo (SP), em 1967. É autor de nove livros, dentre os quais Mera fotografia (1998), Os jacarés (2001), O primeiro inimigo (2005), Dora (2005) e Trova (2013). É editor da Grua Livros.

Rascunho