A literatura de José Roberto Torero — autor pop dos mais festejados — está alicerçada (e edificada) sobre o humor, numa linha que segue os escritos de um Luis Fernando Verissimo e um Mario Prata. Está aí para nos fazer rir, esgarçar os lábios de maneira sutil, contar uma piada de forma clara, sem esconder-se nas entrelhinhas, sem grandes volteios, de maneira direta, simples e agradável. Diria, é um escritor frugal, feito um café da manhã, para quem acredita nas benesses de uma alimentação equilibrada em busca da vida eterna. Os livros de Torero são assim: não nos empanturram com digressões infinitas, questionamentos existenciais, volteios lingüísticos, experimentalismos etc. Enfim, é uma escrita límpida e, muitas vezes, inodora.
Assim se projetou e assim parece seguir firme em seu projeto de consagração por estas paragens. A fórmula vem dando certo (e muito) desde O chalaça — sua estréia em 1995, que lhe garantiu milhares de exemplares vendidos e um prêmio Jabuti na sacola; tudo isso com méritos, pois o romance é sua “obra-prima”, levando-se em consideração o que depois o sucedeu: há muito humor, revestido numa idéia simples (contar estripulias de um conselheiro de Dom Pedro no nosso querido Brasil), utiliza a manjada forma do diário, intercala algumas reminiscências do narrador, alternando o cenário brasileiro ao português, salpica — desculpem a palavra — cenas de sexo, fanfarrices, tudo no seu estilo claro e direto (ao contrário deste texto) de dizer as coisas. Portanto, funcional. Deu-se tão bem na empreitada literária que a repetiu em Terra Papagalli, em parceria com Marcus Aurelius Pimenta, com os mesmos recursos, e o Brasil ainda um moleque de calças curtas como grande cenário. Aí, o nome de Torero já estava no alto da montanha literária a ganhar adjetivos como “autor de humor impagável e inteligência ferina”. Tudo com algum mérito, diga-se. E tudo isso de conhecimento do paciente leitor deste Rascunho.
Pois bem, a fórmula ainda se repetiu em Xadrez, truco e outras guerras, livro-encomenda para a coleção Plenos Pecados, da Objetiva, que versava sobre os pecados capitais, cabendo a Torero a ira, com a qual brincou muito e fez mais um romance divertido, a troçar com mais um fato histórico: a Guerra do Paraguai. Colocou ali soldados, generais, tenentes, um rei, capitães etc., atiçou a sanha de mulheres e homens, organizou fornicações no front, fez rir, divertiu mais uma vez seus leitores, que devem estar sempre preparados para um final de capítulo com a alguma “frase de efeito” do tipo: “Então, duas lágrimas vieram até seus olhos: a da esquerda por ódio aos inimigos, a da direita, por pena dos mortos” (Xadrez…, p. 81) ou “Não venci o dragão, mas pisei um rato. Não sou menos vencedor por isso” (O chalaça, p. 74).
Torero é mestre também em identificar seu leitor (aquele sujeito que está pouco ligando para grandes discussões, hermetismos, existencialismo etc. e quer apenas passar uns “bons” momentos em companhia de um livro [desculpem o lugar-comum; influência da leitura dos últimos dias]), e oferece ironias palatáveis e de digestão fácil e rápida como:
— Sendo assim, a guerra é certa?
— É. Mas não temos navios o bastante, nossos canhões são velhos e nossas baionetas estão enferrujadas.
— Então terão de comprar armas.
— Do meu país?
— Não há outro melhor neste assunto.
— Vender-vos algumas armas é sempre um prazer.
— E, para pagar, teremos que fazer um empréstimo junto aos teus banqueiros.
— Então serão dois prazeres.
— Preferia que tomássemos dinheiro para fazer escolas e plantações.
— Bobagem, os juros são os mesmos (.., p. 12).
Torero é muito eficiente no uso de lugares-comuns. Tenta com isso se aproximar do leitor, cativá-lo e, por fim, conquistá-lo na eternidade. Aqui e ali arrisca uma intimidade e chama o leitor ao diálogo; “E enfim, leitor, apenas neste sétimo capítulo, depois de tantas páginas e de tantos personagens apresentados, conheceremos nosso protagonista” (Xadrez…, p. 35). E por falar em personagens, não se pode deixar de notar que eles são constituídos de nada em toda a obra de Torero. São apenas “apresentados”, nada mais. Como em tudo na literatura de Torero — que também ganha a vida a fazer roteiros para a TV e cinema, como os (não poderia ser diferente) engraçados A felicidade é e Pequeno dicionário amoroso —, os personagens são vazios e engraçados.
Depois de Xadrez, truco e outras guerras, que é de 1998, esperei com alguma expectativa um novo livro de Torero (não levo em consideração Os vermes, também escrito em parceria com o amigo Marcus Aurelius, pois é muito exercício mental descobrir de quem é a piada da vez). Eis que surge Pequenos amores, um livreto de poucas palavras, belas ilustrações, muito espaço em branco e com a alcunha de novela. Animei-me, apesar da apresentação pop do livro, o que é de se esperar quando se trata de um autor pop a carregar milhares de exemplares vendidos nas costas. Talvez tenha sido o último livro que li de Torero (li-o três vezes); a impressão é a de que o autor quer intimidade demais com o leitor e diz: “olha aqui mais um livro meu. Você que é estúpido vai se divertir. É uma leiturinha bem fácil e muito rápida”. Alguns devem estar se perguntando: “mas por que perder tempo, então?”. Respondo: a literatura brasileira ainda merece ser questionada o tempo todo.
Em Pequenos amores até parece que Torero voltou a escrever sobre a ira — pelo menos é este sentimento que deve causar em alguns desavisados leitores. Como já esperava, a trama (?) é simples, simplista, simplória. Várias histórias de amor se passam em Paraíso, típica cidadezinha do interior, com a praça central, a igreja, o hospital, a prefeitura, o campo de futebol — ideal para se morrer de tédio. É neste pacato cenário que muitos casos amorosos vão se entrelaçando ao “melhor” estilo Torero de escrever. Abundam (com trocadilhos) personagens rasteiros, lugares-comuns, didatismo, sexo, piadas, humor, muito humor, até cansar. A desgraça começa logo de cara, quando o autor opta por iniciar pela expulsão de Adão e Eva do Paraíso, para terem de “trabalhar, sofrer e morrer” (p. 7). E continua página a página, em frases como “o cemitério, lar final e último de todos os paraisenses” (p. 12), “não pode fechar questão sobre o assunto” (p. 14), “Hoje eles são felizes e formam um casal cheio de vida” (p. 87) e tantos outros exemplos. Nem mesmo a ironia escancarada em algumas frases salva o livreto.
As vidas dos personagens estão de alguma maneira ligadas, seja pelo amor ou pela tragédia, o que para o autor são a mesma coisa. No primeiro caso amoroso, tem-se a confeiteira Carmelita que morre sufocada pelo gorducho marido após uma “tórrida cópula”. Em seguida, vê-se a lápide de Carmelita ser produzida por Alaor, que faz as mais perfeitas esculturas de Paraíso, mas é casado com Gioconda, “uma senhora de corpo desforme e rosto feíssimo”, mas que para Alaor tem “as formas mais inéditas e originais que ele já viu”. Gioconda trabalha na casa do Dr. Augusto, dono do Hospital Sétimo Céu, e que trai a esposa com Berenice. Um dia, Augusto fica impotente e a esposa contrata Berenice para cuidar do enfermo. E tudo isso acontece numa velocidade espantosa, entre alguns desenhos e muitos espaços em branco. Os capítulos (e são 50) vão passando e a coisa tende a piorar. Nada melhor (ou pior) do que reproduzir TODO o capítulo 6:
Entre as irmãs Bárbara e Rosa, numa casinha branca com roseiras no jardim, moram João e Maria, uma casal feliz como poucos e apaixonado como nenhum.
Como acontece às mulheres que são amadas por seus maridos, Maria ficou grávida.
João não queria o filho, Maria queria.
Por causa disso acabaram se separando.
Porém, como fosse um casal de muita sorte, a criança nasceu morta.
João e Maria fizeram as pazes e viveram felizes para sempre. (p. 26/27)
Convenhamos, é difícil de agüentar tamanha “literatura”. Poderia aqui ilustrar as peripécias de Torero com muitos outros exemplos. Até porque iria reproduzir quase todo o livro nesta página do Rascunho. Torero lança mais um livro engraçado, muito recomendável como presente àquelas tias que odeiam ler, mas “têm consciência” da importância da leitura. Elas vão se esbaldar com tamanho humor, ironia, ligeireza, frugalidade etc. Ou ainda, Pequenos amores pode ser adotado pelas empresas para “melhorar” a qualidade de vida de seus contínuos (ou office-boys, como queiram). É leitura recomendável para a fila dos bancos, desde que esta não seja muito longa. Ou seria mais recomendável o game boy, aqueles aparelhinhos portáteis de jogos eletrônicos?
Nestes tempos de culto à alimentação saudável, a literatura de José Roberto Torero é como uma bolacha água e sal: não faz mal, mas também não mata a fome.