A esta altura do século 21 pode-se dizer que o Brasil possui uma família de poetas com gosto especial pelas coisas simples. Além de tomarem como matéria-prima o que escorre pelas bicas do cotidiano, tais autores moldam a linguagem poética a partir de formas inspiradas na própria simplicidade que querem representar. Em nossa história há exemplos numerosos, desde o pai bastardo de todos, Manuel Bandeira, até a eólica e verde Dora Ribeiro, grata revelação da poesia nacional dos últimos anos.
Agora mais uma poetisa apresenta-se como postulante ao ingresso em tal linhagem: trata-se de Neuzi Barbarini, com Poesia de uma mulher comum. Sabe-se que tanto nas ocasiões sociais quanto no discurso artístico não são poucos os que gostam de rotular-se com a falsa etiqueta da simplicidade. Mas este não é o caso de Neuzi Barbarini, que escreve voluntariamente com o tom menor de quem renuncia à excessiva seriedade da literatura desejosa de se tornar peça cativa de laboratório. Por todo o livro se vêem poemas frescos, marcados pelas digitais da infância: “Como os retratos/ também desbota/ a poesia,/ e adormece em velhas gavetas,/ até que uma palavra/ puxa segundas e terceiras,/ que, ainda preguiçosas,/ acordam um poema inteirinho”, diz Adormecida.
Como a literatura desconfia e entorta o caráter supostamente fixo dos conceitos, tal infantilidade tem com a imaturidade apenas uma relação de rima. O que parece caro à poética de Neuzi é o exercício ainda possível e válido de extrair do cotidiano a essência estocada em suas brechas, e registrar isso de forma leve e doce, da mesma maneira como é a sensibilidade que nos aproxima da poesia, no tempo de nossa infância intelectual. Amadurecer é bom, e em várias esferas e fases da existência; mas também na vida intelectual a madureza pode significar congelamento das veias, quando então nos tornamos peça do mau museu em que nos convertemos. Menina, a poesia de Neuzi puxa os coelhos coloridos de sua cartola, achada no canto de uma rua qualquer: “O cotidiano/ espalha seu baú de miudezinhas/ e fica quase invisível/ no burburinho dos grandes afazeres,/ até que o ruído dos dentes no pão crocante/ e a lambida na manteiga que sobrou nos dedos/ revela a sensualidade das pequenas coisas”, afirma o exemplar Cotidiano.
E é em razão dessa meninice (determinada não pelo calendário) que a poetisa fica à vontade para cantar o que lhe aguça a memória afetiva, em especial os laços familiares, conforme visto em Saudade de ter vó: “Às vezes tenho saudade de ter vó/ e pedir bênção/ à moda antiga,/ com beijo na mão e cerimônias”. Nisso não se estabelece apenas uma louvação das importâncias particulares. O registro do apreço familiar, sem qualquer sentimentalismo piegas, também se manifesta para apregoar que certos valores ainda existem e não podem se perder. E então a poesia mostra as outras faces de sua nobreza, voltando-se para, dentre outras ações, satirizar a febre da época — “Nesses tempos,/ hipermodernos,/ tristeza é indecência/ e não se mostra mais/ nem mesmo aos travesseiros” —, diagnosticar ruínas gerais — “O Haiti também é aqui,/ nas mãos que não alcançam esses corpos/ e que não são mães/ e acariciam o vazio” — e puxar do poço dos reveses coletivos e particulares um lirismo resistente: “Mas, se existir um céu das mães,/ ela deve estar lá, me assoprando: ‘Filha, deixa de bobagem e vai cuidar da vida’”.
Entretanto, a simplicidade de Poesia de uma mulher comum por vezes deságua num simplismo nocivo ao conjunto, sobretudo pela crença de que só de boas idéias vive a arte: “Você me conhece?/ Que bom!/ Então me apresente a mim”. Como a edição não parece totalmente profissional, o livro é também prejudicado pela excessiva quantidade de textos (são mais de cem), muitos deles nitidamente feitos para encher as páginas, o que às vezes é exigência do editor, como se o leitor de poesia fosse o típico consumista que quer pagar pouco e levar muito. Daí os exemplos gratuitos, que nada acrescentam ao livro, senão palavras: “Pretendia estudar francês/ acabei fazendo poesia/ quando acordei já era tarde/ estava na hora de dormir”.
Cabe à autora, portanto, identificar e colher o que particulariza sua poesia comum. De fato, Neuzi Barbarini não parece preocupada com as eleições da crítica. Mas isso não significa que não inspire maior apuro a poesia feita “apenas” para tocar o leitor (o que ela demonstrou saber fazer). Fica do livro uma pétala. Tomara que ela se torne uma flor aberta, a deitar e rolar nas gramas dos dias.