No conto Teoria do medalhão, Machado de Assis traz dois personagens, Janjão e seu pai, que discorrem sobre as maneiras de se alcançar certo status na sociedade sem necessariamente despender muita energia. A certa altura do texto, o pai de Janjão é taxativo: é necessário fazer um esforço para refrear as idéias. Conforme se lê no texto, a título de maior precisão: “As idéias são de sua natureza espontâneas e súbitas; por mais que a sofreemos, elas irrompem e precipitam-se”. Machado de Assis alude à ironia para dissertar ironicamente sobre o papel do status nos salões da corte no século 19. Chama a atenção, no entanto, a verdadeira homenagem que o autor presta ao conceito da idéia. Em Machado, elas jamais estão fora do lugar, servindo, portanto, para traçar um interessante painel da sociedade de seu tempo. Em 2010, Machado de Assis ainda permanece no imaginário dos leitores. No recente A ilusão da alma — Biografia de uma idéia fixa, o escritor, filósofo e economista Eduardo Giannetti traz a história de um professor universitário especialista em Machado de Assis, que, açodado pelos acontecimentos, se vê preso a uma idéia fixa. O que acontece daí por diante pode ser sintetizado como um interessante embate intelectual e uma discussão profunda sobre filosofia, comportamento, crença e, por que não dizer?, a capacidade do ser humano de, apesar de tudo, elucubrar.
O romance se divide em três partes. No primeiro trecho (O tumor físico), o narrador expõe de que forma foi tragado para uma nova condição, do tumor físico. Trata-se, portanto, dos antecedentes que fizeram um professor universitário, doutor em Machado de Assis e lotado na Universidade Federal de Minas Gerais, ficar perplexo ao descobrir que sua cabeça está em colapso. Desterrado de si e inadequado nessa nova situação, o leitor observa o personagem perder a segurança que tinha do mundo e atravessar, entre o temor e o tremor, uma cirurgia que lhe extirpa o tumor que tem no cérebro. Nesse momento, quando aparentemente deveria ter renascido, o protagonista se encontra destituído de sua função profissional, tendo em vista que, como dano colateral, sua audição é gravemente prejudicada. Por esse motivo, aposenta-se como professor e, enfim, passa a buscar novos desafios e objetivos intelectuais. Eis, no entanto, um problema: a pesquisa que o professor passa a fazer nada tem a ver com Machado de Assis em particular ou com a literatura em geral. O protagonista, uma vez atingido pela percepção de que o leitmotiv se dá pela ciência, decide, então, descobrir mais sobre a relação mente-cérebro. E é nesse ponto que temos a primeira grande virada da narrativa.
Essa grande virada se justifica porque, na segunda parte (Libido sciendi), o que se lê é a história de um homem que encontra na pesquisa sua razão de viver. E essa razão não se dá por vaidade ou por objetivo profissional. O professor se torna aprendiz porque necessita resolver as dúvidas que restaram do primeiro capítulo e que, no início do segundo, tornam-se mais patentes, podendo, talvez, ser resumidas em uma só: o problema da relação mente-cérebro. Para chegar a essa resposta, Giannetti faz uso de uma abordagem ensaística. Trata-se, com efeito, de um gênero, o ensaio, que deixa o autor bastante à vontade, haja vista que seus livros anteriores (como Felicidade e Auto-engano) são elaborados conforme essa estrutura. A diferença de suas obras anteriores para com este livro, no entanto, é elementar: este A ilusão da alma é um texto de ficção, e o autor, habilmente, supera o desafio de articular uma prosa romanesca com ensaio de idéias. O artifício para alcançar o objetivo, aliás, é bastante sofisticado: embora a história seja contada por um narrador, tem-se a impressão que duas histórias paralelas são narradas por dois autores distintos. E isso fica evidente em uma diferenciação na tipologia dos textos. Mais do que o aspecto gráfico, a verdadeira diferença se dá na abordagem. Enquanto o romance é contado de forma efetivamente “prosaica”, ou seja, com o relato tout court, o outro texto se mostra como apreciação crítica de um fenômeno intelectual.
