Confusão entre papéis

"Depois que as luzes se apagam" é um romance ambicioso na estrutura e no vocabulário, mas se perde na inverossimilhança narrativa
Tadeu Rodrigues, autor de “Depois que as luzes se apagam”
01/09/2023

Depois que as luzes se apagam, como sugere o título, nos conta parte da vida de um ex-palhaço de circo, já com 80 anos, que se torna amigo de um menino de 8 anos — este, dependente de um balão de oxigênio para viver; ou seja, com o velho passa a conviver uma criança dramaticamente atada ao peso de um respirador de ferro e da iminência da morte.

[O menino] Trancou a porta como adulto e descemos. Vi o aço carcereiro de ar rodar com leveza, parecia pesar poucas gramas.

O apelo temático com tais personagens é provocador, interessante.

Moram ambos no edifício Fabuloso, onde o velho Inácio (narrando em primeira pessoa) é morador dos fundos do piso térreo:

Porteiro ou morador, o andar térreo me guardava no mesmo quarto, em nove metros quadrados na parte de trás do elevador, desde que o circo me jogou no lixo.

Desenvolvem intensa amizade que ameniza a solidão de ambos, como insiste o narrador relatando quase liricamente muitos dos encontros de ambos.

A lei é a mãe
Ana Lúcia, mãe de Estevão, é inquilina que trabalha o dia todo; assim ao chegar da escola, o menino fica muitas horas ouvindo histórias na portaria. Nesses momentos, a saúde do menino tem tantos reveses, que a mãe, sob tantos sustos e internações, os proíbe de estar juntos. Parte das crises é narrada com precisão. (Só ao fim da obra, o leitor entenderá tantos detalhes.) Das histórias de circo contadas às escondidas, vão surgindo, aos poucos, ideias de atuação, com uso do vestuário, até, enfim, ensaiarem ambos para um espetáculo “de verdade”. (No que chamarão de Gran Cyrco Fabuloso). Um novo palhaço estaria surgindo, a despeito da interdição materna:

Não demorou para Estevão entender a mecânica. Circo e menino enredados.

A rotina fatiava o menino Estevão entre casa, hospital e, com menos frequência, escola. Hospital porque era doente preso a uma balão de oxigênio com rodas assobiantes.

História dentro da história
Ocorre que a história não é apenas essa, é mais ambiciosa. O livro, para o leitor, começa em outra instância narrativa: chamado o IML ao quartinho de um prédio abandonado, estava o corpo de um velho indigente, identificado como Inácio, antigo porteiro e ex-palhaço — e tido pela vizinhança como um maluco sem-teto. Dois peritos, fazendo buscas, alcançaram entre caixas de lixo um manuscrito.

É esse manuscrito que registra a história do velho e do menino, e que nós lemos. Os médicos, sentados no catre, “disputaram” a posse das folhas para ler o manuscrito. [Essa disputa de médicos “com luvas sujas de fuçar em mortos”, sob inverossímeis protocolos do IML, me pareceu estranha; não imagino especialistas em medicina legal debruçados sobre papéis, sentados na cama, talvez em presença do corpo, a tentar entender a causa mortis.]

O autor do romance recorreu a tal estrutura para contar uma história dentro de outra, emoldurando a interna (amorosa, da improvável amizade entre um octogenário e um menino) por outra (que emoldura a obra), trazendo como protagonista morto um “escritor” diletante — sem circo, sem portaria, sem amigos — e que morreu abandonado junto a seus papéis, fantasias e sujeira.

O leitor saberá, por meio de informações de vizinhos, que o edifício estava abandonado havia 30 anos, o velho era um invasor — o que traz ao leitor ambiguidades que só se resolvem ao final da obra.

Lamentei tantas explicações sobre tudo ao final: o leitor descobre que a história escrita não condizia com a verdade; e perdeu a chance de pensar na estrutura e no leitmotiv de um texto dentro de outro texto. Médicos “deliberando uma ou duas lágrimas” (?). E, descobrem os leitores, o edifício Fabuloso não era o grande edifício construído nos papéis; era “predinho de cinco andares, quadrado, valado com pranchas de madeira e todo pichado por fora, sem elevadores”. O leitor fecha o livro com todas as soluções dadas, o que fará da obra uma leitura facilmente substituível.

A técnica narrativa através de papéis achados é um legado do romantismo; aqui usada, servirá para bem marcar que o velho protagonista sem-teto existiu invisível (Marcelino Freire, na orelha, declara ter lido na obra um Brasil falido, mas que recupera o direito de sonhar — achei exagero).

Porém a história interna, espécie de autoficção, ao emular as alegrias dessa amizade, poderia ser um livro juvenil “inclusivo”, revelando felicidade possível dos doentes graves, mesmo coma escolaridade interrompida por tantas internações. A mãe do menino, Ana Lúcia (mesmo nome da mãe do narrador… saberemos ao final), representaria tantas mulheres sozinhas a criar filhos sem o devido amparo social.

Ana Lúcia era uma mistura de humor e agridoce. Seus cabelos longos o suficiente para lhe cobrirem as costas, e estou certo de que serviam de cartões de visitas, e quando necessário, revelar autonomia e firmeza.

A doce história escrita será explicada (e desmontada?) por alguém que surge de súbito: outro ex-palhaço, muito amigo do morto, que revela aos peritos que o falecido, na verdade, chamava-se Inácio Estêvão — o que nos faz juntar dois personagens num só. A doença do menino Estêvão, segundo o amigo, era na verdade a de Inácio, pendurado ele mesmo num balão de oxigênio a vida toda. Explica-se assim, num tom um tanto policial, que a história do velho seria, provavelmente, uma metamorfose ficcional e psíquica, enfeixada em ficção póstuma. A mentira da ficção seria bom tema.

E tudo seria muito interessante num desfecho menos elucidado, repito. Teríamos uma transposição de personalidades, uma representação literária interessante e, como leitores, não escolheríamos nunca se o menino, o edifício e o circo emergiram da mente literária ou da própria vida do ex-palhaço.

Além da desilusão do leitor, a quem cabe um desfecho tão nítido, creio, infelizmente, que a voz narrativa não foi bem calibrada pelo autor. A história de ambos (refiro-me à história que foi encontrada) é usada como especularidade. Explico.

Como o tal Inácio é leitor voraz, incluirá na narrativa várias citações (extravagantes para um ex-palhaço ou porteiro): cita Brás Cubas, Chico Buarque, Charles Dickens (“Porteiros também podem se afeiçoar por literatura inglesa”, diz o narrador). Muito altivo, Inácio leu Proust, Dostoiévski e é “versado em Sêneca:

Logo não terei mais conduções a pegar, boletos a pagar, vergonha a passar. Mas como versado em Sêneca, nada é tão lamentável e nocivo como antecipar desgraças.

É como se um porteiro erudito alcançasse a mais elevada posição social diante de moradores e do leitor com tal inverossimilhança (Não, isso não é preconceito cultural!). Ou seja, tantas citações parecem transformar o narrador num alter-ego ostensivo do próprio autor da obra. É a voz do autor que ouvimos na do personagem.

E mais: sob esse ponto de vista, enfrentamos uma análise social e linguística que, com certeza, traz tom narrativo muito mais contemporâneo do que seria o do octogenário, levando novamente a nos aproximar da voz do autor no narrador:

O homem tem mania de perpetuar coisas desinteressantes, vide os cartórios e os blockbusters. (…). Estamos num estado de cinismo que não incomoda, se não regrar nada. Fora desses papéis — páginas e páginas de lamentos rebuscados da minha história meio medíocre, meio fantástica –, há vida.

A construção da frase
E sobre todas essas instabilidades entre autor e narrador, emerge algo estranho à construção da frase, que não parece configurar um estilo pessoal. A criação de metáforas insólitas (o que em princípio não é ruim) faz todo o texto vibrar como excesso e gratuidade. Assim, a frase, inflada de vocábulos esdrúxulos, inquieta o leitor sem trazer algo em troca.

Apesar do desrespeito caricato que posso provocar, cito avulsos vários momentos:

autêntica inópia; planos dilúculos; minha consciência velha em metanoia esmoreceu; o silêncio assenhorou de repente; Estevão sorriu banzado; explicações suspicazes; com a cara vasca; Estevão catrafilado; ardilosa cirurgia; pés arfados; perquirições do risco; mamparra de crianças; morte rompante.

Ao leitor cabe absorver tais momentos da frase (alguns até à la Guimarães Rosa), aceitar a grande erudição do narrador, a crítica social quase direta, as idiossincrasias do trabalho dos peritos, e, ao final, deglutir, simplificada, a solução de todos os mistérios.

Assim, um tema intrigante foi, creio, preterido por ambições narrativas embaralhadas, nas quais um interessante romance de perfil psíquico em transfiguração literária parece ter se perdido.

Depois que as luzes se apagam
Tadeu Rodrigues
Nós
128 págs.
Tadeu Rodrigues
Nasceu em Poços de Caldas (MG). Advogado especializado em ciências penais e medicina legal, é escritor de romances e poesia. Também é roteirista de teatro e cinema. Desde 2018, edita e apresenta o bem-sucedido podcast literário Rabiscos. Obras: A grande peça (2012), Entrelaçadas (2014), Sebastião e Clara (2017) e Depois que as luzes se apagam (2022).
Márcia Lígia Guidin

É escritora e editora. Autora de Armário de vidro – Velhice em Machado de Assis, entre outros.

Rascunho