As ossadas de Ruanda

Romance de Boubacar Boris Diop narra o sangrento episódio em que cerca de 800 mil ruandeses da etnia tútsi foram massacrados
Boubacar Boris Diop, autor de “Murambi, o livro das ossadas”
01/12/2021

Escrever sobre uma grande tragédia talvez seja o maior desafio que um escritor possa enfrentar. Não se fala aqui da desgraça inerente à condição humana, matéria-prima por excelência da literatura, mas de eventos que ameaçam o próprio sentido dessa construção secular que pode ser resumida no conceito de humanidade. Imaginemos transformar em palavras o que Picasso conseguiu retratar tão magistralmente em seu Guernica. Em casos como esse, as palavras parecem não dar conta de dizer o que o gênio andaluz mostrou usando suas tintas e pincéis. Dizer e mostrar: eis aí, uma vez mais, a diferença, embora as palavras também se prestem a mostrar, e, quando nas mãos de quem sabe manejá-las com tal destreza, o resultado seja também, e às vezes ainda mais, poderoso.

Sobre o Holocausto judeu, o maior genocídio da História — o próprio termo “genocídio” foi criado para enquadrá-lo juridicamente —, as artes todas, e muito em especial a literatura, se colocaram a serviço de um minucioso trabalho de resgate e memória. Por ter sido o maior, talvez, e parte do delírio nazista que jogou o mundo na Segunda Grande Guerra, a “solução final” para um povo perseguido em quase toda Europa segue rendendo obras que não se cansam de discutir uma questão fundamental: como a humanidade pôde ter chegado àquilo. Ver e rever, lembrar sempre para não esquecer, e nunca, jamais, repetir são as palavras de ordem a todos os que sobreviveram a ele.

Como então foi possível que, depois do Holocausto, com todo seu elenco de atrocidades que não cessam até hoje de repercutir, possa ainda ter havido outros casos de genocídio no mundo? Em Ruanda, entre abril e julho de 1994, foram massacrados cerca de 800 mil ruandeses da etnia tútsi pelos da etnia hútu, que estavam no poder desde a independência do país, em 1962, um conflito étnico artificial plantado pelos colonizadores belgas para facilitar o controle sobre os colonizados e que persistiu após sua saída. E chega a constranger a constatação de que, nesta parte do mundo, saibamos tão pouco sobre mais essa triste página da História, outra a indignar toda a humanidade, pois um genocídio é também uma indignidade universal.

Murambi, o livro das ossadas, primeiro título do senegalês Boubacar Boris Diop publicado no Brasil, vem suprir em parte essa lacuna no que diz respeito ao conhecimento sobre a tragédia, outra para a qual o mundo virou as costas enquanto era perpetrada, e mesmo depois. Num longo posfácio incluído na segunda edição, em 2011 (o romance foi lançado originalmente em 2000), Diop dá detalhes de como a obra foi concebida e do próprio contexto histórico que levou à matança dos tútsis em Ruanda. Quatro anos após o massacre, um grupo de escritores africanos, financiado em parte por uma fundação francesa, instalou-se em Kigali, a capital do país, com o objetivo de entrevistar vítimas e, a partir de seus depoimentos, produzir obras que levassem o mundo a conhecer seu martírio. Esse foi o grande desafio de que se falou no início. Diop, um dos dez participantes do projeto, optou por uma narrativa ficcional talvez pelo que tenha sido a mais singela das razões: como ele não havia testemunhado os acontecimentos, mas ouvido a história do ponto de vista de quem a viveu de fato, a ficção lhe permitiu preencher com mais liberdade o que faltava para costurar a trama daqueles dias terríveis.

Estrutura
O romance tem uma estrutura fragmentária em quatro partes que refletem à perfeição as etapas de como ele próprio foi concebido. Na primeira delas, três personagens narram de diferentes perspectivas os dias que antecederam ao massacre, a tensão crescente no país que culminou com o assassinato do presidente Juvénal Habyarimana, cujo avião foi abatido num atentado. As razões originais desse conflito, que se agrava a cada minuto, são ainda confusas ao leitor. Dois dos narradores têm a participação restrita aos seus respectivos capítulos e em seguida desaparecem da trama. Terceira na sequência, Jessica é uma ativista política que terá importância na história central e reaparecerá outras vezes ao longo do romance.

Na segunda parte, narrada agora em terceira pessoa, o professor de História Cornelius Uvimana volta a Ruanda quatro anos após o genocídio para descobrir como e por que sua família inteira foi assassinada. Cornelius é filho do Dr. Joseph Karekezi, médico endinheirado e um dos protagonistas da hecatombe, que poderia ter protegido os seus mas acabou fugindo do país e salvando a própria pele. Esse é o grande mistério que Cornelius terá de enfrentar. Ele volta ao país com o propósito de descobrir o que de fato aconteceu, ao mesmo tempo que demonstra dificuldades para reconhecer a verdade. Não ajuda tampouco o fato de ele também ser um fugitivo, pois abandonou Ruanda no momento em que seus compatriotas eram massacrados e tardou depois quatro anos para retornar.

A terceira parte é outra vez entregue à voz de vários personagens para que eles próprios descrevam, cada qual de sua perspectiva, os cem dias da inominável crueldade a que foram submetidos os ruandeses tútsis e twas, além de muitos hútus considerados moderados. Naqueles dias, era normal que laços familiares não fossem garantia de proteção contra o massacre: a mãe de Cornelius, por exemplo, era da etnia tútsi, o que não impediu o próprio marido todo-poderoso de assassiná-la. Antes de cada chacina, as vítimas eram torturadas e as mulheres, estupradas. Nem as crianças eram poupadas. Uma visita que faz Cornelius à Escola Técnica Oficial de Murambi, um dos principais centros de execução e que mantém expostas as ossadas das vítimas que sofreram torturas lancinantes antes de serem mortas a golpes de facão, seria uma experiência quase inenarrável em toda sua tenebrosa magnitude não fosse a inabalável frieza com que Diop consegue descrever aquele horror, eleito inclusive para intitular o livro. Quanto menos emotivo é um relato, mais impactante ele se torna, e esse é um conceito que Diop domina como poucos.

Na derradeira parte do romance, finalmente Cornelius encontra-se com um velho tio, Siméon, único membro da família que, além do pai, sobreviveu ao genocídio. O tio vinha conduzindo o sobrinho, ainda que à distância e à sua revelia, em sua tentativa de reencontrar o passado e os elos perdidos com sua família desde que ele colocou os pés de volta em solo ruandês. Numa das mais emblemáticas passagens da obra, a que consta no trecho escolhido para ilustrar esta resenha, é com uma simplicidade chocante que o lúcido e calejado Siméon, sentado enfim ao lado de Cornelius, sintetiza a hecatombe a seu único herdeiro.

A singeleza de Siméon desconcerta. São necessárias, contudo, páginas e páginas de leitura muitas vezes excruciante para se chegar àquele momento. Se foi um grande desafio escrever a história, lê-la não será menos difícil. Porque Murambi, o livro das ossadas conta uma história terrível e Diop não facilita em nada a vida do leitor. Talvez porque a dele tampouco tenha sido facilitada quando mergulhou no genocídio ruandês e viu expostas suas ossadas.

Murambi, o livro das ossadas
Boubacar Boris Diop
Trad.: Monica Stahel
Carambaia
224 págs.
Boubacar Boris Diop
Nasceu em 1946, em Dacar (Senegal). Escritor, jornalista e roteirista, é autor de vários romances, ensaios e peças de teatro. Em 2000, recebeu o Grande Prêmio Literário da África Negra pelo conjunto de sua obra. Murambi, o livro das ossadas é seu primeiro título lançado no Brasil.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

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