Conhece-te a ti mesmo
É ainda na segunda parte do romance que se dá o salto essencial, o que faz de Biografia de uma idéia fixa um livro bastante original. Isso porque o autor propõe um debate, a um só tempo sofisticado e ilustrativo, acerca da oposição entre Sócrates e Demócrito, dois dos grandes pensadores gregos de toda a história da filosofia. Longe de ser a exposição cabotina de um escritor vaidoso, o debate sobre Sócrates e Demócrito existe com real objetivo para a existência do romance. É porque, uma vez destituído do cargo de professor universitário, o protagonista do romance de Eduardo Giannetti “gasta” suas horas com uma leitura dedicada a propósito da relação mente-cérebro. Em uma espécie de “conhece-te a ti mesmo” profundo, o protagonista deseja saber mais sobre si e, portanto, sai a pesquisar e a escrever de maneira dedicada a propósito dessa questão que tanto o interessa e, mais do que isso, o inquieta. Amiúde, aproveita, também, para lembrar, de forma sentimental, de sua própria trajetória, enfrentando uma espécie de recordação, entre o trauma e a saudade, de seu pai, figura que possui força elementar para a constituição de seu caráter e de sua personalidade. Pouco a pouco, à medida que a ação evolui, o leitor é conduzido para o que seria a verdadeira solução do enigma mente-cérebro. Não custa repetir, é de maneira formidável que o autor compõe esse painel intelectual, ainda que, para isso, exija do leitor alguma paciência para com as referências. Do ponto de vista filosófico, esse exercício de intertextualidade — Giannetti parece ter uma capacidade inesgotável para citações e ilustrações literárias — se justifica pela necessidade de trazer algum realismo a um romance feito à moda de um estudo acadêmico. Sim, faz bastante sentido.
Afinal, se fosse de outra maneira, o desfecho do livro não seria tão surpreendente. Chega-se, na terceira parte (O tumor metafísico), para o segundo grande salto da narrativa. Dez anos depois de ter sobrevivido ao tumor cerebral, o protagonista segue em desengano. Agora, não mais um desengano clínico, mas, sobretudo, existencial. Aos poucos, descobre que seu achado pouco ou nada acrescenta àquilo de que, como ser humano, ele é feito. E é dessa forma que o protagonista admite as suas limitações:
Padeço de uma severa falta de unidade interior. Não, ele não é passível de plena assimilação e absorção na vida comum. Entretanto, ouso crer que fui tão longe quanto é desumanamente impossível chegar. A isso se reduz a minha originalidade; nisso reside a minha tragicomédia de província.
Em outras palavras, a dicotomia entre mentalismo e fisicalismo, tópicos que se tornam extraordinários em um sujeito demasiadamente humano, acaba por ser intelectualmente resolvida, mas, no que se refere à vida cotidiana, tal encontro com a verdade não acrescenta nada de novo. E é singular que, nesse momento, ele veja em seu duplo, o médico responsável pelo diagnóstico de sua doença, alguém capaz de entender a solução desse debate racional, mas que, por algum motivo, supera os eventuais dilemas que esse choque de realidade provoca. A resposta, aqui, não poderia ser mais simples — e, por isso mesmo, mais abrangente na sua significação “é que eu não sou muito de elucubrar”, diz o doutor.
Em A ilusão da alma, Giannetti não apenas expõe o dilema entre mentalismo e fisicalismo, mas elabora um romance sensível a propósito de um tema bastante complexo. Ao fim do livro, os leitores saem certos de que, assim como vaticinava o personagem de Machado de Assis, as idéias, sim, irrompem e se precipitam. E só ao compreender do que elas são capazes pode-se, de fato, conhecer um pouco sobre si mesmo.