Há seis anos, lancei o romance Um pouco mais ao sul. É um livro meio underground, bastante inspirado em David Goodis, o autor de Atire no pianista, e no Serafim Ponte Grande, do Oswald. Uma mistura meio peculiar, é verdade, mas foi de onde saiu.
Na histĂłria, trĂŞs irmĂŁos se reencontram depois de 10 anos. AĂ, cĂŞ sabe, vĂŁo acertar as contas com o passado. Um Ă© viciado em crack (simplesmente chamado de Noia), outro burguĂŞs bem comportado (mas frustrado) e, um terceiro, produtor de filmes (de arte) pornográficos — uma espĂ©cie de Truffaut da sacanagem. Na outra ponta, estĂŁo os antepassados dessa turminha, que vieram de navio da PolĂ´nia para o Brasil nos anos 1930 com o objetivo de plantar maconha e pegar umas indiazinhas.
Bem, o livro foi feito sem editora, com os amigos ajudando a revisar, apontando os erros, etc. — ajuda que agradeço muito. Quando você faz tudo meio sozinho, faz do jeito que quer. Então, escolhi chamar o quadrinista Pedro Franz, um grande artista, para fazer a capa, que ficou muito maneira.
No lançamento, fiz uma festa no bar de um amigo. Tinha muita cerva e um herói do rock local — Fábio Elias, da Relespúbica — tocando. Havia também gente que eu admiro muito, como Cristovão Tezza — um dos poucos autores de quem li TODOS os livros.
Mas a festa não estava completa. O escritor Antonio Carlos Viana, que me ajudou muito no processo de escrita, morreu em outubro de 2016, um mês antes do lançamento.
Conheci o Antonio quase que por acaso. Uma tarde, ele entrou na minha sala no trabalho para usar o computador. Ele iria conduzir uma oficina literária em Curitiba e precisava imprimir material para os alunos. Eu o ajudei e conversamos um pouco. Mas depois disso, deixei-o em paz com seus compromissos.
Os escritores ficavam trĂŞs ou quatro dias na cidade e, logo apĂłs o fim do curso, iam embora. A maioria nĂŁo gostava de circular, preferindo ficar no hotel trabalhando ou descansando apĂłs as aulas. Viana parecia ser mais um recluso. Ele tinha fama de quietĂŁo, cara de quietĂŁo — e era quietĂŁo. Meio que um George Harrison do Sergipe… Como sou tĂmido no primeiro contato, achei que se ficássemos uma hora um na frente do outro, nĂŁo sairia palavra alguma.
Mas não foi nada disso. Ao longo dos dias em que o Antonio estava dando aula, ficamos próximos. No final de cada dia, a gente se encontrava no saguão da Biblioteca Pública do Paraná e ficava horas em pé conversando.
JeitĂŁo simples
E por incrĂvel que pareça, era o Antonio quem mais falava. Ele me contou sobre sua experiĂŞncia na França, como se virou por lá nos primeiros meses, o aprendizado da lĂngua e depois as traduções que fez do francĂŞs. Mas sempre de um jeitĂŁo simples, como era sua caracterĂstica.
A gente também falava sobre as leituras recentes de cada um, o que tinha curtido e o que não tinha gostado, principalmente da literatura mais contemporânea. Era um aprendizado enorme pra mim. O Antonio deveria ter uns 40 anos a mais que eu, mesmo assim descia ao rés do chão sem empáfia pra falar comigo…
Eu era leitor de seus livros havia muito tempo. Acompanhava sempre que saĂa algo dele — o que era raro. O Antonio lançou relativamente poucos livros. Seis ou sete — mas traduziu pra cacete e ainda escreveu livros mais tĂ©cnicos sobre escrita. EntĂŁo nossas conversas Ă s vezes viravam uma espĂ©cie de entrevista, eu tentando tirar detalhes sobre o modo de escrita de um autor que admirava.
Ele me contava o que podia. Que nunca publicava nada sem antes passar pelo crivo do amigo Paulo Henriques Brito, que foi seu aluno no antigo segundo grau (atual ensino médio) no Rio de Janeiro. E que tinha uma admiração muito grande pelo casal Reinaldo Moraes e Marta Garcia, que há pouco tinham passado uma breve temporada em sua maison em Aracaju. Como sou fã declarado do Reinaldo, lá ia eu fazer perguntas sobre um de meus escritores brasileiros prediletos.
Depois dessa breve passagem, eu e Antonio voltamos a nos falar sempre. Por conta de um câncer, ele meio que se mudou para Curitiba. Achava que a cidade tinha mais condições para tratá-lo. Morava em um flat bem simpático no Juvevê, o mesmo bairro onde morou Décio Pignatari. Depois de encontros em cafés, eu sempre dava uma carona pro Antonio até o flat.
Meses antes, ele havia lançado um novo livro de contos, Jeito de matar lagartas. EntĂŁo propus uma entrevista, para sair no jornal Cândido, que eu editava. Basicamente, falamos sobre o que vĂnhamos conversando em nossos papos informais, mas com foco mais nos contos da nova coletânea.
Conciso e seco
O livro Ă© muito potente e traz os elementos que consagraram o Antonio como um dos melhores autores surgidos na storm do conto brasileiro dos anos 1970. O tĂtulo da entrevista era O JoĂŁo Cabral do conto. Acho sempre perigoso fazer essas comparações, mas me senti Ă vontade porque era uma frase do Paulo Henriques Britto sobre a literatura do amigo. AlĂ©m disso, o prĂłprio Antonio havia estudado a obra do poeta pernambucano e admitia a influĂŞncia.
A concisão, a busca pela frase exata, sem muita firula, e a secura sentimental, meio que mostrando apenas “a vida como ela é”, estão no livro. Mas ali, o sexo, que sempre permeou sua obra, dá lugar a sentimentos como solidão, envelhecimento e medo da morte — fantasmas que o apavoravam quando escreveu os contos.
Assim como sua escrita, a bibliografia do Antonio tambĂ©m Ă© enxuta. Mas todos os livros mantĂŞm um padrĂŁo muito alto. NĂŁo há livro mais ou menos. Os meus dois preferidos sĂŁo Aberto está o inferno (um tĂtulo sensacional) e Cine PrivĂŞ (o conto-tĂtulo Ă© simplesmente um arregaço), os Ăşnicos livros que lançou na primeira dĂ©cada dos anos 2000.
Para escrever este texto, reli Aberto está o inferno. Parece um best of escolhido a partir de uma grande bibliografia. É tão bom quanto Do que estamos falando quando falamos de amor, do Raymond Carver, ou O vampiro de Curitiba, do Dalton Trevisan, ou O voo da madrugada, do Sérgio Sant’Anna. Em todos esses livros há uma ideia muito bem planejada e executada sobre um conjunto de histórias curtas. E com Aberto está o inferno é a mesma coisa.
Máximo com mĂnimo
Os contos de Antonio duram de trĂŞs a cinco páginas — com raras exceções. Mas nĂŁo precisam de mais nada. O que mais me impressiona Ă© que ele nĂŁo faz um “clique” ou “fotografa uma cena”, como a maioria dos contistas. Em trĂŞs páginas, ele consegue contar uma histĂłria de trĂŞs dĂ©cadas — e vocĂŞ nem percebe, pois está absorto pela histĂłria “principal”, digamos. É o máximo com o mĂnimo. E os personagens sĂŁo tĂŁo reais que Ă© possĂvel duvidar que foram “inventados”.
É assim com O pedido, em que uma moribunda, no leito de morte, pede pra fazer sexo com o antigo amigo dos filhos. Antonio repassa a história de dona Maria, o casamento, os filhos, as amantes do ex-marido, tudo isso intercalado com a bizarra cena que serve de mote pra história.
Esse é o “modelo” seguido por outros petardos como Barba de arame e Gatos em estado terminal, em que toda uma vida se passa em meio a cenas cotidianas. É onde beleza e sordidez se encontram. Antonio era um mestre em mostrar o buraco negro que é a alma humana, porém, sem um pingo de amargura.
Um dia comentei com o Antonio que tinha um livro — e que os amigos estavam lendo e dando “toques”. Ele se interessou e pediu para ler. Depois de um tempo, disse que tinha gostado e que era para eu seguir em frente.
Eu nĂŁo sabia atĂ© que ponto ele realmente tinha gostado, porque o livro Ă© uma zoação tĂŁo grande… ou se era apenas um gesto de generosidade com um novo amigo. Ainda assim, ele pareceu sincero e trabalhou pelo livro. Tentou me indicar pra editoras e escreveu um texto de orelha que Ă© um presente — muito mais do que eu e o livro merecĂamos. O escritor e editor do Rascunho, RogĂ©rio Pereira, um dia brincou dizendo que essa orelha foi a Ăşltima boa ação do Antonio. Deve ter sido mesmo.
Na entrevista que mencionei lá no começo, eu abria dizendo que “Antonio Carlos Viana Ă© candidato a se tornar um escritor (re) descoberto por um nĂşmero grande de leitores em um futuro prĂłximo”. O cara bacana, nĂŁo Ă© mais possĂvel conhecer, infelizmente. Mas o escritor tá aĂ pra logo logo virar um grande achado na vida de muitos leitores. Tomara.