Belo humor

Resenha do livro "Adão e Eva no paraíso amazônico", de Sebastião Nunes
Sebastião Nunes, autor de “Adão e Eva no paraíso amazônico”
01/06/2010

Há livros que nos atraem pela beleza física. É o caso de Adão e Eva no paraíso amazônico, de Sebastião Nunes: um primor de edição. A capa é convidativa. Ao folheá-lo, o leitor é capturado por ilustrações instigantes que despertam a curiosidade. Então, ele vai até os títulos dos textos para conferir a promessa que o livro traz: há encantamento em mim.

São 50 crônicas, entre as quais, destaco alguns títulos, apenas para estimular curiosos: A sopa de pedra de Pedro Malasartes, O Juízo Final está chegando a galope, Alegres divagações sobre a escravidão humana, Molhadas reflexões sobre o nascimento da ética, O cachorro, o jacaré e os ovos de codorna, Os primeiros tempos depois do fim do mundo, O vírus da gripe e a morte de Ivan Ilitch, Dos males que a ignorância produz, As três orelhas do pintor Van Gogh, A teoria da repressão na república de Platão e O veneno das cobras e a aventura da escrita.

Um cronista-artista faz a diferença. Nada mais prazeroso do que ler um escritor que conhece os mistérios da palavra. O humor perpassa os textos. Mas não se trata do humor pastelão. É humor curtido em poesia. A linguagem é um bordado que une idéias, olhares, paisagens e sentimentos.

Um bordado irônico. As cores do bordado são realçadas pela ironia. A implacável ironia que só as palavras constroem. Adão e Eva no paraíso amazônico foi lapidado à exaustão para nos dar o prazer de um mergulho nas belezas de um mundo tenebroso. Quem duvida do horror a céu aberto que nos envolve e nos resulta?

Tenho lido mais crônicas recentemente por conta das resenhas que faço; redescubro a importância do gênero para a atualidade. Uma boa crônica pode ser a solução para leitores em formação, para leitores sem tempo, para não leitores que estão se iniciando no universo literário.

Cronistas que não se especializam num determinado tema têm grande liberdade de criação e aqueles que realmente são artistas fazem da crônica um veio para sua criatividade, com a vantagem de seus textos, em geral, serem muito acessíveis a leitores não convencionais. Por exemplo, no texto de Sebastião Nunes Promissoras pesquisas sobre a evolução humana, temos uma “reportagem” sobre a história do homem desde seus primórdios até seu provável futuro mais longínquo, numa linguagem clara, simples, que qualquer pessoa pode decifrar sem maiores exigências intelectuais.

O leitor extrai do texto a substância vital que, consciente ou inconscientemente, procura: o prazer estético. Ao ler esse texto, fiquei boquiaberta, como uma criança que viaja pela história do homem e chega ao futuro como quem volta para o útero.

Um bom texto nos liberta. Ainda em relação à crônica citada, a criança boquiaberta descobre, após a leitura, que passado e futuro não existem. São mera imaginação de seres frágeis e dotados de inteligência. Passado e futuro são divisões da alma, da história. Divisões que o homem estabelece por não suportar a estupidez que orienta sua existência. Por isso, o autor, magicamente, fecha a crônica com as seguintes palavras:

A EVOLUÇÃO CONCLUÍDA

Assim, com o passar dos anos e das gerações, os homens se tornarão peludos, como há milênios. Perderão o domínio da fala, como nas cavernas. Voltarão a ter rabos compridos, como nos primórdios. E esquecerão a capacidade de ler e escrever, tornando-se completamente analfabetos, exatamente como são hoje.

Um bom texto nos sacode. Sacudidos, podemos passar horas, dias, a sentir o enlevo que as palavras produzem em nós. Assim sendo, mesmo uma crônica, texto curto e rarefeito, precisa de um tempo para ser degustado e assimilado.

Uma vez completada a experiência, podemos partir para outras crônicas que nos proporcionarão as mesmas ou outras sensações de intensidades suficientes para provocar nossa ignorância inercial.

Para fechar a resenha, cito mais uma passagem de uma crônica de Sebastião Nunes, que me toca em particular: As três orelhas do pintor Van Gogh. O artista, precisando comprar um tílburi para sua amada e não tendo dinheiro, ofereceu seus quadros ao vendedor que lhe respondeu, ao ouvir o nome desconhecido Van Gogh: “Não conheço, nunca ouvi falar. Sei de um maluco aqui mesmo, que vive correndo pelos campos de pincel em punho, amante de uma prostituta, mas todos sabem que é péssimo pintor. E quando digo maluco e péssimo quero dizer isso mesmo. Se for desse tal, desista.”

Adão e Eva no paraíso amazônico
(50 crônicas selecionadas)
Sebastião Nunes
Edições Dubolsinho
224 págs.
Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho