Cidade partida

China Miéville cria romance complexo e em camadas, que distorce gênero, linguagem e espaço
China Miéville. Foto: Divulgação.
07/05/2015

Por vezes, o resenhista se encontra em uma complicada situação: resenhar um livro extremamente difícil de ser comentado. Esse é um caso. A cidade & a cidade é um daqueles livros que devem ser lidos com o mínimo possível de informação prévia, já que desenrola sua história (com maestria) aos poucos. Ainda assim, o Rascunho me separa uma página do seu espaço para falar sobre esse livro. Cabe a mim assumir tal missão.

Nas primeiras páginas, o livro se mostra como uma trama policial. O trecho “Ela estava caída perto das rampas de skate. Nada é tão imóvel quanto os mortos. O vento mexe o cabelo deles, como estava mexendo o dela, e eles não esboçam nenhuma reação” aparece já na primeira página. Aos poucos conhecemos o inspetor Tyador Borlú, narrador dessa história — um policial com uma longa experiência profissional e que leva seu trabalho a sério.

A princípio o crime é um tanto comum, trazendo complicações relativamente típicas de homicídios — a identificação da vítima, a criação de hipóteses, a procura por mais pistas. Até o cenário parece comum: estamos em um subúrbio de Besźel, uma cidade do leste europeu.

A complexidade do livro começa a se mostrar, porém, enquanto a investigação não avança e Borlú começa a suspeitar de que o crime teria relação com outra cidade — Ul Qoma.

E é assim, aos poucos, que o autor nos apresenta seu mundo. Ao longo das páginas, o livro deixa de ser apenas um romance policial para envolver um cenário que por vezes toma espaço de um personagem da narrativa. E o título do livro, ainda que breve, se mostra bastante sugestivo: Miéville cria um mesmo espaço na Europa que sobrepõe duas cidades. Isso mesmo. Um espaço. Duas cidades.

A grande questão é a existência de algo chamado “Brecha”: uma figura pouco clara para os personagens (e para os leitores), a brecha é uma espécie de força que permite a coexistência das duas cidades.

A investigação do crime passa a ser um assunto partilhado entre Besźel e Ul Qoma (e entre seus investigadores, diga-se de passagem). As novas descobertas e pistas começam a criar um teor conspiratório, com grupos secretos e antigos mitos, ao qual poucos personagens se entregam. Partes da trama começam a ficar também mais políticas.

Besźel e Ul Qoma
A verdade é que a grande criação de Miéville é o espaço físico em que a história acontece. O espaço não só influencia o enredo — ele o torna possível. A história, ainda que interessante, parece existir para que esse espaço possa ser desenvolvido, e não o contrário.

Por vezes pode ser difícil imaginar duas cidades que ocupem o mesmo espaço geográfico ainda que não o mesmo espaço sócio-cultural-político. Ainda mais quando essa cidade está inserida no nosso mundo, com países como os EUA ou a França mencionados em diversos momentos. E o fato de que essa cidade é uma exceção em um mundo “normal” a torna um tanto exótica, inclusive para os personagens estrangeiros que aparecem na trama.

Para criar melhor a imagem dessas cidades compartilhadas, porém partidas, o autor deixa vários resquícios desse mundo pela narrativa. São detalhes simples, inseridos em outras ações dos personagens. Um exemplo: quando o narrador, o inspetor Borlú, se locomove, menciona que “desviu” uma senhora que passava ao seu lado. Isso quer dizer que, apesar de tê-la visto, identificou em suas feições e roupas características da outra cidade, onde não deveria estar, e fingiu que não viu ou até ignorou o que ali acontecia. (No original, o termo usado para “desver” é o “not-see”).

Assim, é possível montar a imagem e a lógica da cidade com esses pequenos fragmentos. Em nenhum momento o autor para sua narrativa para explicar para o leitor como as cidades funcionam, como foram formadas. As informações vêm aos poucos. Miéville sequer se preocupa em explicar todos os mínimos detalhes de funcionamento do seu mundo.

Mesmo com explicações não tão profundas, a verossimilhança do enredo está no fato de que nem os próprios moradores das cidades compreendem completamente a maneira como elas funcionam e coexistem. O próprio narrador da história desconhecia vários detalhes do funcionamento das cidades até se deparar com eles enquanto investiga o homicídio. Nesse sentido, talvez Miéville consiga validar seu mundo justamente por não dar detalhes demais.

Essa característica do espaço físico pode até ser vista como uma alegoria para as cidades partidas que temos no mundo real, em que, se não muros físicos, questões como classes sociais ou culturais são o suficiente para dividir a população de um mesmo espaço geográfico. É necessário cuidado porém para que não se caia em um reducionismo — apesar de ser uma imagem interessante, certamente não é o único tema do livro.

(Ainda, vale a menção: a edição brasileira traz um interessante recado na última página do livro. Nela, lembra quais cidades foram, ou ainda são, partidas por muros de alguma forma).

Linguagem e gênero
Em nota, o tradutor brasileiro, Fábio Fernandes, afirma: “Mais difícil que traduzir um bom texto é traduzir um bom texto ruim — mas de propósito. A cidade & a cidade é um exemplo notável desse segundo caso”.

A verdade é que a linguagem é uma característica importante e interessante da obra. O texto é narrado em primeira pessoa pelo personagem Borlú, morador de Besźel e, portanto, falante de besź. Ainda assim, esse personagem opta por narrar a história em inglês — e traz, portanto, um inglês de falante não-nativo. Por vezes, algumas palavras aparecem em usos não comuns, por outras, os neologismos são inevitáveis.

Com tantas características diferentes, determinar um gênero para o livro parece impossível. Em sua ficha catalográfica, é enquadrado como “ficção inglesa”. Porém, depois de sua publicação em 2009, rendeu vários prêmios típicos de ficção científica, como o Arthur C. Clarke e o Hugo Awards, para seu autor. Por fim, apesar de não ser essa a característica mais marcante do livro, não se pode afastar demais essa narrativa da literatura policial. Uma busca na internet mostra uma nova possibilidade: o autor já disse em entrevistas gostar da descrição “weird fiction”, que o acaba ligando a escritores como H. P. Lovecraft.

Independentemente de seu gênero, o livro faz uma interessante leitura do mundo. O desdobramento da investigação mostra o quão rara é a habilidade de entender o mundo e as relações entre as pessoas e os fatos. Apesar de aparentemente simples, Miéville constrói sua obra com uma intricada e complexa rede de informações que se unem sutilmente.

Ao mesmo tempo em que soma cidades, Miéville parece criar sua história em camadas. Este é um livro que entrega muitas coisas. Pode ser uma leitura mais rápida, com o ritmo da investigação do romance policial. Pode ser também, como o tradutor brasileiro do livro afirma, “uma investigação sobre os limites e as possibilidades de um idioma”. Pode ser uma grande crítica social. Uma fantasia urbana. A grande questão é que este é um livro que não se esgota rápido.

A cidade & a cidade
China Miéville
Trad.: Fábio Fernandes
Boitempo
292 págs.
China Miéville
Nasceu em 1972, na Inglaterra. É graduado em antropologia social pela Universidade de Cambrigde e mestre e doutor em filosofia do direito internacional pela London School of Economics. É professor de escrita criativa na Warwick University e militante de esquerda. Publicou seis romances e uma coletânea de contos. Já recebeu duas vezes o prêmio British Fantasy Award, três vezes o Arthur C. Clarke Award e o Hugo Award.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

Rascunho