O lançamento do último romance de Chico Buarque, Leite derramado, foi sem dúvida um dos eventos literários do ano. O livro está em todo lugar — nas grandes livrarias, nos supermercados, nas lojas de conveniência — e em todas as bocas: trata-se de um daqueles eventos culturais que, a exemplo de certos filmes ditos “imperdíveis”, quase todo mundo está comentando, do leitor eventual de best-sellers ao acadêmico desconfiado dos grandes sucessos comerciais. Além disso, Leite derramado foi tema de capa dos suplementos culturais mais importantes do país, e tem merecido resenhas positivas de intelectuais importantes, como Roberto Schwarz, Augusto Massi, Samuel Titan Jr. e Leyla Perrone-Moisés (também responsável pela orelha do livro), o que indica uma aceitação crítica bastante singular.
Tamanha atenção de críticos, leitores e livreiros é compreensível, considerando a popularidade e a importância de seu autor para a cultura brasileira. Mas pode gerar armadilhas à leitura e apreciação do texto literário. A primeira delas é o já referido ressentimento contra o sucesso comercial, por parte de certa classe de jornalistas, intelectuais e formadores de opinião em geral. A armadilha oposta é o elogio irrestrito da obra de Chico Buarque, há muito transformado em um semideus pela parcela mais entusiasmada de seus fãs. São posturas pueris, é verdade, mas bastante reais.
Aos comentadores do livro — que, como eu, se aventuram a emitir publicamente uma opinião, inevitavelmente fadada a réplicas e contestações — resta uma outra armadilha, bastante traiçoeira: a de se deixar tomar pelos debates em torno do livro sem comentá-lo propriamente, reduzindo-o a um pretexto para se discutir questões mais amplas, como o mercado editorial ou os rumos da crítica literária contemporânea. Não que haja algo de errado nesses temas, e o fato de o romance de Chico Buarque promover discussões dessa ordem já é um indício de sua relevância. Mas é importante não perder o texto de vista; porque é ele, afinal, o motivo de tudo isso.
E a ficção de Chico Buarque tem se destacado no recente panorama do romance brasileiro. Já em seu primeiro romance, Estorvo, de 1991, o escritor se mostrava seguro de suas escolhas estilísticas, e determinado a procurar uma nova voz, que não fosse mera extensão daquela conquistada em uma longa e bem-sucedida carreira musical. Depois de Benjamim e Budapeste, Leite derramado vem demonstrar que Chico Buarque tem alcançado esse intento com rara competência.
Ritmo fragmentado
Leite derramado é narrado por Eulálio d’Assumpção, um senhor à beira da morte que, preso a um leito de hospital, conta a história de sua vida. Seu relato, bem como o contexto de sua enunciação, não possui contornos claros. A começar por sua interlocutora — por vezes uma enfermeira, por outras sua filha — e pelas limitações de sua memória, que impõem um ritmo fragmentado e repetitivo ao discurso memorialista.
Eulálio não é muito merecedor da estima do leitor: sua arrogância fica evidente logo nas primeiras linhas, em que convida a enfermeira para compartilharem uma nova vida, “na fazenda feliz” de sua infância. Sempre associando seus afetos às posses da família, o narrador exibe um indisfarçado orgulho da longa “tradição senhorial” de que faz parte. E a partir da caracterização de Eulálio, de sua ascendência e descendência familiar, Chico Buarque termina por compor um irônico (e triste) painel dos valores de gerações da elite brasileira.
Não é simples criar uma representação literária dessa elite, sem sucumbir ao tom sociológico mais óbvio ou ao moralismo da pior literatura. Mas Chico Buarque alcança o feito com desenvoltura, a começar pela arriscada escolha do foco narrativo, de um membro decadente dessa elite. Nas entrelinhas (nem sempre discretas) da narrativa de Eulálio, desenham-se os preconceitos e a desfaçatez de sua classe. A respeito, por exemplo, dos demais doentes do hospital, Eulálio deduz que “são pessoas do povo, sem grandes luzes, mas minha linhagem não me faz melhor que ninguém. (…) Seria até cômico, eu aqui, todo cagado nas fraldas, dizer a vocês que tive berço”. Mas termina por dizer: sua suposta humildade não impede que ele relate a história e seu avô, “grande benfeitor da raça negra”, e freqüentador do antigo palácio Imperial, na época de dom Pedro II.
Bastante representativo dessa desfaçatez é o episódio do desejo sexual mal disfarçado que Eulálio, quando jovem, nutria pelo negro Balbino, um amigo de infância (neto de escravos e de “índole prestativa”), sentimento logo transferido para sua futura esposa, Matilde: em comum, a baixa casta sugerida pelo tom da pele da esposa e o sentido de propriedade conferido ao casamento.
No entanto garanto que a convivência com Balbino fez de mim um adulto sem preconceitos de cor. Nisso não puxei ao meu pai, que só apreciava as louras e as ruivas, de preferência sardentas. Nem à minha mãe, que ao me ver arrastando a asa para Matilde, de saída me perguntou se por acaso a menina não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele quase castanha, era a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai.
Filha bastarda de um influente deputado, Matilde era “a mais moreninha da classe”, e jamais seria aceita pela sogra, uma mulher ressentida pela iminente decadência familiar, mas que ainda falava francês perto dos empregados, pouco merecedores de confiança. Mas essa defesa da “pureza” familiar é vã: já o avô escravo de Balbino adotara um sobrenome quase homônimo ao do patrão, Assunção (ao invés do Assumpção), “como a pedir licença para entrar na família sem sapatos”. A mesma sem-cerimônia demonstraria Matilde, ao dedilhar no piano da família não uma adequada peça de Mozart, mas um batuque chamado Macumba Gegê: “E mamãe se despencou pela escada, para ver que diabo se passava”, conta Eulálio.
Pequenos mas significativos episódios como esse também revelam um oportuno senso de humor por parte do autor (e obviamente involuntário, por parte do narrrador), de que são exemplares a decepção de Eulálio ao ouvir a amante do bisneto chamando-o, na cama, de “negão”, ou sua insistência em dizer que Matilde não é mulata, mas “teria quando muito uma ascendência mourisca, por via de seus ancestrais ibéricos”. Não à toa, é com certo prazer perverso que assistimos a um policial brutamontes esbofetear Eulálio e praguejar contra seus ancestrais. Ainda assim, o percurso de sua decadência é longo; e, eventualmente, o leitor concederá alguma compaixão para com o impotente moribundo que, resignado, resmunga: “tudo é mesmo uma merda, mas depois melhora um pouco, quando de noite a namorada vem”. A decadência física e o patético de sua exposição são comuns a todos, afinal.
Outras leituras
Um personagem caracterizado ostensivamente com as marcas de uma história cultural e social tão presentes, ainda hoje, em nosso país é, obviamente, muito adequado a uma leitura sociológica. Como também são inevitáveis as comparações com Machado de Assis: se Eulálio possui algo de Brás Cubas, também compartilha com Bentinho certa fraqueza de caráter (que o impede de reagir à vontade materna) e um ciúme doentio, e envergonhado pela origem da esposa. Mas outras leituras virão, beneficiando outros aspectos do romance, que parece resistir a uma interpretação unívoca.
Nas palavras de Eulálio, “com a idade a gente dá para repetir velhas lembranças, e as que menos gostamos de revolver são as que persistem na mente com maior nitidez”. Persistem, mas são negadas ao leitor: Chico Buarque faz dos interditos os pontos-chave na caracterização de Eulálio. A começar por dois personagens essenciais, mas dos quais saberemos, por fim, muito pouco: o pai, cuja herança (das posses, da lascívia, do prestígio, da amoralidade) assombrará Eulálio por toda a vida; e a sensual e misteriosa Matilde, cuja caracterização completa nos escapa, mas que talvez seja a personagem mais marcante do romance.
É importante dizer ainda que, embora o leitor possa reconhecer no romance ecos de leituras passadas (e as há), Leite derramado é sem dúvida um romance contemporâneo, o que se faz notar principalmente na desconfiança dos métodos historiográficos e biográficos convencionais. Se a história e o passado pessoal não são passíveis de serem reconstituídos com nitidez, o narrador se manterá fiel às imperfeições e ficções de sua memória (“um pandemônio”), ciente de que lembrar e inventar são atividades afins.
E na sobreposição de tempos narrativos, nas repetições e contradições do discurso de Eulálio, surgem lacunas e ausências que compõem algumas passagens de singular beleza. Um bom exemplo é o capítulo 14. Eulálio comparece à casa de sua mãe para jantar. Matilde o acompanha, relutante. A mãe dedilha uma valsa ao piano sem, contudo, fazê-la soar; o vestido de Matilde lembra Eulálio de um outro vestido, com que o pai certa vez presenteara uma amante. O som evocado mas não ouvido da valsa e o vestido imaginado vazio, sem a presença voluptuosa de Matilde, são prenúncios do que se seguiria: a eletricidade falta e a casa mergulha na escuridão. Entre sussurros e vultos, Eulálio imagina cochichos da esposa e a encontra sentada no chão da cozinha, junto aos empregados. Pouco se vê dos gestos dos personagens ou do narrador, ocultos sob as sombras. Mas seus fantasmas estão todos presentes: a vergonha, o ciúme, o desejo, a herança paterna, sugeridos e pressentidos em um ambiente fantástico como um “sonho coletivo”.
Episódios como esse nos convidam à releitura desse belo romance. Se, como quer Eulálio, “a memória é uma vasta ferida”, o discurso memorialista parece incapaz de cicatrizá-la. Antes, parece condenar seu protagonista às velhas “sombras da casa assombrada”. Até o fim.