Besta sofredora

Resenha do livro "Viagem ao fim da noite", de Louis-Ferdinand Céline
Louis-Ferdinand Céline, autor de “Viagem ao fim da noite”
01/07/2011

O ministro da Cultura da França atendeu a um pedido da associação de filhos de judeus deportados e retirou o nome do escritor Louis-Ferdinand Céline das celebrações nacionais de 2011. A razão para tanto: anti-semitismo virulento. Não há como negar essa faceta de Céline, seus panfletos ignóbeis são indesculpáveis. Por outro lado, Henri Godard, professor emérito da Sorbonne e um dos maiores especialistas na obra de Céline, classificou a decisão do ministro Frédéric Mitterrand como uma forma de censura. E, mais uma vez, a polêmica embala um episódio celineano.

Louis-Ferdinand Céline, médico de formação, apresenta em sua obra o homem próximo a uma besta sofredora. Em Viagem ao fim da noite, Ferdinand Bardamu, o narrador, também é médico, e também padece da aflição do desejo. A própria guerra tem suas variantes, e uma delas é a guerra entre os corpos, os sadios e os doentes. Um romance dotado de uma organicidade fora do comum. Golpe de mestre.

Contrariando a maioria dos teóricos e estudiosos do tema, percebo em Viagem ao fim da noite, um exemplo de autoficção. Um gênero também controverso. Cabe à autoficção explicitar as relações, nem sempre puras, entre a arte e a vida. A obra literária como decorrência da vida do escritor. Segundo Thierry Laurent, “a autoficção não seria nem uma narrativa comprometida com o real tampouco exclusivamente romanesca, mas uma livre retranscrição de suas lembranças e experiências, um pouco à maneira celineana”.

A arte permitindo uma nova identidade. A arte, a memória, o tempo, a imaginação. Imaginar. A capacidade de imaginar, de criar, fazendo parte da realidade. A arte, qualquer forma de arte, é o apogeu da imaginação, da criatividade; é estranheza pronta a subverter padrões. A arte não deve se submeter a regras. Conforme Bardamu:

Quando não se tem imaginação, morrer não é nada; quando se tem, morrer é demais. É essa minha opinião. Nunca eu compreendera tantas coisas ao mesmo tempo. Ele, o coronel, jamais teve imaginação. Toda a desgraça desse homem veio daí, sobretudo a nossa. Era eu, portanto, o único a ter a imaginação da morte naquele regimento?

Viagem ao fim da noite tem o mesmo peso de Ulisses, um trabalho magistral de linguagem aliado a uma temática carnavalesca em seu imenso absurdo. O exemplo é o exercício de milicianos, falsos soldados treinando com fardas e armas imaginárias. O nonsense desmascarando nosso mundo absurdo. Um livro que está entre os dez melhores já escritos. Obra-prima.

Viagem ao fim da noite
Louis-Ferdinand Céline
Trad: Rosa Freire d’Aguiar
Companhia das Letras
536 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho