Coisas que os homens não entendem

Em novo romance, Elvira Vigna recupera o tema da traição amorosa e critica a sociedade machista
Elvira Vigna.
01/03/2015

Durante a adolescência, o título Coisas que você pode dizer só de olhar para ela me parecia inspirador: sugeria que, diante de um olhar arguto, qualquer mulher se tornaria transparente — não vi o filme. Talvez a maturidade possa ser medida pela admiração crescente por outro título, em detrimento do já citado: Coisas que os homens não entendem — romance de Elvira Vigna que ainda não li

Posso enumerar a lista de motivos, terminando com as neves do Kilimanjaro, mas não espero que você entenda. Não espero que você entenda nada nunca.

Não ter lido não significa que inexistam expectativas. Pois foi repleto delas que entrei em contato com a obra mais recente da escritora, Por escrito — já lera antes a HQ Vitória Valentina e dois romances, além de alguns infantis. Durante a leitura, lembrei que ler também é comparar: a linguagem, elíptica sem ser hermética, não deixava dúvidas de que o novo livro era da mesma autora de O que deu para fazer em matéria de história de amor; no enredo, contudo, Por escrito se revelou um livro irmão (ou espelho) de Nada a dizer.

Você quer que a gente more junto há muito tempo, já, nesse dia. Casamento é bom para homens.

No romance anterior, a protagonista narra em detalhes o que acontece após a descoberta de que o marido tinha uma amante; sobre como deixou de se permitir piadinhas a respeito do tema, algo possível quando a confiança ainda existe (“Essa brincadeira também sumira, junto com as outras coisas, porque a graça era justamente sua total impossibilidade. Ter um amante, para Paulo ou para mim, sempre foi algo inimaginável. E, portanto, engraçado de imaginar.”), e como ela se viu transformada em um clichê (“Eu não existir para Paulo foi só um preâmbulo rápido antes de eu não existir para mim mesma. Passei a não estar mais em mim. E a me encontrar em cada episódio de CSI, Criminal Minds, SVU, Cold Case e todos os outros, sempre pródigos em relatar adultérios, calhordices e mentiras, antes de um final apaziguador, já que cheio de sangue. Eu, saída de mim, virei a mulher traída de todas as histórias existentes e ainda por existir.”). Em Por escrito também há um Paulo (seria o mesmo?), mas a narração fica por conta do outro lado da moeda: a mulher que é sua amante — dessa vez denominada: Valderez.

Nuances
Isso por escrito, nas frases cheias de erro, que se atropelam em msgs e skypes. Abreviaturas, carinhas feitas de dois pontos parêntesis, e ainda o silêncio, e ainda os olhos que podem sair da tela, ir para a parede branca e lá ficar por todo o tempo. Mas principalmente o silêncio.

Dessa vez é a narradora que, muitas vezes, não tem nada a dizer — “I would prefer not to”. Mas contar o “outro lado da moeda” não resume o que Vigna faz em Por escrito. Há muito chão para percorrer (São Paulo, Paris, Curitiba, Brasília), muita história para contar: um casamento a ser celebrado, outro desmoronando (e outro apenas uma promessa); uma bailarina e uma sacada; uma montagem teatral, o “Nelson Rodrigues possível”; uma visita a um quilombo e o diálogo com o passado; a onipresença dos eventos corporativos e a linguagem publicitária que reina neles; um câncer. E não apenas: a posição em que a narradora se coloca (“Uma presença ausente, eu sentada por eternidades em cadeiras pré-moldadas de aeroportos, deitada em colchas pré-históricas de hotéis baratos, eu lá e não lá, eu parada ou a mil por hora, no emparelhamento possível com outros bólides que vão, como eu, com toda a firmeza, para lugar nenhum, indiferentes.”) permite-lhe dar atenção especial a coisas quase imperceptíveis, gestos mínimos e automáticos. Como quando ela encontra o irmão em Paris:

O abraço e eu, sem jeito, sem saber o que fazer, passo a mão no rosto dele sabendo que provavelmente ele não gosta mais que passem a mão, que peguem, que se esfreguem, que isso é coisa de brasileiro e ele não é mais muito brasileiro.

Há outros, diversos, por toda a narrativa: “Barbudos que se cumprimentavam ao meu lado com tapas para declararem que, apesar de terem marcado um encontro para irem juntos ao cinema, continuavam sendo muito machos e artistas e fodões”. No aeroporto, ninguém lhe escapa: “Homens cafajestes de diversos modelos, esportista, gordo bem-sucedido, executivo de terno, todos eles apêndices de celular, cocôs que saem de celulares e nem saem de todo, ficam lá, pendurados. Cocôs falantes”. Há um gesto em particular cujas nuances serão analisadas em profundidade, quase no fim do romance. Contudo, não foi esse o aspecto da obra que mais me chamou a atenção.

Protagonistas
Bem, nas passagens de Jane Eyre que citei, fica claro que a raiva estava corrompendo a integridade da romancista Charlotte Brontë. Ela abandonou sua história, à qual dedicava inteira devoção, para cuidar de mágoas pessoais. Lembrou-se de que estava sendo privada da devoção à própria experiência foi obrigada a estagnar em um presbitério cerzindo meias, quando o que queria era vagar livremente pelo mundo. Sua imaginação desviou-se do curso por causa da indignação, e nós a percebemos desviar.

O trecho acima é de Um teto todo seu, e dele me lembrei assim que a narradora apresenta a história de Rosário, a única mulher entre todos cafeicultores que ela conheceu em seu trabalho. Uma história singular, mas que teve de ficar de fora de sua apresentação por alguma razão — chutemos misoginia e não estaremos de todo errados. É palpável a indignação da protagonista quanto a certos papéis sociais reservados às mulheres, da mulher traída às moças invisíveis montando kits de lembrancinhas em um evento — o termo “sororidade” me veio à mente algumas vezes. Porém, em momento algum essa preocupação destoa do resto do romance, o que diferencia Vigna do que Virginia Woolf escreveu sobre Brontë.

Mas acho que não foi por isso o convite. Fico bem, eu. Quer dizer, não fico. Mas justamente por não ficar, fico. Em tempo de politicamente correto, fico bem eu, lá, eu tão pouco televisiva. Fomos cinco naquele palco. Três homens. Do tipo mesmo que se espera: brancos, jovens, descolados. Uma mulher também do tipo que se espera: branca, jovem e descolada. E agressivíssima, como mulheres precisam(os) ser em ambientes profissionais. E mais eu. Componho bem. A agência e a empresa ficam parecendo bem bacanas, assim, comigo lá, meu cabelo ondulado e quase branco, minha cara de parva.

Por escrito não é apenas sobre mulheres, mas, sem dúvidas, delas é o protagonismo. Há coisas que os homens não entendem, mas Elvira Vigna mais uma vez nos dá a oportunidade melhor compreendê-las, creio. Mais um romance brilhante, mas não poderia esperar menos da escritora.

Por escrito
Elvira Vigna
Companhia das Letras
312 págs.
Elvira Vigna
É escritora e desenhista. Nasceu em 1947, no Rio de Janeiro, e atualmente mora em São Paulo. Seu romance Nada a dizer (2010), recebeu o prêmio de ficção da Academia Brasileira de Letras.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

Rascunho